Autônomos ou autômatos? A contradição entre o conceito de trabalho 'uberizado' e a situação dos motoristas de Uber

AutorDaniel Bianchi
Ocupação do AutorAdvogado, mestre em Ciência Política pela FFLCH-USP e especialista em Direito do Trabalho pela FD-USP
Páginas29-40
Autônomos ou Autômatos? A Contradição entre o Conceito de Trabalho “Uberizado” e a Situação dos Motoristas de Uber 29
AUTÔNOMOS OU AUTÔMATOS? A CONTRADIÇÃO ENTRE O CONCEITO DE
TRABALHO “UBERIZADO” E A SITUAÇÃO DOS MOTORISTAS DE UBER
Daniel Bianchi(1)
Introdução
O objetivo deste texto é demonstrar como a crítica marxista à noção de “autonomia da vontade indi-
vidual” e à noção de sujeito de direitos pode contribuir para o avanço no debate acerca da autonomia e da
heteronomia nas relações entre a empresa Uber e seus motoristas.
Em abril de 2017, o jornal “New York Times” publicou uma reportagem em que mostra como a empre-
sa Uber desenvolveu truques psicológicos, inspirados, inclusive, em técnicas de videogame, para estimular os
motoristas a trabalharem por mais tempo e em locais e horários que interessam mais à empresa do que ao
próprio motorista (Cf. SCHEIBER, 2017).
Segundo a notícia, a Uber vem realizando um “extraordinário experimento em ciência comportamental”,
para o qual contratou centenas de cientistas. Dentre as técnicas usadas, há mensagens que tentam convencer
o motorista a aceitar a próxima corrida antes de encerrar a atual, além de alertas de que o motorista está pres-
tes a conseguir determinada quantia de dinheiro naquele dia e que, por isso, não deveria desligar o aplicativo
naquele momento, estimulando o motorista a trabalhar mais.
No Brasil, tal reportagem não teve grande repercussão. Mas trata-se de tema central, especialmente em
um contexto em que vem prevalecendo, na Justiça do Trabalho, o entendimento oposto, qual seja, de que o
trabalho de motorista de Uber é uma forma de trabalho autônomo. Mesmo na grande imprensa brasileira,
sempre tão influenciada pelo referido jornal norte-americano, o impacto foi pequeno.
No entanto, vale destacar que Hélio Schwartsman, colunista do jornal Folha de São Paulo, tratando
do assunto, elaborou uma questão que permite avançar esse debate a respeito da suposta autonomia dos
motoristas em relação à empresa: “O que a Uber tem a ver com o livre-arbítrio? Muito”, responde o próprio
colunista da Folha. Para ele, uma vez que a Uber não contrata seus motoristas, surge uma dificuldade, “a em-
presa não pode determinar onde nem por quanto tempo cada condutor deve atuar. A solução foi desenvolver
formas mais ou menos sutis de incentivá-lo a fazer o que interessa à Uber” (Cf. SCHWARTSMAN, 2017).
Refletindo sobre as consequências das técnicas de manipulação empregadas pela Uber, Schwartsman
argumenta que, se os cientistas sociais e neurocientistas citados na reportagem do New York Times estiverem
corretos, isto é, se os motoristas de Uber realmente não possuem livre-arbítrio, então corremos o risco de
nos tornarmos “autômatos a serviço de empresas e políticos”(2), já que consumidores e eleitores também são
manipulados por publicitários, marqueteiros e “as técnicas usadas estão se tornando cada vez mais científicas
e eficientes”.
Contudo, como veremos ao longo deste texto, ao contrário do que imagina Schwartsman, os conceitos
de ideologia e de fetichismo da mercadoria, elaborados por Marx ainda no século XIX, dão conta de que há
séculos os seres humanos se tornaram autômatos a serviço do capital, isto é, tornaram-se autômatos a serviço
de um enorme e estranho esforço coletivo para satisfação de uma “vontade” que não é humana.
(1) Advogado, mestre em Ciência Política pela FFLCH-USP e especialista em Direito do Trabalho pela FD-USP, além de membro pesquisa-
dor do GPTC (Grupo de Pesquisa Trabalho e Capital) e do NTADT (Núcleo de Estudos “O trabalho além do direito do trabalho: dimensões
da clandestinidade jurídico-laboral”), ambos da Faculdade de Direito da USP; email: .
(2) De acordo com o dicionário Houaiss, autômatos, em sentido figurado, é o indivíduo de comportamento maquinal, executando
tarefas ou seguindo ordens como se destituído de consciência, raciocínio, vontade ou espontaneidade.

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