Aos Fundamentos e Ameaça aos Avanços Conquistados pela Lei n. 10.803/2003

AutorAugusto Sérgio de Paula Ferreira
Páginas100-109

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Augusto Sérgio de Paula Ferreira 1

Introdução

Com o marco da contemporaneidade, os avanços tecnológicos, científicos e jurídicos, as relações inter-pessoais ganharam novos contornos, seja no âmbito comercial, social, familiar ou trabalhista, alterando, inclusive, suas formas de exploração. A título exemplificativo, pode-se citar, no Direito Brasileiro, a instituição da prevalência da livre-iniciativa sobre o monopólio nas relações de comércio, a elevação do racismo como crime imprescritível, o reconhecimento da igualdade formal entre homem e mulher, assim como a busca pela igualdade formal e material entre ambos, a criação de tipos penais voltados especificamente aos abusos do seio familiar, tal como o crime de feminicídio e a Lei Maria da Penha, a vedação à pena de trabalho forçado e a proibição de qualquer outra forma de trabalho em condição análoga à de escravo2.

Essa evolução motivou o legislador a criar e ampliar o rol do art. 149 do Código Penal, referente às formas modernas de escravidão, abrindo mão da visão ultrapassada dos séculos passados, marcada ideologicamente pela existência de grilhões, opressão, trabalho obrigatório, sanção física e subjugação quase total do trabalhador. A Lei n. 10.803, de 2003, estabeleceu que tal crime é configurado ante a ocorrência de condições degradantes, jornadas exaustivas, trabalho forçado, servidão por dívida, cerceamento ao trabalhador do uso de qualquer meio do transporte com a finalidade de retê-lo no lugar de trabalho, vigilância ostensiva e apoderação de documentos pessoais ou objetos do trabalhador. Assim, a tipificação da escravidão moderna3 ganhou novos contornos, salvaguardando também o princípio da dignidade humana e o direito ao trabalho digno.

O presente artigo analisa, portanto, os avanços gerados pela Lei n. 10.803 e sua correlação com Projeto de Lei n. 3.842, de 2012, que tem como finalidade esvaziar o tipo penal supracitado, atrelando-o essencialmente à restrição à liberdade de locomoção. Além disso, é dado enfoque aos principais fundamentos do Projeto de Lei, de forma crítica, a fim de analisar a existência ou não suporte fático e justificativa capaz de sustentar sua proposição.

Revolução legislativa promovida pela lei n 10.803/2003 e o resguardo aos direitos fundamentais

Ante a ausência de definição do crime de redução à condição análoga à de escravo presente no Código Penal de 1940, coube, durante anos, à doutrina e à jurisprudência sua conceituação, consubstanciando-se majoritariamente a definição de trabalho forçado apresentada pela OIT. A constatação do labor escravo no Judiciário era ínfima, de modo que o primeiro registro de acusação pública pelo delito ocorreu apenas em 19714, aproximadamente 31 anos após a vigência do Código. Já os doutrinadores, em grande parte, corroboravam com a visão de Nelson Hungria e Heleno Cláudio Fragoso, os quais acreditavam que a restrição

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da liberdade de locomoção do trabalhador era fundamental para a configuração do delito5.

Diferentemente desses autores, havia aqueles que defendiam a interpretação das hipóteses de forma mais ampla, uma vez que até então o tipo penal era aberto, dependendo, portanto, da atividade interpretativa para sua aplicação. Dentro desse grupo, encontravam-se membros do Ministério Público do Trabalho, Poder Judiciário Federal, Polícia Federal, Ordem dos Advogados do Brasil, entre outros institutos, que se reuniram nos dias 6 e 7 de novembro de 2000 no Seminário Internacional “Trabalho Forçado – Realidade a ser Combatida” para debater a utilização de trabalhadores com intermediação de gatos, a servidão por dívida e o aliciamento de trabalhadores de municípios distantes do local de prestação do serviço ante promessas falsas. O resultado do debate foi materializado na Carta de Belém6, que propõe um conceito mais adequado à realidade vigente:

I.2) O “trabalho forçado”, denominação genérica que abrange o trabalho escravo stricto sensu, servil e degradante [...] I.4) Assim, o trabalho forçado, em seu conceito mais amplo, deve ser entendido como aquele que contempla, dentre outras, as seguintes situações: • Utilização de trabalhadores, através de intermediação de mão-de-obra pelos chamados “gatos” e pelas cooperativas fraudulentas; • [...] • Servidão de trabalhadores por dívida, com o cerceamento de sua liberdade de ir e vir e o uso de coação moral ou física, para mantê-los no trabalho; • Submissão de trabalhadores a condições precárias de trabalho, pela falta ou inadequado fornecimento de alimentação sadia e farta e de água potável; • Fornecimento aos trabalhadores de alojamentos sem condição de habitabilidade e sem instalações sanitárias adequadas; • Falta de fornecimento gratuito aos trabalhadores de instrumentos para prestação de serviços, de equipamentos de proteção individual e de materiais de primeiros socorros; • Não utilização de transporte seguro e adequado aos trabalhadores; • Não cumprimento da legislação trabalhista, desde o registro do contrato na carteira de trabalho, passando pela falta de cumprimento das normas de proteção à saúde e segurança dos trabalhadores, até a ausência de pagamento da remuneração a eles devida; • Coagir ou induzir trabalhador a se utilizar de armazéns ou serviços mantidos pelos empregadores ou seus prepostos.

A Carta de Belém serviu como ponto de partida para que, em julho de 2001, o Procurador-Geral do Trabalho, Doutor Guilherme Mastrichi Basso, instituísse, através das Portarias ns. 221 e 230, uma Comissão Temática dentro do âmbito do Ministério Público do Trabalho voltada à escravidão moderna. Essa comissão tinha como objetivo elaborar estudos e indicar políticas para atuação no setor trabalhista voltado ao combate ao trabalho forçado e à regularização do trabalho indígena. Tendo em vista que seus resultados formulados foram insertos, visando harmonizar as ações desenvolvidas sobre trabalho escravo no MPT, sua relação com outros órgãos e possibilitar o engajamento de seus membros na defesa do ordenamento trabalhista e na proteção dos direitos do cidadão, o Procurador-Geral do Trabalho à época criou em setembro de 2002 a Coordenadoria Nacional de Trabalho Escravo7 (CNCTE)8.

Como consequência desses movimentos e dos avanços nacionais e internacionais em matéria de direitos humanos, foi promulgada em 2003 a Lei n. 10.803 com o objetivo único de alterar o art. 149 do Código Penal, estabelecendo novas hipóteses de configuração do crime, que passou a incluir a submissão do trabalhador a trabalhos forçados, jornada exaustiva, condições degradantes de trabalho e servidão por dívida, incorrendo na mesma pena de 2 a 8 anos aquele que, com a finali-dade de reter o trabalhador, cerceia o uso de qualquer meio de transporte, mantém vigilância ostensiva no local de labuta e se apodera de documentos ou objetos pessoais do trabalhador.

Tal como enunciado pela Ministra Rosa Weber no julgamento do Inquérito n. 3.412, a configuração dada em 2003 se manifestou necessária, pois:

A “escravidão moderna” é mais sutil do que a do século XIX e o cerceamento da liberdade pode decorrer de diversos constrangimentos econômicos e não necessariamente físicos. Priva-se alguém de sua liberdade e de sua dignidade tratando-o como coisa e não como pessoa humana, o que pode ser feito não

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só mediante coação, mas também pela violação intensa e persistente de seus direitos básicos, inclusive do direito ao trabalho digno. A violação do direito ao trabalho digno impacta a capacidade da vítima de realizar escolhas segundo a sua livre determinação. Isso também significa “reduzir alguém a condição análoga à de escravo.9

A inclusão de condições degradantes e jornadas exaustivas como elementos capazes de caracterizar o trabalho escravo moderno visa simultaneamente à proteção de direitos garantidos na Declaração Universal dos Direitos Humanos e prima pelos direitos e garantias fundamentais positivados pela Constituição de República Federativa do Brasil de 1988, especificamente quanto à dignidade da pessoa humana e direito ao trabalho digno. A Magna Carta, em seu art. 1º, inciso IV, coloca o trabalho no posto de direito social, dotando como finalidade do Estado Democrático de Direito a preservação de seus valores, vedando, assim, a submissão de qualquer indivíduo a tratamento desumano ou degradante, que pode ser entendido nesse contexto como todo aquele que “viola o princípio da dignidade da pessoa humana, por não garantir os direitos mínimos para resguardar a dignidade do cidadão”10, manifesto, in casu, pelo trabalhador.

Tamanha foi a revolução causada pela conceituação nacional nesse tema que a OIT e a ONU11 se posicionaram quanto ao papel do Brasil como referência no cenário internacional no combate ao trabalho escravo, reconhecendo as boas práticas desenvolvidas pelo Brasil. Tais práticas vão além do âmbito legislativo, atingindo também o cenário prático por meio dos Grupos Móveis de Fiscalização, da instituição de Planos Nacionais de Combate ao Trabalho Escravo, da criação do CONATRAE, dos COETRAEs, do Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo e da “PEC do Trabalho Escravo”, além da implementação do mecanismo de controle social chamado “Lista Suja”. O conjunto desses fatores permite inferir a importância que foi dada nacionalmente durante anos ao combate a essa forma de exploração do labor, hoje em decadência, e que precisa ser reforçada.

Projeto de lei n 3.842, de 2012: fundamentação e críticas...

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