Análise do conflito e seu impacto na autonomia do paciente

Páginas69-116
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ANÁLISE DO CONFLITO E SEU IMPACTO
NA AUTONOMIA DO PACIENTE
O conito é algo natural e intrínseco à condição humana. Por isso, é neces-
sário que haja uma abordagem positiva sobre ele, tendo em vista a necessidade
de sustentabilidade das relações sociais.
Neste capítulo, inicialmente, investigar-se-á o conito a partir de seu con-
ceito e suas abordagens, a m de buscar alternativas que possam contribuir para
assegurar a autonomia do paciente, cuja diretriz será a relação médico-paciente,
a dignidade da pessoa humana e a promoção da personalidade.
Em um segundo momento, buscar-se-á demonstrar que, no Direito contem-
porâneo, o acesso à justiça transcende a noção de acesso ao Poder Judiciário. Essa
concepção abre espaço para reetir sobre alternativas aos entraves interpessoais,
o que engloba os conitos na relação médico-paciente.
Sob essa perspectiva, o estudo dos métodos adequados de tratamento e
resolução de conitos ganha destaque nesta obra. Por essa razão, neste capítulo,
estudar-se-ão alguns métodos de tratamento do conito, para que nos capítulos
seguintes possa-se analisar se a mediação pode ser um método preferencial no
tratamento e solução dos conitos entre médicos e paciente/familiares quando
da tomada de decisão sobre um tratamento de saúde continuado.
Assim, passa-se, agora, a estudar as Teorias do Conito, a m de melhor
compreender as diculdades e os problemas típicos do cenário médico-hospitalar
que podem impactar o exercício de autodeterminação do paciente quando da
tomada de decisão sobre sua saúde.
3.1 TEORIAS DO CONFLITO
Partindo-se da narrativa do caso real1 abaixo, continuar-se-á a averiguar
a hipótese deste trabalho, demonstrando-se a complexidade que permeia a
1. O casal mencionado na narrativa abaixo buscou os serviços de consultoria advocatícia junto ao
escritório em que a autora desta obra é sócia proprietária para vericar a viabilidade do ajuizamento
de uma ação judicial em face da médica que realizou o parto. Assim, foi por essa forma que esta teve
acesso as informações e os dados do caso.
MEDIAÇÃO NA RELAÇÃO MÉDICO-PACIENTE • Luiza SoaLheiro
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relação médico-paciente, especialmente, quando surgem conitos que levam
os envolvidos a enfrentarem desaos para além do campo da Medicina. Para a
preservação dos envolvidos no conito, optou-se por apresentar nomes ctícios
aos sujeitos do caso.
Isabel, 33 anos capaz e competente, decidiu, com o apoio do marido, ter um
parto humanizado. Após a constatação da gravidez, o casal procurou uma médica
que pudesse acompanhar o período de gestação e realizar o parto.
É relevante ressaltar que, antes do parto, a paciente assinou o Termo de Con-
sentimento Livre e Esclarecido (TCLE), bem como o Plano de Parto. Contudo,
foi mera formalidade documental, haja vista que o conteúdo desses documentos
não foi discutido com a gestante.
Assim, no dia do parto, que foi planejado para ocorrer em um quarto Pré-par-
to, Parto e Puerpério (PPP)2 de uma maternidade particular de Belo Horizonte/
MG, estavam presentes a paciente grávida, seu marido, uma fotógrafa, a médica
e a doula,3 as quais acompanharam o período de gestação de Isabel.
Iniciaram-se os trabalhos de parto com a paciente dentro da banheira e de-
pois com a utilização de bola suíça. Algumas horas depois, a gestante começou a
se queixar de muita dor, e a médica disse que o quadro era natural ao momento.
Após mais de 5 horas, a paciente, em extremo sofrimento, literalmente gri-
tando de dor, pediu que lhe fosse ministrada uma anestesia, o que foi prontamente
negado pela médica sob o fundamento de que, se a anestesia fosse aplicada, não
seria mais possível realizar um parto humanizado. Mesmo diante de tal justi-
cativa, a paciente conrmou seu desejo imediato de tomar a anestesia.
O marido da paciente, percebendo a angústia, a dor e o conito que se
instauravam, buscou, junto à maternidade, o apoio de uma psicóloga ou de uma
assistente social, mas, infelizmente, não obteve êxito.
A médica, percebendo que a criança estava com diculdades para nascer,
armou que iria fazer um parto fórceps, o que foi recusado pela paciente. Naquele
momento, a gestante realmente já estava totalmente desacreditada e sem conança
na médica, haja vista a postura contraditória de não lhe aplicar uma anestesia por
entender não ser um parto humanizado, mas desejar fazer um parto fórceps, o
que foge aos procedimentos de um parto humanizado.
2. Para maiores informações sobre o quarto Pré-parto, Parto e Puerpério (PPP), sugere-se a leitura da
Portaria 11/15 do Ministério da Saúde, especialmente o art. 2º, VI, que trata da temática.
3. Trata-se de uma assistente de parto que não precisa necessariamente ter formação em Medicina. A
doula, basicamente, acompanha a mulher durante o período de gestação até os primeiros meses da
criança, buscando não só orientar a mãe, mas contribuir para a criação de um ambiente favorável ao
seu bem-estar.
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3 • ANáLISE DO CONFLITO E SEU IMPACTO NA AUTONOMIA DO PACIENTE
Novamente, o marido, desesperado com toda a situação, procurou ajuda
de outro médico, que estava disponível na maternidade. Daquela vez, teve mais
sucesso, e o médico obstetra plantonista foi ao quarto. Seu posicionamento foi
no sentido de que o parto por fórceps não era recomendado e que, no caso de
Isabel, muito menos, pois a criança não estava em posição adequada para realizar
tal procedimento. Assim, os riscos à gestante e à criança poderiam ser elevados.
Por m, Isabel acabou tendo o parto de sua primeira lha como nunca desejou.
Saiu do quarto PPP e foi para o bloco cirúrgico fazer uma cesariana.
A criança nasceu com pequenos problemas respiratórios em decorrência
da demora em nascer, e Isabel não conseguiu, mesmo tendo leite, amamentar a
lha, estando hoje com depressão pós-parto.
De fato, é imensurável a dor dessa mãe que imaginou ter um parto huma-
nizado e, nas suas próprias palavras, “um momento poético” que pudesse ser
eternizado pelas fotograas,4 e acabou sendo submetida a uma cesariana não
planejada e nem desejada.
Outros detalhes poderiam ser relatados, mas os que foram expostos são
sucientes para armar que, nitidamente, houve um conito entre a médica e a
paciente, em que aquela impôs sobre esta sua própria concepção do que seria um
parto humanizado. Pior. Violou sua manifestação de vontade quanto ao desejo de
tomar uma anestesia para aliviar a dor. Violou, também, o consentimento livre
e esclarecido da paciente, anteriormente registrado de forma documental, em
não fazer um parto fórceps, quando tentou prosseguir com tal procedimento.
O uso da mediação poderia ter preservado o exercício da autonomia da
paciente? Ela poderia ter sido utilizada de forma preventiva à instauração do
conito? De que maneira? A mediação poderia contribuir para a melhoria da
comunicação entre a médica e a paciente, marido e doula no período gestacional
da paciente?
O caso em comento é pano de fundo para ilustrar uma relação conituosa
entre médico-paciente, sobretudo, por englobar questões existenciais e mostrar
a importância de se estudar as Teorias do Conito.
O caso convalida o entendimento de que pode haver vasta heterogeneidade
na relação médico-paciente a exigir um estudo interdisciplinar, ambiente em
que se investigará se a mediação poderá contribuir para o tratamento adequado
desse tipo de conito, com vistas a preservar a construção biográca do paciente.
4. Quando surgiu o entrave e o aumento de tensão entre a médica e a paciente, o marido dispensou os
serviços da fotógrafa que haviam contratado para os registros do parto humanizado.

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