Conflitos entre normas

AutorCarlos Pinto Del Mar
Páginas350-361

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Podem ocorrer conflitos entre disposições normativas de diversas naturezas (leis, regulamentos, instruções técnicas, normas técnicas da ABNT), surgindo dúvida sobre qual norma deve ser atendida nessas situações, seja na elaboração de projetos de construção, seja na execução de obras de um modo geral.

O assunto será tratado a seguir, resumindo os conceitos jurídicos e apresentando noções sintéticas sobre os aspectos envolvidos, para manter a objetividade que se procura dar a este trabalho.

A apresentação das soluções adotadas na esfera jurídica é feita, para dela se extrair princípios e procedimentos que poderão ser aplicados na solução de conflitos entre normas de natureza técnica.

Conflitos entre normas de natureza jurídica
27.1. 1 O ordenamento jurídico e as antinomias

O ordenamento jurídico é um sistema normativo caracterizado pela hierarquia entre normas, no qual normas superiores delegam competência a determinadas autoridades para a edição de normas inferiores que, desse modo, adquirem validade e se incluem no sistema. Isto cria condições para o surgimento de normas que não correspondem, quanto ao seu conteúdo ou processo de formação, às normas superiores. Contudo, pelo próprio fato de as referidas normas coexistirem dentro de um sistema dinâmico, elas preservam a unidade do todo normativo.

A existência de regras incompatíveis entre si é denominada antinomia.

Antinomia jurídica é a oposição que ocorre entre duas normas contraditórias (total ou parcialmente), emanadas de autoridades competentes num mesmo âmbito normativo, que colocam o sujeito numa posição insustentável pela ausência ou inconsistência de critérios aptos a permitir-lhe uma saída nos quadros de um ordenamento dado653.

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Para caracterizar uma antinomia, portanto:

• as duas normas devem pertencer ao mesmo ordenamento, e

• as duas normas devem ter o mesmo âmbito de validade (temporal, espacial, pessoal e material).

Nem todas as antinomias são solúveis pelos critérios adiante comentados, hipótese em que se torna necessária a alteração de uma das normas em conflito.

As antinomias solúveis são denominadas de antinomias aparentes, e as antinomias insolúveis são denominadas de antinomias reais.

Para a solução das antinomias aparentes, há três critérios fundamentais:

  1. critério cronológico: a regra posterior derroga a anterior naquilo que for incompatível, ou seja, prevalece a lei posterior;

  2. critério hierárquico: a lei superior revoga a inferior se com ela for incompatível, ou seja, prevalece a lei hierarquicamente superior; e

  3. critério da especialidade: a lei especial revoga a geral, ou seja, prevalece a lei especial em detrimento da lei geral.

    No caso de duas regras em conflito, aplica-se um desses três critérios, de forma que sempre uma prevalecerá sobre a outra.

    Dos três critérios acima, o cronológico (constante do art. 2º da Lei de Introdução ao Código Civil – LICC654), é o mais fraco de todos, sucumbindo frente aos demais. O critério da especialidade é o intermediário, e o critério da hierarquia é o mais forte de todos, tendo em vista a importância do texto constitucional, em ambos os casos.

    Quando a situação concreta apresenta condições de aplicar um desses critérios (cronológico, hierárquico e da especialidade), tem-se a denominada antinomia de 1º grau, e a condição de sair da situação insustentável.

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    Mas o problema acontece quando há conflito entre os citados critérios de solução (cronológico, hierárquico e da especialidade), surgindo antinomias que são classificadas em antinomia de 2º grau. Resumindo, temos:

    • Antinomia de 1º grau: conflito de normas que envolve apenas um dos critérios acima expostos (cronológico, hierárquico e da especialidade).

    • Antinomia de 2º grau: choque de normas válidas, que envolve dois dos critérios acima.

    No caso das antinomias de 2º grau (ou seja, quando a aplicação de um critério dá solução oposta à aplicação do outro), fica impossível aplicar dois critérios e é preciso que se dê preferência a um, ou outro.

    Nessas hipóteses, podem ocorrer:

  4. conflito hierárquico-cronológico – antinomias entre normas anterior-superior e posterior-inferior;

  5. conflito de especialidade e cronológico – conflito entre norma anterior-especial e posterior-geral;

  6. conflito hierárquico e de especialidade – uma norma superior-geral e uma inferior -específica.

    Para os dois primeiros casos, existem regras de aplicação geral (metarregras), a saber: no primeiro caso (de antinomias entre normas anterior-superior e posterior-inferior), a posterior-inferior não derrogaria a anterior-superior; e, no segundo caso (de conflito entre norma anterior-especial e posterior-geral), a posterior-geral não derroga a anterior-específica. Mas essas regras gerais têm aplicação restrita e são de difícil generalização.

    No terceiro caso (uma norma superior-geral e uma inferior-específica), como expõe Maria Helena Diniz, não há uma regra geral de solução do conflito, surgindo a antinomia real:

    No conflito entre o critério hierárquico e o de especialidade, havendo uma norma superior-geral e outra norma inferior especial, não será possível estabelecer uma metarregra geral, preferindo o critério hierárquico ao da especialidade ou vice- -versa, sem contrariar a adaptabilidade do direito. Poder-se-á, então, preferir qualquer um dos critérios, não existindo, portanto, qualquer prevalência. Todavia, segundo Bobbio, dever-se-á optar, teoricamente, pelo hierárquico; uma lei constitucional geral deverá prevalecer sobre uma lei ordinária especial, pois se se admitisse o princípio de que uma lei ordinária especial pudesse derrogar normas

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    constitucionais, os princípios fundamentais do ordenamento jurídico estariam destinados a esvaziar-se, rapidamente, de seu conteúdo. Mas, na prática, a exigência de se adotarem as normas gerais de uma Constituição a situações novas levaria, às vezes, à aplicação de uma lei especial, ainda que ordinária, sobre a Constituição. A supremacia do critério da especialidade só se justificaria, nessa hipótese, a partir do mais alto princípio da justiça: suum cuique tribuere, baseado na interpretação de que: o que é igual deve ser tratado como igual e o que é diferente, de maneira diferente.

    Esse princípio serviria numa certa medida para solucionar antinomia, tratando igualmente o que é igual e desigualmente o que é desigual, fazendo as diferenciações exigidas fática e valorativamente655.

27.1. 2 Colisão de princípios constitucionais

Quando há colisão de princípios constitucionais não se trata de antinomia, pois não se pode simplesmente afastar algum deles. Sob o ponto de vista jurídico, não há hierarquia entre os princípios constitucionais, ou seja, todas as normas constitucionais têm igual dignidade e importância, de modo que não se aplicam os critérios acima comentados (cronológico, hierárquico e da especialidade) para a solução de conflitos entre princípios constitucionais.

No plano fático, porém, a incidência de uma norma sobre determinada situação pode gerar uma...

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