Contrato de Trabalho Intermitente: a Falta de uma Vida Digna com Sentido Dentro e Fora do Trabalho

AutorMaria Cecilia de Almeida Monteiro Lemos
Páginas101-153
O Dano Existencial nas Relações de Trabalho Intermitentes
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Contrato de Trabalho
Intermitente: a Falta de uma
Vida Digna com Sentido Dentro
e Fora do Trabalho
3.1. Novas formas de trabalho e intensicação da exploração: toyotismo e
acumulação exível
É
É por intermédio do trabalho que o homem se relaciona com a natureza, transformando-a
e, consequentemente, transformando a si mesmo. É pelo trabalho que o homem interage
com os demais indivíduos para suprir suas necessidades e produzir coisas úteis, de modo a
garantir a sua existência. O trabalho sempre existiu como um “processo entre o homem e a
natureza, processo este em que o homem, por sua própria ação, medeia, regula e controla
seu metabolismo com a natureza.(253)
Para Marx, o trabalho humano é integrante da estrutura da vida em sociedade e todo
o desenvolvimento histórico é determinado pelas forças produtivas, sendo o próprio “ser”
resultado das relações de produção, organizado para a produção e dependente dela.(254) A
teoria marxista destaca a importância do trabalho na dinâmica de transformação da socie-
dade, considerando que:
[...] (a) a produtividade é a condição necessária à transformação histórica, isto
é, se as forças produtivas não se modicam, a capacidade de criação da vida
humana se imobiliza, e se elas se modicam tudo se move; (b) as classes sociais
cuja luta constitui a própria trama da história, não se deniram pela capacidade
de consumo e pela renda, mas por sua situação no processo produtivo; (c) a cor-
respondência entre forças produtivas e relações de produção constitui o objeto
(253) MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro I: o processo de produção do capital. Tradução de
Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2013. p. 255.
(254) DELGADO, Gabriela Neves. Direito fundamental ao trabalho digno. São Paulo: LTr, 2006. p. 129-131.
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principal da história-ciência, que a aborda com conceitos de modo de produção
e formação social.(255)
O processo dialético da evolução da sociedade passa pela superação de um modelo de
Estado por outro (Estado Liberal – Estado Social – Estado Democrático de Direito), vincula-
do ao modo de produção prevalecente em um dado momento histórico. A superação dos
estágios de desenvolvimento econômico e de modelos de Estado se dá pela constante luta
de classes, considerada a força motriz da história(256).
A tensão entre os interesses de classes, existente no Estado Democrático de Direito,
resulta num complexo cenário, no qual entram em contradição um discurso armativo de
direitos que permeia o avançado arcabouço jurídico de proteção aos Direitos Humanos e
a realidade fática excludente, marcada por desigualdades sociais e econômicas profundas.
A disputa ideológica entre esses interesses antagônicos se reete no Direito do Trabalho e
encontrou na reforma trabalhista um terreno fértil.
Para melhor compreensão do trabalho como um fenômeno social nos marcos do sistema
capitalista de produção — regulado pelo Direito — é fundamental inseri-lo no contexto
histórico contemporâneo, no qual se destacam novas morfologias(257) do trabalho e ainda,
buscar compreender os impactos que as transformações da organização do modo de pro-
dução causaram nas condições de vida do trabalhador e nas relações sociais — incluídas as
relações jurídico-trabalhistas.
Por óbvio, a apertada síntese apresentada sobre a importância do modo de produção
para o desenvolvimento da sociedade não tem a pretensão de aprofundar categorias e con-
ceitos losócos e econômicos que envolvem o tema, apenas busca introduzir a análise das
relações de trabalho diante da intensicação da produção industrial proporcionada pela
implantação de novos modelos de organização da produção, a partir do nal do século
XIX e início do século XX, e as consequências sofridas pelos trabalhadores em razão dessas
novas formas de gestão.
A passagem do Estado Liberal de Direito para o Estado Social de Direito foi acom-
panhada de uma intensa efervescência social, resultante da insatisfação dos trabalhadores,
superexplorados pelo modo de produção capitalista desde a Revolução Industrial. A necessi-
dade de o Estado intervir criando uma legislação minimamente protetiva, veio acompanhada
da implantação de um modelo de produção que fomentasse a divisão do trabalho, com o
objetivo de neutralizar a organização dos trabalhadores e estimular a produção capitalista —
aumentando a acumulação do capital. Esse novo modelo, desenvolvido por Frederick Taylor,
(255) REIS, José Carlos. A história entre a losoa e a ciência. 3. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2004. p. 52, apud
DELGADO, Gabriela Neves. Direito fundamental ao trabalho digno. São Paulo: LTr, 2006. p. 129-131.
(256) “A história de toda a sociedade até nossos dias consiste no desenvolvimento dos antagonismos de classe,
antagonismos que se têm revestido de formas diferentes, nas diferentes épocas. In: MARX., Karl; ENGELS, Friedrich.
Manifesto do Partido Comunista. Disponível em:
[01/07/2001 23:31:58].>. Acesso em: 20 jun. 2018.
(257) Expressão de Ricardo Antunes. ANTUNES, Ricardo. Adeus ao trabalho? Ensaio sobre as metamorfoses e a
centralidade no mundo do trabalho. São Paulo: Cortez, 2015.
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com base na experiência observada em empresas americanas no nal do século XIX e início
do século XX, focava no controle do tempo de trabalho e do rendimento da produção, apli-
cando a “teoria dos tempos e movimentos, com a proposta de gestão da empresa a partir de
fundamentos cientícos e racionais(258).
O taylorismo passou a controlar o tempo de trabalho, a partir da instituição de um
“tempo padrão, ou “tempo ótimo, buscado estimar os chamados “tempos mortos”, ou seja,
os períodos nos quais o trabalhador descansava ou se distraía para voltar a produzir, o
que só seria possível mediante o planejamento minucioso da produção. Para tanto, cada
trabalhador seria xado em um posto de trabalho e treinado para cumprir tarefas, em um
denominado “tempo-padrão, de acordo com a lógica implantada pela gestão da empresa
— a esta altura, extremamente mecanizada.(259)
Uma das consequências dessa intensa mecanização e do controle absoluto do tempo
de produção foi a separação das tarefas de cada operário, o que gerou a precarização do
conhecimento e a redução do aproveitamento das potencialidades do trabalhador, com a
expropriação do saber operário e a divisão entre execução e concepção. Segundo Tayl or
O uso prático dos dados cientícos requer uma sala em que são guardados os
livros, notações dos rendimentos máximos e uma mesa para o planejador das
tarefas. Assim, todo o trabalho feito pelo operário no sistema antigo, como resul-
tado de sua experiência pessoal, deve ser necessariamente aplicado pela direção
no novo sistema, de acordo com as leis da ciência, porquanto o trabalhador, ainda
que bem habilitado na organização e uso dos dados cientícos, estaria material-
mente impossibilitado de trabalhar, ao mesmo tempo, na máquina e na mesa de
planejamento. Está claro, então, na maioria dos casos, que um tipo de homem é
necessário para planejar e outro tipo diferente para executar o trabalho.(260)
Na dinâmica do taylorismo, o planejamento e o controle do tempo-movimento e a
expropriação do saber do trabalhador permitem um maior controle sobre o processo de
trabalho, além da redução da atuação do trabalhador aos atos mais simples de execução,
diminuindo sua capacidade de concepção e retirando sua principal característica como ser
humano — a criação.(261)
Após a Segunda Guerra Mundial a comunidade internacional procurou implantar
mecanismos que assegurassem maior estabilidade aos países e pugnassem pela manutenção
da paz, como a Organização das Nações Unidas — ONU. Ao mesmo tempo, o Estado de
Bem-Estar Social eclodiu em muitos países da Europa, com um forte perl intervencionista,
de forma a assegurar direitos sociais e restabelecer a economia capitalista, devastada pela
(258) DELGADO, Gabriela Neves. Direito fundamental ao trabalho digno. São Paulo: LTr, 2006. p. 153.
(259) Ibidem, p. 154.
(260) TAYLOR, Frederick Winslow (1987). Princípios de administração científica. São Paulo: Atlas apud RIBEI-
RO, Andressa de Freitas. Taylorismo, fordismo e toyotismo. Lutas Sociais. São Paulo, vol.19 n.35, p.65-79, jul./dez.
2015, p. 66. Disponível em: . Acesso em: 12
jun. 2018.
(261) DELGADO, Gabriela Neves. Direito fundamental ao trabalho digno. São Paulo: LTr, 2006. p. 66-67.
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