A autonomia na relação médico-paciente

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A AUTONOMIA NA RELAÇÃO
MÉDICO-PACIENTE
A proposta, neste capítulo, é buscar compreender a evolução pela qual passou
a relação médico-paciente, desde a concepção verticalizada até sua horizontali-
dade, que ainda passa por desaos, para se manter afastada de posições médicas
hierárquicas em desfavor do paciente.
A visão histórica permite uma análise mais ampla do conito médico e
paciente/família. Como será demonstrado, as raízes dos entraves comuns dessa
relação estão imbrincadas na própria evolução histórica da Medicina. É realmente
“difícil compreender as coisas quando não se conhece sua gênese, daí a impor-
tância do enfoque histórico dos problemas. [...] A Medicina só é compreensível
no interior da história1 (GRACIA, 2010, p. 33).
Devido às peculiaridades culturais e sociais e ao próprio objetivo geral da
pesquisa, optou-se por apresentar uma visão geral da evolução histórica da Me-
dicina em nível mundial, concedendo maior destaque, em seguida, ao contexto
brasileiro.
Logo depois, aprofundar-se-á o estudo sobre o princípio da autonomia pri-
vada de modo a demonstrar o contexto histórico e jurídico em que a autonomia
se desenvolveu, seja no campo civil-constitucional, seja nas searas do Biodireito
e da Bioética, o que contribuirá para melhor entendimento sobre a autonomia
na relação médico-paciente/família.
Ademais, a investigação acerca da autonomia privada é fundamental tanto
para compreender o problema da pesquisa quanto para guiar o caminho teórico
até o objetivo geral proposto. Da mesma forma, a contextualização da relação
entre médico e paciente/família, do momento pré-cientíco da Medicina até
a contemporaneidade, constrói um cenário favorável para entender o conito
1. Não se pode se esquecer de que “a Medicina, mais que uma ciência ou um saber puro, é uma prática
social, a do cuidado da saúde dos indivíduos e dos grupos sociais. Ocorre que, enquanto prática so-
cial, necessita e depende de muitos fatores – econômicos, políticos, culturais, cientícos e técnicos. É
impossível entender o desenvolvimento da Medicina em qualquer período histórico [...] sem situá-la
em relação a todo esse complexo contexto” (GRACIA, 2010, p. 49).
MEDIAÇÃO NA RELAÇÃO MÉDICO-PACIENTE • Luiza SoaLheiro
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que pode se estabelecer entre eles, havendo a possibilidade de gerar impactos no
exercício de autodeterminação do paciente. Isso servirá de meio hábil para se
estabelecer uma proposição razoável que venha a convalidar ou refutar a hipótese
apresentada nesta obra.
Por último, abre-se um parêntese, antes de se iniciar a análise da relação
médico-paciente, para dizer que não se busca, neste capítulo nem nos demais,
julgar ou manchar a imagem dos prossionais da saúde, sendo a proposta, ao revés,
de trazer reexões que possam melhorar os vínculos entre esses prossionais, os
pacientes e seus familiares.
2.1 A EVOLUÇÃO DA RELAÇÃO MÉDICO-PACIENTE
A relação médico-paciente pode ser retratada por diversas abordagens e a
partir de diversos contextos, desde a Antiguidade2 até as inovações trazidas pela
Bioética no século XXI.
Apesar das peculiaridades socioculturais, a história da Medicina no mundo
traz importantes implicações para as relações médico-pacientes no Brasil. Por
isso, justica-se o seu estudo, ainda que sucintamente, neste momento.
Gracia (2010) explica a evolução pela qual a Medicina percorreu até os
dias atuais, tendo como pano de fundo quatro períodos: a época pré-histórica, a
sociedade agrícola, a sociedade industrial e a sociedade pós-industrial, também
chamada de sociedade do bem-estar ou de consumo.
Na sociedade pré-histórica, os seres humanos praticamente não conseguiam
transformar recursos em possibilidades, ou seja, viviam do que a natureza es-
pontaneamente produzia. Por isso, a população tinha um caráter nômade, pois,
uma vez esgotados os recursos em dada região, buscavam nova localidade para
exploração. Os povos pré-históricos também tinham uma Medicina “muito ele-
mentar. À mais primitiva deu-se o nome de ‘medicina empírica, do tipo que já
possuem mesmo os animais” (GRACIA, 2010, p. 39). Essa Medicina era embasada
na experiência prática. Por exemplo, testavam ervas e encontram seus efeitos
2. A história da Medicina pode ser contada a partir da Antiguidade, “desde a prática médica mítica à
racionalidade grega, passando pelas percepções da doença em sua analogia ao pecado na Idade Média,
e pelo Renascimento e Iluminismo, quando a primazia da razão ensejou a valorização do saber no plano
mundano. Ato contínuo segue-se à transformação positivista da Medicina com seus experimentos
e fragmentação do saber iniciada entre ns do século XVIII e meados do século XIX, chegando ao
processo cientíco-tecnológico, sua intervenção desmedida no século XX e ao questionamento da
ciência seguido do surgimento da ‘bioética’, para que, logo após, inicie-se a proposição de contribuição
da bioética para uma tentativa de simetrização da relação entre médicos e pacientes” (VASCONCELOS,
2020, p. 3). Vale destacar que a falta de simetria na relação médico-paciente, não raro, nasce em razão
do domínio do conhecimento pelo médico e pelo excesso de poder desses prossionais.
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2 • A AUTONOMIA NA RELAÇÃO MÉDICO-PACIENTE
entre erros e acertos.3 “É possível que também tenham chegado a conhecer certas
técnicas cirúrgicas muito elementares, como a sutura de ferimento e a redução
de fraturas ou luxações” (GRACIA, 2010, p. 40).
Com a descoberta do fogo, melhoraram a alimentação e começaram a criar
rituais religiosos ligados ao sepultamento dos mortos, fatos que impactaram
na Medicina, “já que a partir desse momento a medicina empírica começou a
coexistir com outra, de caráter religioso ou crédula, duas dimensões que jamais
desapareceriam na história da humanidade” (GRACIA, 2010, p. 40).
Com o passar do tempo, o homem passou a ter maiores habilidades em
transformar recursos em possibilidades, ou seja, começou a compreender melhor
o cultivo da terra e a domesticar animais, eliminando a necessidade de migração,
haja vista que começou a gerar recursos para além dos que os mantinham sua
subsistência. Esse cenário caracterizou a chamada sociedade agrícola, período
em que “as instituições culturais da sociedade agrícola geraram um determinado
tipo de medicina e assistência médica [...] uma de suas características é a estreita
relação que mantém com as instituições religiosas” (GRACIA, 2010, p. 42). Esse
cenário perdurou até a Revolução Industrial, na segunda metade do século XVIII,
que inaugurou o período da sociedade industrial.
A Revolução Industrial trouxe um novo modo de transformar os recursos
em possibilidades, isto é, a implantação de várias indústrias de carvão e do aço
foi essencial para o desenvolvimento da sociedade. As pessoas abandonavam a
agricultura do campo para buscar, nas fábricas das cidades, novas oportunidades.
Com efeito, o êxodo rural, característico desse período, fez crescer a população
nos subúrbios das cidades e, por consequência, levou ao surgimento de diversas
doenças em razão das condições insalubres dos lugares. “Nasceu também uma
nova medicina [...]. Com o aumento da riqueza, mais dinheiro foi carreado para
as universidades e para centros de investigação [...]. O exercício da medicina, por
sua vez, tornou-se especializado” (GRACIA, 2010, p. 43).
A Medicina moderna4 traz uma nova visão aos hospitais, os quais deixam
de ser vistos como instituições de caridade e passam a ser considerados como
centros de assistência médica. Desloca-se do poder religioso para o poder esta-
tal, ou seja, se antes os sacerdotes tinham controle das instituições de saúde, na
sociedade moderna essa função passa a ser do Estado.
3. “A primeira medicina foi algo desse tipo. À semelhança dos animais, os primeiros seres humanos
aprenderam escolher certas ervas com ação purgativa ou laxativa, que, parece, foram os primeiros
remédios. Não à toa, a palavra grega phármakon possuía originalmente este signicado: purgante ou
laxante” (GRACIA, 2010, p. 39-40).
4. “A medicina moderna surgiu em ns do século XVIII e se desenvolveu por todo o século XIX” (GRA-
CIA, 2010, p. 43).

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