Acesso à justiça

AutorMorgana De Almeida Richa
Ocupação do AutorDoutora e Mestre em Direito Constitucional pela PUC/SP. Graduada em Direito pela UFPR
Páginas17-78
Capítulo 1
ACESSO À JUSTIÇA
1.1. Do conceito clássico à moderna concepção de acesso
A ideia de acesso à justiça evoluiu, paralelamente, na passagem da concep-
ção do Estado liberal para a visão social do Estado moderno. Na vigência do
primeiro regime, a participação do Estado não ia além da declaração formal
dos direitos humanos, ou seja, não passava de meras declarações, destituídas de
efetividade. Nessa época prevalecia o laissezfaire, compreendida a justiça como
qualquer outro bem, acessível àqueles que pudessem suportar os respectivos
custos, pois todos eram presumidos iguais e a ordem constitucional era restrita
à criação de mecanismos de acesso à justiça, sem qualquer preocupação com a
eciênciapráticaouefetiva
O modelo da democracia liberal do século XIX era baseado em fatores de
cunho individualista. O indivíduo era a fonte do poder, dotado de primazia
sobre a sociedade, de modo que toda conjuntura de direitos visava conservar os
direitos naturais básicos, segundo a declaração francesa, notabilizadas normas
assecuratórias da liberdade do cidadão, da segurança, da propriedade e resis-
tência à opressão(1). Ou seja, “numa concepção orgânica da sociedade, as partes
estão em função do todo; numa concepção individualista, o todo é o resultado
da livre vontade das partes”(2).
AoEstado caberia apenas scalizaraconvivênciasocial segundo ordem
jurídicapréestabelecidaa m de garantir o livre jogo de forças econômicas
regidas pelas leis de mercado, em prestígio à autonomia privada da vontade. Na
esteira, o Poder Judiciário concebido nesta época tinha como propósito garantir
a preservação da liberdade individual e a proteção da autonomia da vontade.
A visão tradicional do conceito de acesso à justiça partia da ideia de que
era dever do Estado solucionar o litígio, garantindo o direito de acionar o Poder
Judiciário, desprovido de qualquer conteúdo sociopolítico. O acesso à justiça
BOBBIO NorbertoA era dos direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro:
Elsevier, 2004. p. 128.
BOBBIO NorbertoA era dos direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro:
Elsevier, 2004. p. 129.
Morgana de Almeida Richa
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signicavadeste modoomero exercício dodireitode ação queconsiderava
apenas a posição do autor da demanda, pois a atuação jurisdicional voltava-se
tão somente às questões do direito invocado.
Assim é que, ao falar do tema, a imagem do senso comum consolidada a
partir desta época remete ao acesso aos órgãos do Poder Judiciário, consubstan-
ciadono direitodoindivíduo de pediraoEstado parasolucionarum conito
inconciliável, seja em face de particulares, pessoas físicas ou jurídicas, ou do
próprio ente público.
No curso histórico seguinte, o liberalismo e as correntes neoliberais não
puderamatenderàsexigênciasdasociedadeemconstantemodicaçãoseguin-
do-se a alteração do método de tratamento político das exigências sociais, espe-
cialmente em razão da ferocidade incontrolável das questões econômicas A
sociedademodernaadquiriuaconsciênciadequeerainsucienteumestadode
direitomeramenteformalsemfornecerinstrumentosadequadoseecientesà
realização concreta do direito material(3).
Além das novas questões sociais, o surgimento das associações e das socie-
dadesintermediáriaseasexigênciasdedeniçõespolíticasrápidasresultaram
no welfare state, na conformação da democracia social ou participativa, engajada
na proteção dos economicamente mais fracos.
A democracia moderna, assim, atingiu um novo estágio. A intervenção
deixoudeserumlimiteàatuaçãoestatalmasseuprópriom(4). Segundo José
Joaquim Calmon de Passos:
O Estado abandona sua postura liberal, deixando de ser mero guar-
dião das liberdades políticas para se tornar protagonista no cenário
econômicoAs bases políticas seampliamosufrágio é agora uni-
versal, novos atores ingressam na cena política e novas demandas se
colocam no mercado político. O social se insinua e se expande, em
detrimento do individual, e a autonomia privada retrocede sob o
impacto do dirigismo contratual surgindo novas guras negociais
em que o conteúdo dos contratos é quase de todo subtraído ao poder
dispositivo dos contratantes. O coletivo se faz presente no processo
econômico e no processo político transformandose rapidamente a
antiga sociedade de vizinhos em sociedade de massa(5).
Abrese espaço para o constitucionalismo sociala partir do reconhecimento da igualdade
materialeconsequenteampliaçãodastarefasaserempromovidaspeloEstadoemâmbitoeconô-
mico e social.
 CANOTILHO José Joaquim Gomes Direito constitucional e teoria da Constituição 7. ed.
Coimbra: Almedina, 200. p. 1399.
PASSOSJoséJoaquimCalmondeDemocraciaparticipaçãoeprocessoInGRINOVERAda
Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel; WATANABE, Kazuo (Coords.). Participação e processo.
São Paulo: RT, 1988. p. 91.
Políticas Públicas Judiciárias & Acesso à Justiça
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A partir do século XX, o coletivo e o social passaram a ser o foco da política
governamental e legislativa dos países do mundo civilizado, ampliado o enfo-
que das novas Constituições atingindo também o direito e o dever do Estado em
reconhecer e garantir a nova estrutura exigida pela sociedade após a integração
das liberdades clássicas aos direitos sociais. Conforme Jürgen Habermas:
Essa mudança social do direito foi entendida, inicialmente, como um
processo, durante o qual uma nova compreensão instrumental do
direito, referida às ideias de justiça do Estado social vinha sobrepor-se
aomodelododireitoliberalenonalsubstituílo(6).
A política constitucional deixou de atuar na simples tarefa de declarar
direitosepassouareetiraconsciênciasocialdominantepermitindoaconcreta
participação do cidadão na sociedade, inclusive por meio da realização do direito
de ação, compreendido como direito de acesso à justiça, tornando-se objeto de
preocupação dos mais modernos sistemas jurídicos(7).
Nesse contexto, o acesso à justiça ganhou uma conotação distinta, mais
concreta, equivalente à substancialidade que se busca conferir aos direitos
sociais propostos pelo welfare state:
Não é surpreendente, portanto, que o direito ao acesso à justiça
tenha ganho particular atenção na medida em que as reformas do
welfare state têm procurado armar os indivíduos de novos direitos
substantivos [...]. De fato, o direito ao acesso efetivo tem sido progres-
sivamente reconhecido como sendo de importância capital entre os
novos direitos individuais e sociais, uma vez que a titularidade de
direitos é destituída de sentido, na ausência de mecanismos para sua
efetiva reivindicação(8).
Reconhece-se, pois, que as exigências da democracia moderna são de outra
ordem: proteção dos direitos mediante atuação do Estado e de mecanismos de
acesso à justiça.
Na atualidade a compreensão do conceito conforma-se com a moderna
percepção da função social do Estado, percebida pelos operadores do direito
brasileiro, especialmente após o ampliado enfoque trazido pela Constituição
Federal de 1988, com a inserção dos “novos direitos” (sociais, coletivos e
HABERMASJürgenDireito e democracia: entre facticidade e validade. v.2. 2. ed. Tradução de
Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. p. 125.
MARINONI Luiz GuilhermeDireitofundamental de açãoInCANOTILHO JJ Gomes
MENDES, Gilmar F.; SARLET, Ingo W.; STRECK, Lenio L. (Coords.). ComentáriosàConstituiçãodo
Brasil. São Paulo: Saraiva/Almedina, 2013. p. 359.
CAPPELLETTIMauroGARTHBryantAcessoàjustiçaTraduçãodeEllenGracieNortheet
PortoAlegreSérgioAntônioFabrisp

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