A mediação no Brasil

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A MEDIAÇÃO NO BRASIL
Nos capítulos anteriores, evidenciou-se que a chamada modernidade líquida
é ambiente no qual, cada vez mais, as relações interpessoais tornam-se complexas,
favorecendo o surgimento de conitos em diversos contextos, inclusive entre
médicos e paciente/familiares.
Além disso, estudaram-se as Teorias do Conito, destacando-se que, hoje,
não se busca mais a eliminação do conito do convívio social, pois se sabe que
ele é natural à existência humana. O que se almeja é afastar a visão tradicional
de excluir o conito e reconhecer que ele pode ser visto positivamente, isto é, o
conito pode assumir uma concepção construtiva, uma vez que traz oportuni-
dades de crescimento, ganhos mútuos e previne estagnações, bem como pode
ser propulsor de mudanças jurídico-sociais.
Uma vez que o conito é inevitável, e os envolvidos normalmente não con-
seguem solucioná-lo ou geri-lo por conta própria, busca-se o Poder Judiciário.
Contudo, não se pode ter uma visão limitada de que o acesso à justiça seja tão
somente a garantia ao cidadão do direito de ajuizar processos, o que representaria
ignorância e aprisionamento, como bem ensina Platão no Mito da Caverna.1
Segundo Galvão (2015), esse diálogo é um dos mais importantes de Platão
e boa parte de sua obra pode ser sintetizada nele.
Platão buscou descobrir, por meio da República,2 onde nasceu o conceito
de justiça. No plano das ideias, ele cria uma cidade para capturar o surgimento
da necessidade da justiça, que é analisada por ele na perspectiva fora e dentro do
homem, de forma microcosmo-macrocosmo.
O lósofo acreditava que o que está fora está dentro, ou seja, o mundo ma-
nifestado existe para que você se veja projetado do lado de fora. Ele cria a ideia
de uma cidade (República) e investiga, em grandes dimensões, a noção de justiça
(macrocosmo) para que o homem encontre depois a justiça dentro de si mesmo
(microcosmo).
1. No que diz respeito ao assunto, vale assistir, no You Tub e , à aula da professora Lúcia Helena Galvão
Mito da Caverna de Platão: simbolismo e reexões, lecionada em 2015 e disponível em: https://youtu.
be/p7ljFZYlq88. Acesso em: 05 abr. 2021.
2. República: res pública, expressão em latim que signica, em tradução livre, coisa pública.
MEDIAÇÃO NA RELAÇÃO MÉDICO-PACIENTE • Luiza SoaLheiro
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Resumidamente, o Mito3 da Caverna é um diálogo entre Sócrates e Glauco.
Sócrates convida Glauco a imaginar homens e mulheres presos por correntes,
desde o nascimento, em uma caverna escura. Esses prisioneiros tinham apenas
a projeção de sombras nas paredes da caverna, provenientes de uma fogueira da
qual não tinham conhecimento da existência. Tudo o que conheciam eram essas
projeções, movimentos de pessoas, animais e objetos, ou seja, só tinham acesso
a essas sombras que iam e viam:
Sócrates – Agora, com relação à cultura e à falta dela, imagine nossa condição da seguinte
maneira. Pensem homens encerrados numa caverna, dotada de uma abertura que permite
a entrada de luz em toda a extensão da parede maior. Encerrados nela desde a infância,
acorrentados por grilhões nas pernas e no pescoço que os obrigam a car imóveis, podem
olhar para frente, porquanto as correntes no pescoço os impedem de virar a cabeça. Atrás
e por sobre eles, brilha a certa distância uma chama. Entre esta e os prisioneiros delineia-se
uma entrada em aclive, ao longo da qual existe um pequeno muro, parecido com os tabiques
que os saltimbancos utilizam para mostrar ao público suas artes (PLATÃO, 2006, p. 44).
Sócrates, ao usar essa metáfora, pede a Glauco que imagine que um dos pri-
sioneiros seja libertado, tendo a possibilidade de curar-se de sua ignorância a partir
da saída da caverna. “Um prisioneiro que fosse libertado e obrigado a se levantar,
a virar a cabeça, a caminhar e a erguer os olhos para a luz” (PLAO, 2006, p. 45).
No primeiro momento, a claridade solar causa forte incômodo ao prisionei-
ro, mas, depois de ele se acostumar, encanta-se com a diversidade de cores, aromas
e a vida fora da caverna. Diante de tamanho contentamento, o prisioneiro resolve
voltar à caverna para contar a experiência a seus companheiros, na esperança de
que eles também pudessem experimentar aquela liberdade. Mas, ao contrário
do que se possa imaginar, ele não foi bem recebido. Ao revés, foi ridicularizado e
visto como louco. Como os prisioneiros poderiam acreditar naquela nova visão
de mundo se passaram a vida toda acorrentados, tendo como realidade apenas
as sombras projetadas nas paredes da caverna?
Alocando a referência da Alegoria da Caverna aos tempos atuais, pode-se
armar que ainda, hoje, a sociedade está presa em uma caverna, onde ignora as
tentativas de aprendizado.
A mediação pode ser encarada como aquele prisioneiro que volta à escuridão
da caverna com as boas novas, apresentando a possibilidade de tratar os conitos
para além das limitações impostas pelo Poder Judiciário. Assim, a mediação
pode ser vista, simbolicamente, como a fogueira ou a luz solar, mencionada por
3. Segundo os ensinamentos de Galvão (2015), os mitos são arquétipos, modelos da condição humana.
Os mitos se vivem, eles não são de um tempo passado, são atemporais. Enquanto o homem for homem
e lutar contra as mesmas sombras, aquele mesmo mito funcionará.
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Platão, a esperança de luz para os diversos conitos estabelecidos em sociedade,
nos quais se incluem os conitos entre médico e paciente.
A mediação é um método que envolve o reconhecimento mútuo, em que os
envolvidos são estimulados ao exercício da alteridade, a reconhecerem seu próprio
lugar e o do outro, bem como a identicarem possíveis valores comuns para que
se construa a possibilidade democrática de dialogar e compartilhar soluções.
Acreditar que o acesso à justiça é tão somente proporcionar ao cidadão o
direito de ajuizar uma ação e que o direito à saúde é a mera assistência médica
e prescrição de medicamentos é estar preso à escuridão da caverna de Platão,
acorrentado à ignorância que impossibilita enxergar para além das sombras
projetadas na parede daquele ambiente.
“O direito à saúde transcende a cura da moléstia. Na verdade, funda-se, emi-
nentemente, na prestação de um serviço de qualidade que priorize a dignidade da
pessoa humana e o acompanhamento integral do paciente” (ANDRADE, 2007, p. 81).
Com efeito, a claridade, fora da caverna, traz a possibilidade de ampliar a
consciência da mesma forma que a mediação possibilita, aos envolvidos em um
conito, enxergar para além das denições de ganhador versus perdedor, típicas
de um processo judicial.
A mediação é um mecanismo “de auxílio nesta prática da saúde, que prioriza
o indivíduo e a qualidade das relações, estimulando e desenvolvendo nas pessoas
a participação ativa, a consciência da realidade, a ponderação das diculdades
do outro e o respeito pelas diferenças” (ANDRADE, 2007, p. 84).
Assim, caberá a cada um dos envolvidos o esforço de quebrar suas próprias
correntes e lidar com o dilema enfrentado pelo prisioneiro que saiu da caverna,
qual seja, voltar ou não para a escuridão da caverna ou superar o desconforto
inicial que a luz da razão pode causar à visão e seguir o caminho da sabedoria.
Buscando romper as sombras da caverna e seguir a luz do conhecimento,
defende-se a utilização da mediação nos conitos entre médicos e pacientes/
familiares como um meio potencial à autodeterminação do paciente para a to-
mada de decisão em tratamentos de saúde continuados. Portanto, neste capítulo,
estuda-se a mediação no Brasil, destacando-se suas abordagens e seu uso no
âmbito da saúde brasileira.
4.1 AS ABORDAGENS SOBRE A MEDIAÇÃO
A mediação, como método adequado de tratamento de conitos, baseia-se
em uma comunicação ética, que proporciona aos envolvidos a possibilidade de
assumirem, por meio da autonomia, a própria responsabilidade da gestão e/ou
solução do conito.

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