Precatório e a Lógica da 'Bola Dividida'

AutorAntonio Araújo
Páginas53-64

Page 53

As grandes lições de direito que colhi desde o bacharelado não afioraram sobre o ladrilho tantas vezes estéril dos anfiteatros, mas do corredor ocasional que os margeia - fecundo e vibrante, quase nunca contíguo.

O gabinete, cafés... de (e com) renomados juristas não ilustram alguns desses corredores pedagógicos?

E dentre tais lições de corredor uma se revela significante, para entendermos a regra da Desobediência Civil Integrativa,1 bem como o sofisma que, amiúde, guia as decisões do Poder Legislativo,2também alhures.

Foi assim que um orientador estimado, cujo patronímico isento de minhas deduções lecionara havia já anos: qualquer facção minimamente justa do bicameralismo Tupin-i-ki3pratica a "bola dividida".

Page 54

Cícero (Pro Milone, 12.32) aludiria: "cui bono"? Quem sai ganhando?!

Pois bem, uma "bola dividida" é juridicamente inimputável, por definição. Não se pode condená-la, tampouco os seus jogadores, em vista do rumo final.

Havendo um choque entre teses jurídico-políticas (in)verossímeis prevalece, logo, um juízo de conveniência, quiçá apadrinhamento. Decide-se a favor do "amigo"!

Do contrário há de se reconhecer a maior densidade jurídica de uma das teses.

Eis a moderna justiça de Ulpiano, onde há quem esteja "mais igual" perante as leis,4tais e quantos os interesses Constituído$. Chomsky (O lucro ou as pessoas?, p. 52-56) ressalta a...

[...] doutrina dominante claramente expressa pelo presidente do Congresso Continental e primeiro presidente da Corte Suprema, John Jay: "As pessoas a quem o país pertence devem governá-lo". Ficava, no entanto, uma pergunta: a quem pertence o país? Essa pergunta foi respondida pela ascensão das grandes empresas privadas e das estruturas concebidas para protegê-las, ainda que continue não sendo um trabalho fácil obrigar o público a se manter no papel de espectador. [...] No estudo da História, não se podem construir experimentos, mas os Estados Unidos estão tão próximos quanto possível do "caso ideal" de democracia capitalista de estado. O grande arquiteto dessa ordem foi o astuto pensador político James Madison, cujas opiniões prevaleceram em ampla medida. Nas discussões sobre a Constituição, Madison observou que, se na Inglaterra as eleições "fossem abertas a todas as classes de indivíduos, a riqueza dos proprietários de terras correria perigo. Cedo viria uma lei de reforma agrária", concedendo terra aos que não a possuem. O sistema constitucional deve ser concebido de modo a evitar esse tipo de injustiça e "assegurar os interesses per-

Page 55

manentes do país", que são os direitos de propriedade. Há, dentre os estudiosos de Madison, um consenso de que "a Constituição foi um documento intrinsecamente aristocrático, concebido para conter as tendências democráticas da época", conferindo poder aos "melhores" e excluindo os que não eram ricos, bem-nascidos ou proeminentes no exercício do poder político (Lance Banning). A responsabilidade primeira do governo "é proteger a minoria opulenta da maioria", declarou Madison. Esse tem sido o princípio orientador do sistema democrático, desde suas origens até os dias de hoje. Em público, Madison falava dos direitos das minorias em geral, mas é bem claro que tinha em mente uma minoria em particular: a "minoria opulenta". A teoria política moderna enfatiza a crença de Madison de que "num governo livre e justo, tanto os direitos da propriedade como os das pessoas devem ser eficazmente protegidos". Aqui também vale a pena analisar a doutrina com mais atenção. Não existem direitos da propriedade, mas direito à propriedade, ou seja, direito das pessoas que têm propriedade. Posso ter direito ao meu automóvel, mas o meu automóvel não tem nenhum direito. O direito à propriedade também difere de outros direitos no sentido de que a fruição da propriedade por uma pessoa priva uma outra desse mesmo direito: se sou proprietário do meu automóvel, você não pode sê-lo; mas, numa sociedade livre e justa, a minha liberdade de expressão não limita a sua. O princípio de Madison, portanto, é o de que o governo deve proteger os direitos das pessoas em geral, mas também proporcionar garantias adicionais e especiais para os direitos de uma classe de pessoas, a dos detentores de propriedade. Madison previu que a ameaça democrática se tornaria provavelmente mais forte com o tempo por causa do crescimento "da parcela dos que irão labutar sob as agruras da vida e alimentar secretas aspirações de uma distribuição mais igualitária de suas bênçãos". Madison [...] [se mostrava] preocupado com os "sintomas de um espírito de nivelamento" [...]. "Não se pode esperar simpatia suficiente para com os direitos da propriedade da parte de quem não tem propriedade nem a esperança de obtê-la", explicou Madison. Sua solução era conservar o poder político nas mãos dos que "provêm da riqueza da nação e a representam", o "conjunto dos homens mais capazes", e deixar o público em geral fragmentado e desorganizado. O problema do "espírito de nivelamento" também aparece no exterior. Podemos aprender muito sobre a "teoria da democracia realmente existente" vendo como esse problema é percebido, em especial em documentos internos secretos onde os líderes se expressam de forma

Page 56

mais franca e aberta. Vejamos o exemplo do Brasil, "o colosso do sul". Visitando o país em 1960, o presidente Eisenhower assegurou aos brasileiros que "o nosso sistema de iniciativa privada com consciência social beneficia todo o povo, sejam proprietários ou trabalhadores [...]. Em liberdade, o trabalhador brasileiro está feliz, desfrutando as alegrias da vida sob o sistema democrático". O embaixador acrescentou que a infiuência dos Estados Unidos havia quebrado "a velha ordem na América do Sul", trazendo-lhe "idéias revolucionárias como o ensino universal e obrigatório, a igualdade perante a lei, uma sociedade relativamente sem classes, um sistema de governo responsavelmente democrático, a livre competição empresarial [e] um fabuloso padrão de vida para as massas". Mas os brasileiros reagiram duramente às boas novas trazidas pelos seus tutores do norte. As elites latino-americanas são "como crianças", informou ao Conselho de Segurança Nacional o Secretário de Estado John Foster Dulles, não possuem "quase nenhuma capacidade de autogoverno". E o pior é que os Estados Unidos estão "inapelavelmente atrasados em relação à União Soviética no desenvolvimento de meios de controle sobre os corações e as mentes das pessoas simples". Dulles e Eisenhower expressaram a sua preocupação com a...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT