Novos contornos da responsabilidade civil da pessoa com deficiência após a Lei Brasileira de Inclusão

AutorRaquel Bellini de Oliveira Salles e Nina Bara Zaghetto
Ocupação do AutorCoordenadora do projeto de extensão 'Núcleo de Direitos das Pessoas com Deficiência'/Graduanda em Direito na Universidade Federal de Juiz de Fora
Páginas133-193
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NOVOS CONTORNOS DA RESPONSABILIDADE CIVIL DA
PESSOA COM DEFICIÊNCIA APÓS A
LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO
Raquel Bellini de Oliveira Salles1
Nina Bara Zaghetto2
Sumário: 1. Introdução; 2. O Estatuto da Pessoa com Deficiência (EPD);
3. O regime das (in)capacidades; 4. A construção do conceito de
vulnerabilidade; 5. A construção do conceito de autonomia; 5.1 A
relação entre os conceitos de vulnerabilidade e de autonomia; 5.2 A
relação entre os conceitos de autonomia e de capacidade; 6. A
responsabilidade civil da pessoa com deficiência após a Lei Brasileira de
Inclusão; 6.1 A dissociação entre os conceitos de imputabilidade,
culpabilidade e capacidade e os pressupostos para a responsabilização
civil da pessoa com deficiência; 6.2 O problema da medida da
indenização e a possibilidade de sua fixação equitativa em favor da
preservação do mínimo existencial da pessoa com deficiência à luz do
artigo 944, parágrafo único, do Código Civil; 7. Considerações finais;
Referências.
1 Coordenadora do projeto de extensão “Núcleo d e Direitos das Pessoas com
Deficiência”. Professora de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade
Federal de Juiz de Fora. Mestre e Doutora em Direito Civil pela Universidade do Estado
do Rio de Janeiro. Especialista em Direito Civil pela Università di Camerino Itália.
Advogada. E-mail: raquel.bellini@ufjf.edu.br.
2 Graduanda em Direito na Universidade Federal de Juiz de Fora. Bolsista do projeto
de extensão “Núcleo de Direitos das Pessoas com Deficiência”. E-mail:
nina_bz@hotmail.com.
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1. Introdução
O presente trabalho tem como motivação as mudanças advindas
da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD) e
do Estatuto da Pessoa com Deficiência (EPD) ou Lei Brasileira de
Inclusão (LBI). Esses diplomas inauguraram uma nova visão sobre a
deficiência, em âmbitos nacional e internacional, garantindo que as
pessoas com deficiência possam exercer seus direitos fundamentais.
Uma das principais alterações oriundas do EPD foi a modificação no
regime das (in)capacidades, uma vez que as pessoas com deficiência não
são mais consideradas, a prior i, como absoluta ou relativamente
incapazes. Na verdade, através desse estatuto, consagrou-se a presunção
da plena capacidade dessas pessoas, o que impactou diretamente na
sistemática da responsabilidade civil.
Assim, formula-se as seguintes perguntas: se as pessoas com
deficiência intelectual ou psíquica são presumidamente capazes, como
será configurada sua responsabilidade civil por danos causados a
terceiros? Elas poderão se valer de alguma espécie de redução equitativa
da indenização? Toda pessoa com deficiência intelectual ou psíquica é
vulnerável quando se trata de responsabilidade civil? A partir dessas
problematizações, tem-se o objetivo de compreender os influxos do EPD
no instituto da responsabilidade civil.
Assim, partindo de pesquisa de fontes legislativas, doutrinárias e
jurisprudenciais, abordam-se, na segunda seção, as principais alterações
trazidas pelo EPD, demonstrando a ruptura com a lógica paternalista e
assistencialista que sempre permeou a temática das pessoas com
deficiência e, por conseguinte, a assunção da nova perspectiva
promocional e emancipatória quanto ao seu tratamento e aos seus
direitos. Na terceira seção, trata-se, de forma comparativa, do regime das
(in)capacidades, evidenciando a presunção da plena capacidade das
pessoas com deficiência. Em seguida, nos tópicos quarto e quinto, são
diferenciados os conceitos, no âmbito jurídico, de vulnerabilidade,
vulneração, vulnerabilidade existencial, vulnerabilidade patrimonial,
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autonomia e capacidade. Enfim, na sexta seção, debruça-se sobre a
responsabilidade civil da pessoa com deficiência após a LBI, passando
por seus pressupostos e pelo problema da medida da indenização.
2. O Estatuto da Pessoa com Deficiência (EPD)
A história das pessoas com deficiência3 é marcada por uma
estigmatização social, no sentido de serem tratadas, historicamente,
como "aberrações", "anormais", "doentes", sendo, portanto, colocadas
sob um véu de invisibilidade. Nessa esteira, é importante compreender
que a CDPD e o EPD são fruto de movimentos e lutas sociais dessas
pessoas por autonomia, voz ativa e participação na sociedade.
3 Ao longo do trabalho, adotar-se-á a expressão "pessoa com deficiência” e, não,
"deficiente", "excepcional", "pessoa especial", "pessoa portadora de deficiência".
Quanto ao último vocábulo explicita-se sua inadequação, tendo em vista que a
deficiência não é algo que se pode escolher portar ou não. É uma característica, como
qualquer outra, da pessoa humana. Sobre o tema, Sidney Madruga ensina: "[...]
'deficiente’ (o fato de se possuir uma ou mais de uma deficiência não significa dizer
que se é de 'todo' deficiente) e "excepcional" (que traz uma ideia mais ligada à
deficiência mental aos considerados ‘superdotados’, e por isso, não abarca todas as
espécies de deficiência, além de contrapor-se na linguagem coloquial, ao ter mo
‘normal’, quer dizer, se não é 'normal' é 'excepcional’, fora do comum, uma forma de
exceção)". Nesse sentido, “o adjetivo ‘especial’, além de não proj etar em si qualquer
diferenciação, não se constitui numa característica exclusiva das pessoas co m
deficiência. Ser co nsiderado ‘especial’, ou uma ‘pessoa especial’, vale para todos,
possuam ou não alguma deficiência". Feitas essas considerações e tendo em vista o
poder simbólico da linguagem, pontua -se que a utilização da expressão "pessoa com
deficiência" é de suma importância no processo de inclusã o e reconhecimento delas
enquanto pessoas humanas. Ainda segundo Madruga, "Essas denomi nações, por
evidente, não são estáticas. Evoluem da mesma forma que a sociedade dos homens
incorpora novas realidades e valores, a cada época, em relação aos grupamentos que a
compõem. Também não significa dizer que a utilização incorreta dos ter mos em voga
traduz-se em eventual predisposição ou preconceito. Isso, contudo, não afasta a
importância do uso e da força da linguagem, como instrumento de informação e
conhecimento, que possui e sempre terá repercussão na construção social do coletivo e
do individual humano que se queira designar". (MADRUGA, Sidney. Pessoas com
deficiência e direitos humanos: ótica da diferença e ações afirmativas. São Paulo:
Saraiva, 2016, p. 18-23)

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