(Contra) Reforma Trabalhista: Reflexões sobre a Jornada Exaustiva e o Esvaziamento do Conceito de Trabalho Escravo

AutorMarianna Gomes Silva Lopes - Paula Pereira Saraiva Sena
Páginas110-117

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Marianna Gomes Silva Lopes 1

Paula Pereira Saraiva Sena 2

Introdução

A redação original do Código Penal, que entrou em vigor na década de 1940, tipificava, no art. 149, o crime de redução à condição análoga à de escravo, cominando pena de 2 a 8 anos de reclusão3. Tal crime era considerado de tipo penal aberto, pois dependia do conceito do que seria condição de escravo. Considerando que no regime de escravidão que perdurou no Brasil até 1988, ano de assinatura da Lei Áurea, um escravo era tido como objeto de seu senhor e tinha sua liber-dade cerceada, muitas vezes, com o uso de correntes e grilhões, eram raros os casos em que se reconhecia o ilícito previsto no referido art. 149.

Com efeito, o bem jurídico tutelado pelo artigo em questão era a liberdade e, assim, o crime de reduzir alguém à condição análoga à de escravo, para ser reconhecido, dependia de uma comparação com a situação à que os escravos se encontravam, a saber, restrição da liberdade e imposição de maus-tratos comuns ao século XIX.

Em 1957 e 1965, respectivamente, o Brasil ratificou as Convenções ns. 29 e 105, da Organização Internacional do Trabalho (OIT), as quais, objetivando a erradicação do trabalho escravo, determinam que todos os países-membros da OIT se obriguem a suprimir de seus territórios e a tomar medidas eficazes na abolição do trabalho forçado ou obrigatório4.

Em 1995, foi levado à Corte Interamericana de Direitos Humanos o caso “José Pereira”, um trabalhador submetido a condições análogas às de escravo. Contratado para trabalhar na Fazenda Espírito Santo, no estado do Pará, através de um aliciador (“gato”), ele foi submetido a jornadas extenuantes, violência física e psicológica. Ao se propor a fugir destas condições, José Pereira foi perseguido pelo “gato” da Fazenda, sendo atingido por um disparo de arma de fogo em seu olho. Apesar disto, conseguiu fugir e denunciar as condições de trabalho às quais era submetido na Fazenda.

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Diante da inércia dos órgãos brasileiros frente à denúncia de José Pereira, ONG’s apresentaram o caso à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, tendo o Brasil se comprometido a reparar financeiramente os danos causados ao trabalhador e promover ações mais enérgicas no combate do trabalho em situação análoga ao de escravo.

Mais tarde, em 1998, a OIT adotou a Declaração sobre os Princípios e Direitos Fundamentais no Trabalho, que, por entender tratar-se de direitos fundamentais do homem, estipula o dever de os países signatários eliminarem todas as formas de trabalho forçado ou obrigatório, independentemente de ratificação das Convenções existentes quanto ao tema5. Naquele mesmo ano, o Brasil assinou a Declaração Sociolaboral do Mercosul, se comprometendo, mais uma vez, a erradicar o trabalho forçado ou obrigatório e a respeitar os Tratados Internacionais sobre Direitos Humanos6.

O contexto internacional de combate ao trabalho escravo contemporâneo, aliado à repercussão do caso José Pereira, levou o legislador brasileiro a alterar a redação do art. 149 do Código Penal, por meio da Lei n. 10.803/2003, de forma que no dispositivo passou a constar:

Art. 149. Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto: Pena – reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à violência. § 1º Nas mesmas penas incorre quem: I – cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho;

II – mantém vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apodera de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho.

§ 2º A pena é aumentada de metade, se o crime é cometido:

I – contra criança ou adolescente;

II – por motivo de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem.

Assim, como se vê, o ordenamento jurídico brasileiro, a partir de 2003, avançou no que diz respeito à conceituação do crime, passando a prever quatro tipos diferentes de modalidades de trabalho análogo ao de escravo. São eles: a) o decorrente de trabalhos forçados, b) o realizado em jornadas exaustivas, c) o que ocorre em condições degradantes ou d) a servidão por dívidas.

Dessa forma, os tomadores de serviços autuados por submeterem seus trabalhadores a circunstâncias tais que, sob qualquer das modalidades previstas no art. 149 do Código Penal, coloquem o trabalhador em estado de sujeição total, suprimindo direitos trabalhistas elementares, estão sujeitos às sanções cabíveis nas searas penal e trabalhista.

O bem jurídico tutelado, então, deixa de ser, simplesmente a liberdade do indivíduo, e passa a ser a sua dignidade, o que, por óbvio, também inclui o direito de ir e vir. A partir de 2003, o trabalho análogo ao de escravo no Brasil não é tão somente aquele de difícil caracterização, em que os trabalhadores se encontrem privados da liberdade e submetidos a maus-tratos, e sim também aquele que, sob qualquer das formas tipificadas, retire do sujeito a sua capacidade de autodeterminação.

Seja pela submissão a jornadas exaustivas, a trabalhos degradantes e forçados ou a imposição de servidão por dívidas, entende-se que o trabalhador se encontra privado de decidir por si mesmo. Nessa condição, trabalhando com a supressão de direitos básicos, objeto de outra vontade que não a sua, vê a sua dignidade violada,

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não por fruto de uma escolha racional que fez, como se poderia alegar, pois em meio à desigualdade social característica do país, mesmo que ele opte por trabalhar sujeito à tal exploração, a escolha se revela viciada. Eis por que, o consentimento da vítima no crime em comento é irrelevante para afastar a responsabilidade do autor.

Carlos Henrique Borlido Haddad destaca que:

É bastante provável que, entre as condições de subsistência dos trabalhadores ‘resgatados’ e aquelas existentes no local de trabalho, não haja muita distinção. Tanto em sua residência, precariamente edificada, sem condições mínimas de salubridade e conforto, quanto no ambiente de trabalho, perceber-se-á a semelhança das situações. Se miserável é em casa, miserável continuará no local de trabalho, o que obstaria em se falar na existência de aviltamento ou rebaixamento. A grande diferença, contudo, reside na exploração a que fica submetido no ambiente de trabalho. A situação de indignidade experimentada no lar é fruto de deficiências individuais e sociais muitas vezes insuperáveis. A indignidade vivida no ambiente de trabalho é resultado da exploração excessiva e irregular da mão de obra. O trabalho, que deveria funcionar como meio de libertação para alcançar melhor padrão de vida, não o propicia e, em si, é mal que contribui para a perpetuação das condições degradantes de vida do trabalhador”. (HADDAD, 2013, p. 57.)

A dignidade da pessoa humana situa-se em nossa Constituição como direito fundamental7, mas também representa um conceito jurídico indeterminado, na medida em que para ela existem diversas definições e a noção de “vida digna”, muitas vezes, é relativa. É comum, portanto, que os autores se utilizem da concepção do chamado “mínimo existencial” quando se trata de violação da dignidade. É dizer, existe uma condição mínima, em termos de direitos, de situação financeira, alimentar, entre outros, para que alguém possa viver e, garantindo-se isso, haverá respeito à dignidade.

Para o filósofo Immanuel Kant, seres racionais devem ser tratados como fins e nunca como meios. Kant acreditava que a dignidade tem um fim em si mesma, é única e insubstituível e os seres humanos, detentores dessa dignidade, possuem um valor intrínseco. Assim, em uma das formulações de seu imperativo categórico, afirmou que:

Age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio. (KANT, 2007, p. 69.)

O que Kant concebeu, em 1785, quando lançava a primeira edição da “Fundamentação da Metafísica dos Costumes”, como uma Lei fundamental da moralidade da qual derivam todas as nossas relações e obrigações é que os humanos nunca podem ser usados como meios para atingir fins visados por outras pessoas, ou seja, cada pessoa, por possuir dignidade, possui valores e desejos, é livre para tomar suas próprias decisões, elaborar seus projetos de vida e guiar-se por meio da razão. Assim, seu valor é absoluto e não pode servir como objeto de manipulação para quem quer seja na busca de seus próprios intentos, independentemente de quão bons ou caridosos possam parecer.

Nesse sentido, o trabalho escravo de alguém viola sua dignidade, o coloca na posição de mero objeto, meio para consecução dos objetivos do empregador e retira dele a capacidade de autodeterminação, o que deve ser coibido pela Lei.

A jornada exaustiva e a (contra) reforma trabalhista

De acordo com José Cláudio Monteiro de Brito Filho, a jornada...

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