Introdução. Diretivas Conceituais e Arranjo da Obra

AutorAntonio Araújo
Páginas19-32

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É reducionista a ideia de um preâmbulo com força meramente normativo-jurídica (aquém de seu teor hermenêuticosobreconstitucional1), e não ético-normativa.

Que o preâmbulo opere qual uma escala de constitucionalidade, tenha cogência heterônoma, pretendem alguns.

A essa altura, porém, não haveria de se falar mais em preâmbulo, a traduzir o leitmotiv2de certa iniciativa Constituinte, restando apenas um típico enunciado constitucional.

G. Bidart (Derecho constitucional, t. 1, p. 314), Georges Burdeau (Droit Constitutionnel, p. 51), Carl Schmitt (Teoria de la Constitución, p. 38), Hans Nawiasky (Teoria General del Derecho, p. 195), F. Giese (Deutsches Staatsrecht, p. 72) avalizam o caráter normativo dos preâmbulos, opondo-selhes J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira (Fundamentos da

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Constituição, p. 45), Miguel Ángel Ekmekdjian (Tratado de derecho constitucional, p. 76).

Sem embargo, Paolo Biscaretti di Ruffia (Direito constitucional: instituições de direito público, p. 21) advoga que a juridicidade dos preâmbulos se resolve dentro de cada ordenação positiva:

[...] a tese que parece mais aceitável considera que, nos casos em que se manifestem dotados de eficácia jurídica, se deve isto a explícitas exigências das leis ou porque os princípios neles formulados devem considerar-se transformados em princípios gerais da ordenação jurídica do Estado.

O mesmo di Ruffia (Introduzione al Diritto Costituzionale Comparato, p. 13) sobrepõe:

[...] várias Constituições contemporâneas apresentam-se com um preâmbulo que pode ter caráter de invocação a Deus (Suíça, 1874; Irlanda, 1937; República Sul-Africana, 1961), de promulgação popular solene (Estados Unidos, 1787), [...] político (Constituição da Alemanha Ocidental, 1949), de [...] remissão a princípios e liberdades genericamente formulados (França, 1946 e 1958), ou de outorga da Carta constitucional (Mônaco, 1911; Itália, 1848).

Vejamos o que nos diz o Conselho francês, na Décision no 92-308:

Décision nº 92-308 DC du 9 avril 1992

Traité sur l’Union européenne

Le Conseil constitutionnel a été saisi, le 11 mars 1992, par le Président de la République, conformément à l’article 54 de la Constitution, de la question de savoir si, compte tenu des engagements souscrits par la France et des modalités de leur entrée en vigueur, l’autorisation de ratifier le traité sur l’Union européenne signé à Maastricht le 7 février 1992 doit être précédée d’une révision de la Constitution;

LE CONSEIL CONSTITUTIONNEL,

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Vu la Constitution du 4 octobre 1958;

Vu le préambule de la Constitution du 27 octobre 1946; [...]

Les rapporteurs ayant été entendus;

- SUR LE CONTENU DE L’ENGAGEMENT INTERNATIONAL SOUMIS A L’EXAMEN DU CONSEIL CONSTITUTIONNEL: Considérant que l’engagement international dont il est demandé au Conseil constitutionnel d’apprécier s’il comporte une clause contraire à la Constitution, est composé de trois séries d’éléments; [...]

- SUR LES NORMES DE REFERENCE DU CONTROLE INSTITUE PAR L’ARTICLE 54 DE LA CONSTITUTION:

Considérant que le peuple français a, par le préambule de la Constitution de 1958, proclamé solennellement "son attachement aux droits de l’homme et aux principes de la souveraineté nationale tels qu’ils ont été définis par la Déclaration de 1789, confirmée et complétée par le préambule de la Constitution de 1946"; [...]

D E C I D E:

Article premier. - L’autorisation de ratifier en vertu d’une loi le traité sur l’Union européenne ne peut intervenir qu’après révision de la Constitution.

Article 2. - La présente décision sera notifiée au Président de la République et publiée au Journal officiel de la République française.

Délibéré par le Conseil constitutionnel dans ses séances des 7, 8 et 9 avril 1992.

A jurisdição constitucional brasileira também distorce o noûs do preâmbulo, cuja reminiscência é platônica3, considerando-o um detalhe4da CF/88 e, por isso mesmo, negligenciando sua tradução daquela Carta das Ruas, que vigeu entre nós em meio ao in-Fausto5clandestino do último regime militar.

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Assim falou não Zaratustra, de F. W. Nietzsche, ruminando o êxtase dionisíaco, mas o STF: "Preâmbulo da Constituição: não constitui norma central. Invocação da proteção de Deus: não se trata de norma de reprodução obrigatória na Constituição estadual, não tendo força normativa" (ADI 2.076, Rel. Min. CARLOS VELLOSO, DJ de 08-08-03).

A filosofia corrosiva de Nietzsche tencionara "exercitar dessa forma o ler como arte, [sendo] preciso antes de tudo algo que hoje em dia é precisamente o que mais se desaprendeu - e por isso há tempo ainda até a ‘legibilidade’ de meus escritos - para o qual se tem de ser quase vaca e, em todo caso, não ‘homem moderno’: o ruminar" (NIETZSCHE, A Genealogia da Moral, Prefácio, § 8).

Não é do que carece o preâmbulo, de uma leitura artística da Constituição?

De qualquer sorte, embora perfaçam ambos uma só obra, devo presumir, então, que o prólogo de Shakespeare a sua tragédia Othello não implica a mesma densidade literária do eloquente senador Brabâncio:

- [...] O doge convocou o Conselho? E em plena noite! Minha causa é de importância; o próprio doge e os manos do govêrno hão de sentir a ofensa como própria. Se um crime não fôr bem castigado, pagãos e escravos mandarão no Estado. (p. 30)

Ou seja: conquanto não figure entre as normas jurídicoconstitucionais, o preâmbulo contém uma tessitura normativa de índole diversa, que batizei de sobreconstitucionalidade.

Margaret Gilbert - University of Connecticut, Storrs - escreve no The Blackwell Dictionary of Twentieth-Century Social Thought:

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Em sua acepção mais geral, a ideia de norma é a de um modelo ou padrão. São duas as principais maneiras como essa ideia foi desenvolvida em teoria social, quando as normas sociais constituíram o foco de interesse. Em primeiro lugar, há a ideia de norma como modelo real de comportamento, como o que é "normal" no sentido de ser regular ou modelarmente feito por membros de uma população. (Os rótulos "hábitos sociais" e "uso" são empregados a respeito de alguns de tais modelos.) Em segundo lugar, há a ideia de norma como padrão prescrito, como o que é considerado ser, em uma dada população, a coisa a fazer. (Os rótulos "convenção", "regra social" e "lei" são usados a respeito de certos padrões nessa categoria.) As normas sociais são frequentemente associadas a expectativas. Cumpre distinguir duas diferentes espécies de expectativa: as expectativas preditivas acerca do que será efetivamente feito por membros de uma população e as expectativas normativas ou deônticas. As normativas envolvem a crença em que o comportamento "esperado" deve ocorrer, em algum sentido mais do que meramente preditivo. Os padrões reais são suscetíveis de se associar a expectativas preditivas e os padrões prescritos, a expectativas normativas. [...] W. G. Sumner distinguiu e examinou uma ampla variedade de tipos de norma em Folkways: A Study of the Sociological Importance of Usages, Manners, Customs, Mores and Morals (1906). Sublinhou a variedade de conteúdos que as normas podem ter e a diferença em importância que pode ser atribuída a diferentes normas: assim, somente as leis recebem a "sanção específica do grupo quando politicamente organizado" (p. 56). (GILBERT, Norma, p. 524. Cf. PARSONS, The Structure of Social Action; GIBBS, Norms: the problem of definition and classification; DURKHEIM apud WEBER, Economy and Society: an Outline of Interpretative Sociology, p. 29; HART, The Concept of Law; LEWIS, Convention)

Mas é a Paidéia de Werner Jaeger que resgata,6modernamente, a singularidade helênica (e sobreconstitucional) do preâmbulo das leis:

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[...] nas Leis, [Platão] parte da hipótese de que estas são, normal-mente, indispensáveis à vida do Estado. Procura aqui submeter a própria legislação ao princípio educativo e torná-la seu instrumento, tal como na República fizera do Estado, como um todo, uma instituição educativa. O meio de que se serve para alcançar este objetivo são os preâmbulos das leis, a cujas determinações conceituais e a cuja elaboração pormenorizada dedica uma atenção muito especial. Numa passagem fundamental do livro IV estabelece uma distinção entre as expressões persuasivas e as normas imperativas do legislador. Como missão da parte persuasiva, contida nos preâmbulos das leis, considera ele a formulação e fundamentação das normas de bem agir. Esta parte...

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