A construção da autonomia privada para a tomada de decisão nos tratamentos de saúde continuados: as estratégias da mediação como um potencial meio à autodeterminação do paciente

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A CONSTRUÇÃO DA AUTONOMIA
PRIVADA PARA A TOMADA DE
DECISÃO NOS TRATAMENTOS
DE SAÚDE CONTINUADOS: AS
ESTRATÉGIAS DA MEDIAÇÃO
COMO UM POTENCIAL MEIO À
AUTODETERMINAÇÃO DO PACIENTE
No capítulo 4 desta obra, demonstraram-se diversos instrumentos normati-
vos que buscam a resolutividade consensual dos conitos tais como, a Resolução
125/10 do CNJ, o Código de Processo Civil de 2015, a Lei de Mediação e o Código
de Ética de Conciliadores e Mediadores Judiciais. Contudo, essas legislações
estão muito mais voltadas para a redução da judicialização da saúde, ou seja,
para aqueles conitos que envolvem a saúde pública e a suplementar, em que o
paciente, normalmente, aciona o Poder Judiciário em face do Estado, do que para
o tratamento dos conitos médico-paciente em si mesmos.
Nota-se que, realmente, “há uma pretensão de modicação de contexto
judicializador, especialmente, a partir das normas processuais civis, que se apre-
sentam, com maior propensão, ao estímulo à consensualidade” (VASCONCE-
LOS, 2020, p. 222), no sentido de tentar impedir ou diminuir a cultura litigiosa
já instaurada nos contextos brasileiros.
Todavia, no que se refere, especicadamente, aos conitos que se instauram
entre médico e paciente/familiares, cujo objetivo é a efetivação da autonomia
privada do paciente, ainda são escassos os focos de atenção. Por mais que existam
casos de implementação de métodos consensuais de resolução de conitos, como
a aplicação da mediação, com vistas a tratar os entraves advindos da relação mé-
dico-paciente como, por exemplo, da Câmara Permanente Distrital de Mediação
em Saúde (CAMEDIS), localizada em Brasília, a preocupação maior, ainda, é
com a diminuição da judicialização da saúde e o desafogamento das demandas
do Poder Judiciário.
MEDIAÇÃO NA RELAÇÃO MÉDICO-PACIENTE • Luiza SoaLheiro
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A busca pela redução do número de processos no âmbito do Poder Judiciário
tem objetivos e técnicas que podem não ser apropriados ao tratamento dos con-
itos que se relacionam com o propósito de promover a autonomia do paciente.
Na judicialização da saúde, a principal nalidade é garantir o cumprimento do
direito fundamental à saúde, como um mandamento geral para o Estado, em prol
dos administrados. Enm, busca-se a efetivação do direito fundamental de ter
uma prestação de saúde em face do Estado.
Já nos conitos envolvendo a autonomia do paciente, a questão é de natureza
essencialmente individual. Não se busca uma prestação de saúde, mas que a pró-
pria prestação de saúde seja realizada de acordo com a pessoalidade do paciente.
Não é possível falar em transformação da relação médico-paciente se não se
trata o conito entre as partes envolvidas. Como preconiza Vasconcelos (2020),
a judicialização da Medicina continua crescendo, justamente porque não se
tem dado atenção às peculiaridades que envolvem o contexto médico-paciente
nem criado mecanismos sucientemente ecazes ao seu amparo. Dedicar-se à
redução da judicialização da saúde e esquecer-se da crescente judicialização da
Medicina não farão com que essa realidade desapareça. Por isso, a relevância
desta pesquisa, no sentido de enfrentar esse problema, que pode ser amenizado,
ou solucionado, por meio da mediação.
Conforme já exposto, a mediação pode ser aplicada para resolver conitos
entre médicos e pacientes, ou entre médicos e familiares dos pacientes, tanto em
um processo judicial quanto em situações anteriores ao processo, mas posteriores
à instauração do conito.
Pretendeu-se abordar a mediação extrajudicial, inclusive, a que pode
ocorrer dentro dos hospitais, sem a intervenção do Poder Judiciário. Assim, a
proposta nesta obra é demonstrar que, a partir do surgimento do conito en-
tre médico e paciente, a mediação pode ser um meio potencial para garantir a
possibilidade de autogovernança do paciente, a m que ele possa tomar decisão
quanto a um tratamento de saúde continuado. Nada impede que esse método
seja aplicado também antes da instauração do conito, de modo preventivo,
como já se expôs.
A respeito do tratamento de saúde continuado ou prolongado, no capítulo
2, explicou-se que se refere a tratamento sequencial, que se prolonga no tempo.
Não se refere a atendimentos médicos pontuais ou emergências, mas a tratamen-
to que levará o médico e o paciente, ou o médico e os familiares do paciente, a
estabelecerem uma relação sequencial que se prolonga no tempo.
Nesse sentido, é necessário também relembrar o que foi dito no capítulo
2 quanto à justicativa pela escolha da mediação para tratar os conitos entre
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5 • ESTRATÉGIAS DE MEDIAÇÃO COMO AUTODETERMINAÇÃO DO PACIENTE
médico e paciente. Basicamente, podem-se apresentar dois principais motivos
para essa escolha. O primeiro deles diz respeito ao fato de que a mediação é usada
em conitos continuados, ou nos quais já exista vínculo entre as partes.
Por sua vez, o segundo motivo nasce em razão da gura do mediador, que
é um facilitador da comunicação. Exemplicando, o mediador pode, diante de
um conito, apoiar médico e paciente a compreenderem o objeto conitivo,
identicarem os interesses e as posições para que eles, por conta própria, possam
perceber as eventuais soluções para o caso. Portanto, o mediador é um “sujeito
apto a orientar a tentativa de consenso sem, contudo, interferir nos processos
dialógicos e decisionais” (VASCONCELOS, 2020, p. 216). Ele apoiará a abertura
de diálogo a m de que as partes reduzam a litigiosidade e enxerguem as alter-
nativas para as tomadas de decisões autônomas.
Nesse ponto, é importante frisar que outros métodos adequados de trata-
mento de conito também contam com a presença de um terceiro que não está
envolvido no conito, como é o caso do conciliador na conciliação e do árbitro
na arbitragem. Contudo, a simples presença de um terceiro alheio ao conito não
justica a aplicação do método aos conitos médico-paciente, pois é necessário
que a função do terceiro não viole a construção da autonomia do paciente, o que
não se vislumbra na conciliação, por exemplo.
De fato, a conciliação não se mostra muito adequada às relações continu-
adas entre médico e paciente, porque o nível de interferência do conciliador
pode prejudicar a tomada de decisão autônoma e o livre desenvolvimento da
pessoalidade pelo paciente.
Além disso, como se explicou no capítulo sobre a mediação no Brasil, os
princípios da mediação como, por exemplo, autonomia, oralidade e informali-
dade, estão totalmente alinhados com a proposta deste estudo. Em outras pala-
vras, esses princípios coadunam com o estabelecimento de uma melhor relação
entre médico-paciente, justicando a escolha do método para tratar os conitos
provenientes dessa relação.
A mediação mostra-se, assim, apropriada às perspectivas teóricas do Estado
Democrático de Direito, em que se inclui a própria repersonalização do Direito
Civil, uma vez que é um método que preconiza a autonomia dos sujeitos. Portanto,
na relação médico-paciente, instaurado o conito, a mediação responderá aos
anseios da dignidade da pessoa humana, haja vista que permitirá que o paciente
tenha meios para a construção de sua autobiograa.
Dessa forma, ainda que a proposta da mediação, inicialmente, possa parecer
ou soar inalcançável, neste capítulo, pretende-se conrmar que não se trata de
utopia, mas de prática concretamente possível.

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