Caminhos para a Resistência: Reconhecimento do Dano Existencial no Contrato de Trabalho Intermitente como Consequência da Violação à Matriz Constitucional de 1988

AutorMaria Cecilia de Almeida Monteiro Lemos
Páginas154-185
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Maria Cecilia de Almeida Monteiro Lemos
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Caminhos para a Resistência:
Reconhecimento do Dano
Existencial no Contrato de
Trabalho Intermitente como
Consequência da Violação à
Matriz Constitucional de 1988
4.1. O trabalho intermitente e as violações ao patrimônio material e
imaterial do trabalhador
A
A matriz constitucional de 1988 consagrou um plexo de direitos fundamentais que
resguarda o patrimônio material e imaterial do trabalhador, construindo uma rede de
proteção ao indivíduo que vive do trabalho, como consequência do papel central que a pessoa
humana, com sua dignidade, ocupa, no paradigma do Estado Democrático de Direito.
Pode-se armar que constituem direitos fundamentais da pessoa humana aqueles que
“são inerentes ao universo de sua personalidade e de seu patrimônio moral, ao lado daqueles
que são imprescindíveis para garantir um patamar civilizatório mínimo inerente à centrali-
dade da pessoa humana na vida socioeconômica e na ordem jurídica”.(420)
Os direitos fundamentais são protegidos, pela sua essencialidade, contra qualquer
tentativa de erradicação do Texto Constitucional, por meio da garantia prevista no art. 60,
§ 4o, IV, que dispõe: “não será objeto de deliberação, a proposta de emenda tendente a abolir
IV – os direitos e garantias individuais.(421)
(420) DELGADO, Mauricio Godinho; DELGADO, Gabriela Neves. A reforma trabalhista no Brasil: com comentários à
Lei n. 13.467/2017. 2. ed. São Paulo: LTr, 2018. p. 33.
(421) Idem.
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Destaca-se que a Emenda Constitucional n. 45/2004 reconheceu a essencialidade dos
direitos fundamentais, ao atribuir expressamente força de norma constitucional aos trata-
dos e convenções internacionais sobre direitos humanos, elevando a posição hierárquica
desses documentos dentro do ordenamento jurídico nacional.(422)
São exemplos de direitos individuais e coletivos constitucionalmente assegurados, impres-
cindíveis para garantir o patamar civilizatório mínimo pugnado pelo Estado Democrático
de Direito, os elencados no Capítulo I (Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos) e
no Capítulo II (Dos Direitos Sociais), ambos do Título II, da Constituição Federal. Uma
inovação da Constituição de 1988 foi a inclusão de uma proteção especíca aos direitos
fundamentais dos trabalhadores urbanos e rurais, por intermédio do disposto no art. 7o e
seus incisos, entre os Direitos Sociais elencados no Capítulo II, do Título II.
Quanto ao patrimônio moral da pessoa humana, a sua proteção está assegurada no
art. 5o, V e X, do Capítulo I, Título II, da Constituição, que especica a honra, a imagem,
a intimidade e a vida privada como direitos fundamentais juridicamente protegidos pela
O desrespeito aos direitos fundamentais materiais e imateriais dos trabalhadores resta evi-
denciado pelas agrantes inconstitucionalidades apresentadas no texto da Lei n. 13.467/2017
— violações constitucionais que estão sendo discutidas em ações que tramitam perante o
Supremo Tribunal Federal.(424)
O teor das mudanças aprovadas pela referida lei atenta contra princípios fundamen-
tais do Direito do Trabalho, notadamente o Princípio da Proteção, esvaziado por diversos
dispositivos, que ignoram a desigualdade das partes inerente aos contratos de trabalho e a
proibição de retrocesso social prevista no caput do art. 7o, da Constituição Federal. O olhar
neoliberal dos relatores da reforma resultou numa redação que distorceu todo o sistema de
proteção legal trabalhista erigido ao longo do século XX, fruto da luta dos trabalhadores e
da construção evolutiva de direitos alcançada pelo Estado Democrático de Direito.
Embora enorme o elenco de inconstitucionalidades da Lei n. 13.467/2017, a proposta
do presente trabalho é ater-se às violações ao patrimônio material e imaterial dos trabalhadores
resultantes da contratação por intermédio do contrato de trabalho intermitente, previsto na
nova redação dos arts. 443 e 452-A, da CLT.
Primeiramente, no que se refere ao paradigma constitucional do direito fundamental
ao trabalho digno, o contrato de trabalho intermitente não se coaduna com a concepção de
trabalho que agrega dignidade ao indivíduo, na medida em que suas condições precárias de
(422) Art. 5o, LXXVIII, § 3o Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados,
em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão
equivalentes às emendas constitucionais.
(423) Art. 5o, LXXVIII, § 3o Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados,
em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão
equivalentes às emendas constitucionais.
(424) Conforme informações transcritas no Capítulo III, item 3.4. – O Contexto da Reforma Trabalhista.
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exercício não proporcionam a garantia de um patamar civilizatório mínimo(425) de direitos
constitucionalizados ao contratado.
É inconstitucional o contrato de trabalho intermitente previsto no art. 443, § 3o, e
art. 452-A da CLT, por violação ao art. 7o, caput, da Constituição, por consistir em alteração
do ordenamento jurídico infraconstitucional que reduz a condição social do trabalhador
urbano e rural, quando deixa de assegurar direitos fundamentais trabalhistas e previdenciá-
rios previstos expressamente no Texto Constitucional.
Cita-se como exemplo de redução de direitos, a inexistência de garantia de remunera-
ção mínima em um contrato de emprego intermitente. Tal previsão atenta contra a proteção
jurídica do salário mínimo, consagrada no art. 7o, IV e VII, da Constituição da República,
que assegura o direito à retribuição mínima mensal ao trabalhador, independentemente da
quantidade de dias em que for convocado para trabalhar.
Para Lenio Luiz Streck, admitir o pagamento do salário mínimo de forma cindida e par-
cial acarreta graves prejuízos ao empregado ao “comprometer a máxima efetividade como
princípio inerente à fundamentalidade material, em afronta à dignidade da pessoa humana,
porque lhe atribuindo os riscos diários de garantia de um mínimo de subsistência(426).
Destaca-se, ainda, como direito fundamental de natureza material, violado por tal
regime de contratação, o alijamento do empregado em contrato intermitente da proteção
do seguro desemprego, prevista nos arts. 7o, II, e 201, III, da Constituição Federal e na
Convenção n. 169 da Organização Internacional do Trabalho — OIT.(427) Isto porque, este
benefício previdenciário, alçado ao status de direito fundamental constitucional, e consi-
derado o mais importante recurso para a sobrevivência do trabalhador atingido pelo risco
do desemprego, não pode ser negado em razão de lei infraconstitucional. Além disso, a
negativa de pagamento do seguro-desemprego aos trabalhadores em contratos intermi-
tentes acentua ainda mais a sua situação de vulnerabilidade social e não se coaduna com
a perspectiva constitucional de defesa da dignidade humana como preceito fundamental.
Também a garantia de décimo terceiro salário, prevista no art. 7o, VIII, e de férias
remuneradas com adicional de 1/3, inserida no inciso XVII, perde sua efetividade pela
inclusão, no art. 452-A, § 6o, de previsão do pagamento imediato desses direitos ao nal de
cada período de trabalho (que pode corresponder até mesmo a uma hora de prestação de
serviço...). O objetivo do 13o salário e do adicional de 1/3 sobre as férias, conquistas histó-
ricas dos trabalhadores, é proporcionar uma remuneração superior para o trabalhador, por
ocasião das festas de nal de ano e do seu período de descanso anual. Sem essa garantia, o
trabalhador será privado, na prática, de usufruir desses direitos.
(425) Expressão cunhada por Mauricio Godinho Delgado em Curso de Direito do Trabalho. Op. cit., passim.
(426) STRECK , Lenio Luiz. Reforma trabalhista: contrato intermitente é inconstitucional. Disponível em:
www.conjur.com.br/2017-dez-04/streck-reforma-trabalhista-contrato-intermitente-inconstitucional>. Acesso em:
31 jul. 2018.
(427) Convenção n. 168 da Organização Internacional do Trabalho, relativa à promoção do emprego e proteção
contra o desemprego. Disponível em: .br/ccivil_03/Decreto/D2682.htm>. Acesso em:
28 jul. 2018.
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