Conclusão. Dirética

AutorAntonio Araújo
Páginas65-73

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A sobreconstitucionalidade é um dos vários hyperlinks à estética legal de Platão, para quem as leis são necessárias, a fim de abrandar a cegueira e inconstância dos homens, sobremodo os de Estado; porque, imaginando-se que não estejam cegos à escolha do bem comum, subsistiria ainda o mais difícil: pô-lo fielmente em prática.1

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Fundador do utilitarismo moderno, Jeremy Bentham (apud BAUMAN, Ética pós-moderna, p. 77) dizia que os homens "têm deficiência de altruísmo e por isso precisam da ameaça de coerção, para encorajá-los a buscar os interesses da maioria antes que os próprios".

Em Hegel (apud HABERMAS, O discurso filosófico da modernidade, p. 54-56), uma despolitização imprescindível à eticidade, como se a lavoura fosse co-natural à sua praga:

Na tradição aristotélica, o conceito de política como uma esfera que abrange o Estado e a sociedade, próprio da antiga Europa, manteve-se sem interrupção até o século XIX. [...] Evidentemente, essa conceituação não se ajusta mais às sociedades modernas, nas quais a circulação de mercadorias da economia capitalista, organizada no direito privado, desliga-se da administração do poder. Por meio dos media que são o valor de troca e o poder, dois sistemas de ação se diferenciaram, completando-se funcionalmente: o social separou-se do político, a sociedade econômica despolitiza-

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da separou-se do Estado burocratizado. [...] [Hegel] recupera, por assim dizer, em termos de uma teoria social, a contraposição da teoria da arte entre modernidade e Antiguidade: "Na sociedade civil burguesa, cada um é fim para si mesmo e todos os outros não são nada. Mas sem relação com os outros ele não pode alcançar a extensão dos seus fins. Esses outros são, portanto, o meio para um fim particular. Este, porém, dá a si mesmo a forma da universalidade por meio da relação com os outros e se satisfaz ao satisfazer, ao mesmo tempo, o bem-estar dos outros". Hegel descreve as relações mercantis como um domínio neutralizado eticamente para a persecução estratégica de interesses privados e "egoístas", na qual estes fundam simultaneamente um "sistema de dependência multilateral". Na descrição de Hegel, a sociedade civil burguesa aparece, por um lado, como uma "eticidade perdida em seus extremos", como "algo que pertence à corrupção". Por outro, como "a criação do mundo moderno", tem sua justificação na emancipação do indivíduo que adquire liberdade formal: o desencadeamento da arbitrariedade da carência e do trabalho é um momento necessário no processo para "formar a subjetividade em sua particularidade". [...] Aqui já se coloca para ele o problema de como não conceber a sociedade civil burguesa meramente como uma esfera de decadência da eticidade substancial, mas, ao mesmo tempo, em sua negatividade, como um momento necessário da eticidade. Hegel parte da constatação de que o ideal de Estado da Antiguidade não pode ser restabelecido sob as condições da sociedade moderna despolitizada. Por outro lado, atém-se à idéia daquela totalidade ética que o ocupara pela primeira vez sob o nome de religião popular. Logo, tem de estabelecer a mediação entre o ideal ético dos antigos, no sentido em que é superior ao individualismo da época moderna, e as realidades da modernidade social. [...] Uma vez que "o princípio dos Estados modernos tem essa força e profundidade extraordinárias de deixar o princípio da subjetividade desenvolverse até o extremo autônomo da particularidade pessoal e, ao mesmo tempo, reconduzi-lo à unidade substancial e assim conservá-lo em si mesmo". (cf. HEGEL, O sistema da vida ética)

Leis retificam, se preciso impositivamente, os espíritos que a razão não ilumina e nem sempre conduz. Entretanto, se é necessária, a lei é apenas necessária. Não consiste, jamais, num substituto da inteligência e à ciência (sobreconstitucional) do bem.

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No fundo, isto significa a superação da fase do domínio puro e simples da lei, que se exprime no imperativo não farás, pela Filosofia, cujos pensamentos se traduzem em princípios universais. O conteúdo material da lei não é tão importante para aquela como o ponto de partida dos preceitos legais deduzidos pela razão (condicionamento humano da inteligência), ou seja, a norma moral. Este fato tem necessariamente que opor ao legislador filosófico dificuldades de ordem prática. O filósofo procura superálas, filosofando constantemente nas entrelinhas - por assim dizer - dos artigos das suas leis (tal justaposição de preceitos legais e motivações psicológicas, que exige, Platão denomina "duplo discurso". Cf. Leis, 718 B-C, 719 E s., 720 E 6-8). Isto se traduz numa excessiva extensão das leis, que não é totalmente realizável na prática. (JAEGER, Paidéia, p. 1344. Cf. FULLER, The Morality of Law; HART, Law, liberty and morality; PATTERSON, Law and Truth)

E a tragicomédia dos precatórios brasileiros,2quando mais não seja para superar o receio vão da insolvência estatal,3é

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uma chance de aprendizado moral-jurídico, ainda que na cela de escândalos:

Na sociedade do espetáculo, o importante é não ser visto. A única instância que talvez possa constituir um freio aos apetites humanos é o cuidado para não ser visto ao infringir as normas. É evidente a...

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