A capacidade civil da pessoa com deficiência em perspectiva emancipatória

AutorVitor Almeida
Ocupação do AutorDoutor e mestre em Direito Civil pela UERJ. Professor Adjunto de Direito Civil da UFRRJ
Páginas93-132
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A CAPACIDADE CIVIL DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA
EM PERSPECTIVA EMANCIPATÓRIA1
Vitor Almeida2
Sumário: Notas introdutórias: da exclusão à inclusão social da pessoa
com deficiência; 1. Personalidade e capacidade civil no direito brasileiro;
2. O fim da incapacidade absoluta e a capacidade “possível”; 3. O regime
das (in)capacidades da pessoa com deficiência após o advento do EPD;
Considerações finais; Referências.
Notas introdutórias: da exclusão à inclusão social da pessoa com
deficiência
O alvorecer do século XXI presencia uma preocupação sem
precedentes na defesa e promoção dos direitos humanos das pessoas com
deficiência, visando sua plena inclusão social e exercício da cidadania,
em igualdade de oportunidades com os demais atores sociais, superando
um passado odioso de invisibilização social e privação de direitos e
garantias fundamentais. Apesar do atual cenário de enaltecimento dos
direitos da pessoa com deficiência, garantindo-lhes a plena capacidade
legal, e, por conseguinte, a autonomia na tomada de decisões a respeito
das questões existenciais e patrimoniais, a efetiva inclusão social
encontra resistência de parcela da sociedade que não reconhece no outro
com deficiência a qualidade de pessoas humanas de igual valor e
1 O presente trabalho é fruto das ideias e reflexões já substancialmente desenvolvidas
em ALMEIDA, Vitor. A capacidade civil das pessoas com deficiência e os perfis da
curatela. Belo Horizonte: Fórum, 2018, cap. 2, com modificações e acrésci mos.
2 Doutor e mestre em Direito Civil pela UERJ. Professor Adjunto de Direito Civil da
UFRRJ. Vice-diretor do Instituto B rasileiro de Biodireito e Bioética (IBIOS).
Advogado.
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competência para atuar, com independência e voz, em igualdade de
condições na vida de relações.
A exclusividade do discurso médico a respeito da deficiência
começou a ceder terreno em fins da década de 1970 com a ascensão do
chamado modelo social, que forçou a sociedade a enxergar a pessoa com
deficiência a partir de suas diferenças, retirando-lhe de um profundo
isolamento forçado por meio de sua institucionalização. A principal
inovação desse modelo reside na concepção de que a experiência da
opressão não é uma consequência natural de um corpo com lesões, mas
também um problema social. O principal desafio para superar o antigo
modelo, puramente médico, é compreender que o legado de opressão é
devido às barreiras sociais impostas e ao não reconhecimento dessas
pessoas como agentes sociais de igual valor e competência.3
As reinvindicações da sociedade civil e das entidades
representativas culminaram na primeira Convenção Internacional do
século XX sobre direitos humanos da Organização das Nações Unidas a
versar sobre os direitos da pessoa com deficiência. A Convenção
Internacional das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com
Deficiência e seu protocolo facultativo (CDPD) foram ratificados pelo
Congresso Nacional através do Decreto Legislativo n. 186, de 09 de
julho de 2008, e promulgados pelo Decreto n. 6.949, de 25 de agosto de
2009. As disposições do CDPD encontram-se formalmente
incorporadas, com força, hierarquia e eficácia constitucionais, ao plano
do ordenamento positivo interno do Estado brasileiro, nos termos do art.
5º, § 3º, da Constituição Federal. A internalização à ordem constitucional
brasileira da CDPD como Emenda Constitucional revolucionou o
tratamento da questão, ao colocá-la no patamar dos direitos humanos e
ao adotar o denominado modelo social de deficiência.
No plano infraconstitucional brasileiro, a Lei n. 13.146,
denominada de Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência ou
3 Cf. BARBOZA, Heloisa Helena; ALMEIDA JUNIOR, Vitor de Azevedo.
Reconhecimento e inclusão das pessoas com deficiência. Revista Brasileira de Direito
Civil, v. 13, p. 17-37, 2017.
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Estatuto da Pessoa com Deficiência (EPD), aprovada em 06 de julho de
2015, instrumentalizou e deu cumprimento à CDPD. Destinado
expressamente a assegurar e promover, em condições de igualdade, o
exercício dos direitos e das liberdades fundamentais por pessoa com
deficiência, visando à sua inclusão social e cidadania, o EPD cria os
instrumentos necessários à efetivação dos ditames constitucionais,
dentre os quais se inclui profunda alteração do regime de (in)capacidade
jurídica, previsto no Código Civil, cujas consequências se alastram
praticamente por todo ordenamento jurídico, especialmente no giro
funcional da curatela, que transforma-se em instrumento de apoio à
emancipação da pessoa com deficiência, afastando-se da noção
assistencialista e substitutiva de vontade que sempre a acompanhou.4
O regime da incapacidade civil no direito brasileiro sempre foi
estanque e absoluto, visando particularizar determinados sujeitos
desautorizados ou inabilitados à prática de, pelo menos, certos atos da
vida civil. Indispensável, no entanto, à luz da dignidade da pessoa
humana e a partir das disposições da CDPD e do EPD, o estabelecimento
de novas bases, numa perspectiva emancipatória da capacidade civil, que
permita a transição da ótica rígida, estrutural e excludente, para uma
concepção dinâmica, promocional e inclusiva do regime de
incapacidade. É a partir dessas premissas que o presente estudo discorre
sobre a perspectiva emancipatória da capacidade civil da pessoa com
deficiência no ordenamento brasileiro.
1. Personalidade e capacidade civil no direito brasileiro
O direito brasileiro ao reconhecer a qualidade de pessoa do ser
humano atribui-lhe personalidade jurídica em sua vertente de
subjetividade, definida como a “aptidão genérica para ser titular de
4 Sobre o assunto per mita-se remeter a ALMEIDA, Vitor. A capacidade civil das
pessoas com deficiência e os perfis da curatela. Belo Horizonte: Fórum, 2018, p. 195-
268.

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