Ausência de transversalidade nos discursos judiciais

AutorRejane Zenir Jungbluth Teixeira Suxberger
Ocupação do AutorDoutoranda em Ciências Sociais, linha 'Gênero e Igualdade', pela Universidade Pablo de Olavide (Espanha)
Páginas57-98
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Ausência de transversalidade
nos discursos judiciais
O enfrentamento da violência doméstica necessita de discur-
sos transversais que atuem modificando a discriminação e a incom-
preensão dos direitos da mulher. Modificar a cultura machista e
patriarcal, que enseja a subordinação da mulher, requer uma ação
conjugada. A violência doméstica, por meio da Lei n. 11.340/2006
deve ser entendida como área multidisciplinar que permite uma
perspectiva transversal e que torna possível o cruzamento de enqua-
dramentos teóricos, que somente foi possível com a intervenção do
campo feminista no campo do Direito.
Neste capítulo, abordo como ocorreu e ainda ocorre a inter-
venção feminista no monopólio estabelecido pelo campo judicial,
em especial no campo da violência contra a mulher, e como o movi-
mento feminista ainda tem difícil penetração nas políticas públicas
realizadas pelo sistema de justiça no que se refere às violências do-
mésticas. Para tanto, tomo como exemplo de política pública imple-
mentada no enfrentamento à violência doméstica o programa «Jus-
tiça pela paz em casa», do CNJ. As doxas, acrescidas de uma formação
deficiente de gênero dos/as operadores/as do Direito, influenciam
ou mesmo justificam essa abordagem deficitária dos/as agentes do
sistema de justiça. Por fim, trato das decisões judiciais que não cum-
prem o binômio da violência contra a mulher: acolher e responsa-
bilizar. E indico a falta de incompreensão dos profissionais na con-
dução de processos que envolvam gênero, ante a falta de formação
específica e continuada.
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Coleção Criminologia, Direito Penal e Política Criminal
Violência contra a mulher e o sistema de justiça: epistemologia feminista em um estudo de caso
REJANE ZENIR JUNGBLUTH TEIXEIRA SUXBERGER
1. A dimensão relacional dos campos
em disputas: judicial e feminista
Para compreender o campo jurídico, segundo Bourdieu (BOUR-
DIEU, 2007a), é necessário entender os conflitos internos que o consti-
tuem. Este é um sistema fechado com uma dinâmica interna própria.
As práticas e discursos jurídicos funcionam com uma lógica específi-
ca: de um lado pelas relações de força que lhe conferem a estrutura e
por outro pela «lógica interna das obras jurídicas que delimitam em
cada momento o espaço dos possíveis e, deste modo, o universo das
soluções propriamente jurídicas» (BOURDIEU, 2007a, p. 211). Tomar
uma direção oposta, ou seja, invadir este campo com outros campos,
como o feminista, significa ir de encontro aos dominantes e instru-
mentos de dominação. Significa invadir o campo de monopólio de
dizer o direito e retirar a ordem daqueles investidos de competência
para interpretar o mundo social (BOURDIEU, 2007a, p. 212).
O monopólio estabelecido pelo campo jurídico, referente ao
acesso a este próprio campo, enseja que apenas os profissionais do
Direito possam atuar nele. Isso funciona de modo que ele se apresen-
te como lugar autônomo e neutro onde o conflito se transforma em
diálogo de experts. Todavia, batalhas são travadas no interior deste
campo e, há um confronto entre os diversos agentes que têm inte-
resses específicos divergentes (BOURDIEU, 2007a, p. 215–216). Em se
tratando de violência doméstica não ocorre diferente, há divisão dos
grupos de agentes do sistema de justiça no qual se observa uma po-
sição nesta luta simbólica que se posiciona na divisão do trabalho,
ou seja, daqueles que têm ou não, tendência a insistir na sintaxe do
Direito sob um viés de gênero.
A intervenção feminista ocupou um lugar de fala com a Lei
Maria da Penha, conquistou um lugar não autorizado pelo campo
do Direito, marcado pelo tradicionalismo jurídico. Se, no passado,
aceitavam-se teses como a «legítima defesa da honra masculina»
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Ausência de transversalidade nos discursos judiciais
para justificar a violência contra a mulher, assim como ser a violên-
cia doméstica assunto privado, a criação dessa lei «provocou uma
profunda ruptura no imaginário dos juristas ou no tradicionalismo
jurídico» (CAMPOS; GIANEZINI, 2019, p. 254).
Todavia, ainda se percebe que o campo do Direito é um campo
de disputa entre vários profissionais: os/as teóricos/as (feministas) e
os práticos (agentes do sistema de justiça). Na divisão do trabalho há
uma força na tomada de posições, na orientação do trabalho jurídi-
co, onde se percebe uma «fraca inclinação do habitus jurídico para
as posturas proféticas», no qual esses/as agentes se refugiam na sim-
ples aplicação da lei (BOURDIEU, 2007a, p. 218–219).
Os/as agentes do sistema de justiça, em especial juízes/as e
promotores/as, por intermédio da prática que os colocam diante das
gestões de conflitos, «tendem a assegurar a função de adaptação ao
real», onde a liberdade de apreciação do caso e a aplicação das regras
introduzem mudanças e inovações indispensáveis à sobrevivência
do sistema, no qual deverá ser integrado pelos teóricos (BOURDIEU,
2007a, p. 220–221). Contudo, a incompreensão do que seja violência
doméstica, juntamente com a concepção equivocada sobre o gênero
e o tradicionalismo jurídico, ocasiona uma resistência do sistema de
justiça em dialogar com as teóricas feministas e, por consequência,
numa aplicação equivocada da lei (CAMPOS; GIANEZINI, 2019, p. 255).
Quando da entrada em vigor da Lei Maria da Penha, diversas
manifestações ministeriais e decisões judiciais se apresentaram
contrárias a essa lei. No entanto, o Supremo Tribunal Federal jul-
gou improcedente todos os argumentos que iam de encontro com
a legislação protetiva,3 tais como: considerar constitucional todos os
3 ADC 19 (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL (STF), 2012a) e ADI 4424 (SU-
PREMO TRIBUNAL FEDERAL (STF), 2012b).

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