A constitucionalização do direito civil: premissas para profundas alterações na responsabilidade civil

AutorJosé Gutemberg Gomes Lacerda
Ocupação do AutorMestre em Ciências Jurídicas pela Universidade de Lisboa. Juiz de Direito no Estado da Paraíba
Páginas9-51
CAPÍTULO
1
A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO
DIREITO CIVIL: PREMISSAS PARA
PROFUNDAS ALTERAÇÕES NA
RESPONSABILIDADE CIVIL
As principais mudanças observadas na Responsabilidade Civil, espe-
  danos reparáveis, decorrem do fenômeno
jurídico conhecido como constitucionalização do Direito Civil. Trata-se de
fenômeno complexo, multifacetado, cuja compreensão exige que sejam con-
sideradas as várias formas como se manifesta e os diversos efeitos que produz.
Por esses motivos, quatro dos principais aspectos da constitucionaliza-
ção do Direito Civil serão abordados em tópicos autônomos, mas inter-re-

dos princípios; 3) Cláusulas gerais e conceitos jurídicos indeterminados:
         
aplicabilidade direta dos direitos fundamentais (direkte Drittwirkung).
Os temas constituem as premissas teóricas básicas, indispensáveis ao en-

injusto e de sua vertente que protagoniza este trabalho: o dano moral coletivo.
1. A DESCODIFICAÇÃO DO DIREITO CIVIL
1.1 O processo de descodificação
Entende-se por código a lei que pretende disciplinar uma determinada
área do ordenamento jurídico, de forma completa, mediante um conjunto
de disposições coerentes e sistemáticas, que representem uma unidade.1
1 PERLINGIERI, Pietro. : introdução ao direito civil constitucional. 3. ed. Rio
de Janeiro: Renovar, 2007, p. 3-4.
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DANO MORAL COLETIVO: SOB A PERSPECTIVA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
JOSÉ GUTEMBERG GOMES LACERDA
    
jurídico e à completude da regulamentação de seu campo de incidência.
O protagonismo dos códigos foi iniciado no século XIX, fruto do movi-
mento da Escola da Exegese, com objetivos claros: criar sistemas fechados,

Constituição.2 Os códigos garantiam a segurança jurídica (rectius: estabili-
dade) necessária ao desenvolvimento da ideologia liberal reinante no século
XIX.
Todavia, a principal pretensão dos códigos – a completude – jamais
foi alcançada. Mesmo no ápice destes, autores como Savigny reporta-
vam a inconveniência da rigidez dos códigos diante de uma sociedade
que já se mostrava dinâmica.3 Na realidade, é mesmo algo inalcançável a
regulamentação de todas as situações da vida, em especial em um único
diploma legal.4
Essa fragilidade inerente aos códigos (como em qualquer tipo de lei) fez
-
tâncias não disciplinadas no Código Civil, mas sem a perda da recondução
principiológica ao código.
No entanto, as mudanças ideológicas provocadas pelas guerras mundiais
repercutiram determinantemente na legislação. O Estado Liberal mostrou-
se inadequado para lidar com a sociedade arrasada do pós-guerra. Adveio,
então, o Estado Social, intervencionista, presente em todos os setores da
sociedade, o que fez surgir uma série de leis especiais para disciplinar seto-

matérias inteiras não comportadas pelo Código Civil, o que fez nascerem os
denominados microssistemas.5
   
objetivos, repleta de cláusulas gerais
    
2 TEPEDINO, Gustavo. O Código Civil, os chamados microssistemas e Constituição: premissas para
uma reforma legislativa. In: TEPEDINO, Gustavo (coord.). Problemas de Direito Civil. Rio de
Janeiro: Renovar, 2001, p. 1-2.
3 NERY, Rosa Maria de Andrade. Introdução ao pensamento jurídico e à teoria geral do direito pri-
vado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 201.
4 In: MONTEIRO,
António Pinto; NEUNER, Jörg; SARLET, Ingo (org.). Direitos fundamentais e direito privado: uma
perspectiva de direito comparado. Coimbra: Almedina, 2007, p. 214.
5 TEPEDINO, Gustavo. O Código Civil, os chamados microssistemas e Constituição: premissas para
uma reforma legislativa. In: TEPEDINO, Gustavo (coord.). Problemas de Direito Civil. Rio de
Janeiro: Renovar, 2001, p. 4-6.
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CAPÍTULO 1
A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO CIVIL: PREMISSAS PARA PROFUNDAS ALTERAÇÕES ...
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A multiplicação de leis especiais corresponde ao primeiro aspecto do pro-
-
7 Ocorre que o aumento da legislação especial intro-
duziu princípios estranhos ou mesmos incompatíveis com o Código Civil.8
O fenômeno não se restringiu à realidade italiana descrita por Irti, mas re-
petiu-se em todos os ordenamentos jurídicos de tradição romano-germânica.
Os microssistemas criados por meio de legislação especial se apresentam
9 Eles possuem grau de generalidade me-
-
plo, destina-se apenas às pessoas menores de dezoito anos de idade. Além
disso, ostentam linguagem própria do grupo social ao qual se destina.10
Apesar de sua relevância, a criação dos microssistemas não é a única
.
O reconhecimento de força normativa11 aos princípios constitucionais
         
fonte normativa de superior hierarquia. A unidade originalmente pretendida
pelo código não é compatível com um sistema jurídico que reconhece força
normativa à Constituição, inclusive, admitindo aplicação direta12 de seus
princípios.13
1.2 A (re)unificação do sistema
No cenário atual, convivem vários microssistemas autônomos e o pró-
prio Código Civil, e não raramente apresentam princípios incompatíveis.
Haveria, deste modo, um sério comprometimento da noção de sistema ju-
rídico, por ausência de unidade e coerência. A passagem do monossistema
do Código Civil para um polissistema formado por várias leis especiais re-

6 Ibidem, p.1-8.
7 IRTI, Natalino. . In: Digesto delle discipline privatistiche. Turim: Utet, 1989, p. 142.
5. v.
8 Ibidem, p. 142.
9 Ibidem, p. 144.
10 Ibidem, p. 146.
11 Cf. Cap. 1, 2.
12 Cf. Cap. 1, 4.
13 MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: sistema e tópica no processo obrigacional.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 282.
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