O conhecimento sobre o fenômeno urbano

AutorPaulo Somlanyi Romeiro
Ocupação do AutorAdvogado, doutor em Direito Econômico, Tributário e Financeiro pela Faculdade de Direito da USP (FADUSP)
Páginas157-199
CAPÍTULO 2
o coNheciMeNTo SoBre o feNôMeNo UrBANo
As lim itações e repressões aos modos de vida e ao dese-
jo, prescritas pelo urbanismo, são tratadas pelo discurso jurí-
dico como lim itações ao uso da propriedade. A pa rtir das lentes
do direito urba nístico1 não é possível desejar outra forma de
vida urbana ou de apropriação do espaço, qua nto mais viver
outra cidade2.
A justific ação do direito urban ístico a partir de uma ideia
do urbanismo cien tífico (e de sua pretensa racionalidade) e da
boa ordem, e a ideia de seu progresso (de sua consta nte evolução
positiva), resultado, entre outra s causas, da nossa i nserção na
1 Direito ur banístico, aqu i, entendido no sentido estr ito, como direito do
urbanismo.
2 Claro que pode h aver experiência s que neguem essa drá stica afi rmação.
Um argument o teórico ou exemplo prático, basea dos na utopia da cida-
de democrática , também poder iam derrub ar essa hipóte se, mas argu-
mentamos que, a inda que essa crenç a seja um cami nho possível par a se
constru ir outra cidade, suas pos sibilidades estar iam limita das por um
pensamento ú nico em relaç ão à apropriação d o espaço. E servi riam ma is
para se defender da aç ão do poder do que para se ema ncipar.
Direito urbanístico: entre o caos e a injustiça
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modernidade ocidenta l, impõem li mites ao nosso caminho em
busca do seu conhecimento.
Isso porque, a nosso ver, essas duas ideias compõem de
algum a forma um regime ocu lto de verdade que natural iza formas
de pensar o direito urbanístico, inibindo um questionamento
crítico sobre o mesmo e, por isso, também minando eventual
potencial emancipatório decorrente da ref lexão em torno das
relações entre o di reito e o fenômeno urbano. O discurso ju rídico
contribui para impor a ideia de urbano da s classes dominantes.
Não sem encontrar resistência, claro.
Dado o caráter posit ivista das pesquisa s, parte da doutri-
na do direito u rbanístico frequent emente associa, não sem raz ão,
o direito urbanístico com um urbanismo científico3. A episte-
mologia do fenômeno urbano e o conhecimento sobre o direito
urbaní stico certamente sofrem desse problema , ao mesmo tempo
que o reforçam. Por se basear praticamente só naqui lo que se
obtém a parti r dessa forma de conhecimento cham ada urbanis-
mo, que Henri Lefebvre chama de campo cego4, o di reito ficaria
limitado a receber o conhecimento a partir de outros saberes e
teorias, como, por exemplo, uma teoria da vida cotidi ana5. Por-
tanto, embora frequentemente o d ireito urbanís tico se apoie, em
relação ao fenômeno urba no, apenas em um conhecimento rela-
3 Fernando G. Br uno Filho af irma que “A ligação u mbilical entre o d irei-
to urban ístico e o urban ismo é quase con senso na doutri na. Uns poucos,
entretanto, cu idaram se in serir em suas ex posições as etapa s de desen-
volvimento do d ito ‘urbani smo’. Mesmo por isso, grassam def inições do
direito u rbanístico como a quele voltado à anál ise de normas d isciplina-
doras dos espaç os habitáveis (nas cid ades, mas também no camp o), e
voltados ao bem- estar de seus habit antes”. BRUNO FILHO, Ferna ndo G.
Princípi os de direito urbanístic o, 2015, p. 47-48.
4 LEFEBVR E, Henri. A revolução urbana, 1999, p. 33- 50.
5 Sobre a urgência de u ma teoria sobre a v ida cotidiana , ver LEFEBVRE,
Henri. A vida cotidiana no mundo moderno, 1991.
O conhecimento sobre o fenômeno urbano 159
cionado ao urban ismo, este pode ser mais amplo. Marcelo Lopez
de Souza, por exemplo, ao tratar do pl anejamento e gestão urba-
nos, se refere aos outros componentes que podem compor o co-
nhecimento sobre o urbano, embora nas nossas mentalidades
prevaleça o urba nismo e o privilégio que est e aportaria sobre as
questões funcionais e estéticas6. A nosso ver, o pensa mento jurí-
dico urban ístico, ainda que i ncorpore, em parte, uma crítica ao
processo de urban ização decorrente do modo capitalista de
produção, pela própria in serção originá ria do pensamento urba-
nístico do urbanismo na doutrina jurídica e a institucionalização
de práticas decorrentes n a máquina pública, per manece preso a
essa forma de conheci mento para se aproximar do fenômeno
urbano e ai nda reproduz boa parte de suas prática s e crenças.
Henri Lefebvre, em A revolução urbana7 (1970), faz uma
abordagem do que, para ele, seri a era urbana, e do debate epis-
temológico em torno do seu conheci mento, para o qual propõe
algun s camin hos teóricos. Lefebvre sugere a div isão do fenômeno
em camadas, épocas, ou campos, que seri am três: o ru ral (cam-
ponês), o industrial e o u rbano8. Para Lefebvre existi ria uma ce-
gueira consist ente na observação do fenômeno urba no a partir da
prática e da teoria da industria lizaçã o9, crítica que, a nosso ver,
se aplica ao urbanismo i ncorporado pelo pensamento jurídico
6 Mudar a Cidade, 2016, p. 55-59.
7 LEFEBVR E, Henri. A Revolução urbana, 1999.
8 Idem, ibidem, p. 37.
9 Conforme Lefebv re, “Em que consiste t al cegueira? No f ato de olharmo s
atentamente o c ampo novo – o urbano –, ven do-o, porém, com os olho s,
com os conceitos, form ados pela prátic a e teoria da ind ustrial ização,
com um pensa mento analítico fra gmentário e e speciali zado no curso
desse período i ndustria l, logo, redutor da real idade em formaç ão.
Desde então, não ve mos essa realida de. Opomo-nos a ela, a af astamos,
a combatemos imp edindo-a de n ascer e de se desenvolver”. Ide m,
ibidem, p. 38.

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