As doxas do sistema de justiça na proteção à vítima da violência doméstica

AutorRejane Zenir Jungbluth Teixeira Suxberger
Ocupação do AutorDoutoranda em Ciências Sociais, linha 'Gênero e Igualdade', pela Universidade Pablo de Olavide (Espanha)
Páginas123-256
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As doxas do sistema de
justiça na proteção à vítima
da violência doméstica
O sistema de justiça com a judicialização das condutas crimi-
nosas, se apresenta como um dos meios em que é possível romper
com o ciclo da violência. Por intermédio da lei se espera uma mu-
dança social, capaz não apenas de alterar a situação de violência
vivenciada pela vítima, mas também visa combater as discrimina-
ções por motivo de sexo, penalizar violações dos direitos da mulher
e punir a violência contra elas investida (SEVERI; CAMPOS, 2018, p.
971).
A partir daí é necessário examinar como o sistema de justiça,
mediante suas práticas e discursos, sem levar em conta as perspec-
tivas de gênero e as intervenções feministas, se apresenta como ins-
trumento de mudança na vida das vítimas e agressores. A violência
doméstica necessita de casos representativos na sociedade em que
ocorre para que alcance alguma credibilidade (TELES, 1993, p. 130-
131), considerando que as decisões se apresentam com uma condes-
cendência social em prol da violência. À vista disso, neste capítulo,
além de trazer o estudo de caso, analiso os discursos e práticas dos/
as operadores/as do sistema de justiça, com as observações aferidas
na vítima e agressor, qual olhar protetivo faltou no percurso dessa
mulher que buscou o sistema de justiça. Para isso, trago antes, os
discursos da academia na área da violência doméstica e como uma
decisão judicial pode deixar de ser efetiva na análise das provas em
se tratando de um processo de violência contra a mulher no âmbito
doméstico.
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Coleção Criminologia, Direito Penal e Política Criminal
Violência contra a mulher e o sistema de justiça: epistemologia feminista em um estudo de caso
REJANE ZENIR JUNGBLUTH TEIXEIRA SUXBERGER
1. O caso: ausência de violência para o
sistema de justiça e morte para a vítima
O presente estudo elegeu um caso específico colhido da Justi-
ça do Distrito Federal. A problematização de caso único atende aos
objetivos da presente investigação, pois o trabalho se debruça sobre
o modo de construção dos discursos e práticas a partir das doxas. Por
isso, conquanto representativo da realidade dos casos, em geral, do
Brasil, não se evidencia maiores riscos metodológicos de que o caso
manifeste exceção ou mesmo desvio do conjunto de casos eviden-
ciados sobre o tema.
Trata-se de um casal de namorados – Débora Tereza Correa, 42
anos de idade, professora da Secretaria de Educação do Governo do
Distrito Federal e Sérgio Murilo dos Santos, 50 anos de idade, policial
civil do Distrito Federal. O casal se relacionou por mais de um ano
com episódios de violência doméstica. Por três vezes a vítima entrou
no sistema de justiça denunciando a violência que sofria. Em duas
oportunidades os inquéritos policiais foram arquivados e em outra
foi o agressor processado e condenado, mas absolvido em segunda
instância. Dias após a absolvição proferida pelo Tribunal de Justiça,
o ofensor matou a vítima em seu local de trabalho e em seguida se
matou.
1.1. Primeira denúncia
Em 9 de janeiro de 2018, a vítima Débora Tereza Correa regis-
trou a ocorrência policial n. 102/2018 na Delegacia da Mulher, que
deu origem à Medida Protetiva de Urgência n. 133-9/2018 e ao Inqué-
rito Policial n. 769-3/2019. Na oportunidade, narrou que namorou
com o agressor por sete meses, não tiveram filhos e não residiram
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As doxas do sistema de justiça na proteção à vítima da violência doméstica
juntos. O ex-namorado não apresentava comportamento violento,
mas quando a ofendida começou a sinalizar que não desejava mais
a relação, Sérgio, «inconformado, começou a procurá-la com insis-
tência, bem como, demonstrar-se explosivo» durante as conversas
em que tinham (TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO DISTRITO FEDERAL E
TERRITÓRIOS, 2018b). A vítima contou ainda para o delegado de po-
lícia o seguinte:
Que nas proximidades do natal, não se recordando exata-
mente a data, resolveu def‌initivamente colocar um f‌im no
namoro, no entanto, SÉRGIO continuou efetuando diversas
ligações telêfônicas (sic) para a VITIMA, várias vezes ao dia,
além de enviar inúmeras mensagens, via aplicativo Whatsa-
pp, insistindo para que as partes retomassem a relação afe-
tiva, o que era sempre rechaçado pela DECLARANTE. Que
no dia 09 de janeiro de 2018, DÉBORA foi caminhar com
uma amiga, TEREZINHA TOMÉ XAVIER, no Parque [...], dei-
xando o próprio carro em frente a casa desta. Que já no in-
terior do parque, encontrou o AGRESSOR correndo no local,
oportunidade em que este se aproximou de DÉBORA e af‌ir-
mou que caminharia na companhia dela, momento em que
a OFENDIDA declarou que não desejava que ele as acompa-
nhasse, mas SÉRGIO, não dando ouvidos à DECLARANTE,
permaneceu ,ao lado da ex-namorada. Esclarece, inclusive,
que no momento em que a encontrou no parque, o AGRES-
SOR tentou abraçá-la e beijá-la à força, todavia, DÉBORA
conseguiu se desvencilhar, insistindo para que o ex- namo-
rado cessasse com aquela conduta. Que ao chegar ao f‌inal
da caminhada, a DECLARANTE seguiu para o carro e TERE-
ZINHA retornou para a casa dela, sendo DÉBORA acompa-
nhada por SÉRGIO. Que no momento em que abria a porta
do veiculo (sic), a VÍTIMA pediu que o AGRESSOR fosse em-
bora pois ela tinha um compromisso, no que o AGRESSOR
retrucou, dizendo que precisava conversar. Que DÉBORA,
então, entrou no próprio carro, oportunidade em que SÉR-
GIO também ingressou, sentando no banco do passageiro
e, ao ser informado pela VÍTIMA de que não tinha tempo
para conversa, pois iria para a academia, o AGRESSOR, já
exaltado, disse que «se ela quisesse ir a algum compromisso,
teria que levá-lo junto, pois não sairia do automóvel». Neste

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