Construção do modelo de repressão criminal brasileiro

AutorMarcelo D'Angelo Lara
Ocupação do AutorDoutor em Criminologia pelo PPGCJ-UFPB
Páginas59-107
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CONSTRUÇÃO DO MODELO DE
REPRESSÃO CRIMINAL BRASILEIRO
A estruturação da sistemática penal material brasileira desenvolveu-
se a partir do modelo medieval, naturalmente, em virtude de suas primeiras
regulamentações terem sido as vigentes na metrópole portuguesa durante o
período colonial.
O período da colonização do Brasil pelos portugueses coincidiu com um
momento de grande atividade legislativa na Europa ocidental. Como prece-
dentes, se destacam os sérios problemas de carestia enfrentados pelos povos
do Oeste europeu, a incidência de pestes, revoltas populares e o enfraque-
cimento das relações de vassalagem que ocorrem a partir do século XIV, o
que impulsionou o fortalecimento dos estados-nação. Em paralelo, a fome e
a pobreza motivaram um considerável aumento na prática de crimes166, mor-
mente os crimes contra o patrimônio, a exemplo de furtos de bens de consumo
e de animais de produção. Isto compeliu o rei a determinar a edição de um
compêndio que, entre outras necessidades, estabeleceu uma tipologia para a
criminalidade em Portugal167.
Como resultado foram editadas as Ordenações Afonsinas, coletânea de
leis publicadas em 1446 e raticadas em 1448 por ordem de Dom Afonso V.
A compilação apresentava, notadamente, inuência das Decretais de Gregório
IX, obra de Direito Canônico publicada em 1234 com a nalidade de reunir,
em seus cinco livros, um grande número de decretos canônicos difundidos
em diversas coleções168, e que viria a compor o Corpus Juris Canonici169.
166 RHEINHEIMER, Martim. Pobres, Mendigos y Vagabundos: La supervivência en la necesidad
(1450-1850). Madrid: Siglo XXI de España Editores S.A., 2009.
167 DUARTE, Luís Miguel. Justiça e criminalidade no Portugal medievo (1459-1481). Lisboa:
Fundação Calouste Gulbenkian, 1999.
168 MALACARNE, Cassiano. Decretales d. Gregorii papae IX (Liber Extra): decretais de
Gregório IX (livro 5, títulos 1-2). Tese (Doutorado em História). Programa de Pós-Graduação
em História, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2016, p. 68.
169 Tradução livre: “Corpo de leis canônicas”. A expressão se refere ao conjunto de fontes de direito
canônico que regulamentava o funcionamento dos tribunais eclesiásticos da Igreja Católica
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MARCELO D’ANGELO LARA
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Também dispostas em cinco livros, as Ordenações Afonsinas traziam em seu
quinto e último volume as previsões alusivas a crimes e procedimentos cri-
minais, disposições estas que foram aplicadas às colônias ultramarinas portu-
guesas, dentre as quais se enquadrava o Brasil.
No quinto livro das Ordenações Afonsinas, a proteção do patrimônio
ganhou evidente destaque, compondo uma das cinco sessões, que regulava
especicamente os crimes contra a propriedade e a ordem econômica170. O
destaque para a proteção patrimonial ganha relevância pelo fato do compên-
dio legal ter sido erigido logo nos estágios iniciais da inuência renascentista
em Portugal, e mais ainda por gurar a série relativa à proteção patrimonial
entre outras quatro que tutelavam valores há muito sedimentados no pensa-
mento jurídico Oeste Europeu, como a autoridade monárquica, a “moral e os
bons costumes”, a religião e a vida humana.
Alguns crimes contra o patrimônio previstos no Livro V das Ordenações
Afonsinas foram a falsicação de moedas (Título V); roubos em geral (Título
XXXIV); a subtração de ouro, prata, dinheiro, bestas ou outras coisas defesas
(Título ILVII); furto de aves e furtos em geral (Título LIV); circulação de
moeda falsa (Título XXXIX); fraude por uso de dados “viciados” em jogos de
azar (Título IL); exploração de jogos de azar (Título ILI); supressão de mar-
cos de delimitação de propriedade imóvel (Título LX); furtos (Título LXV);
expropriação de animais de produção por agentes militares (Título LXVI);
invasão de domicílio171 (Título LXXIII); fraude (Título LXXXII); e burla em
pagamento de dívidas (Título CVIII, item 3).
A considerável coleção de disposições que visavam tutelar diretamente
ou indiretamente a propriedade impressiona diante da consideração de que, à
época, não havia um conceito de propriedade privada estabelecido, ao menos
não um dotado de sentido de proposição sintética, conforme o pensamento
kantiano172. Anal, o conceito jurídico de propriedade privada foi inserido
ocidental. As decretais de Gregório IX representavam o segundo de seis compêndios que
compunham a coleção.
170 DUARTE, Luís Miguel. Justiça e criminalidade..., p. 263.
171 Relevante destacar que as Ordenações Afonsinas incriminavam a invasão da propriedade priva-
da com a intenção de fazer mal, o que destoa do conceito de invasão de domicílio atualmente
proposto pelo Artigo 150 do Código Penal brasileiro. A associação foi feita no contexto do
trabalho, em virtude do fato de o texto do Título LXXIII das Ordenações prever com uma das
modalidades de moris nocendi a invasão com o intento de “fazer mal à terra”.
172 KANT, Immanuel. Crítica da razão pura e outros textos filosóficos. São Paulo: Abril Cultural,
1974, p. 19.
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CRIMES PATRIMONIAIS – DELINQUÊNCIA COMO ELEMENTO DE INCLUSÃO SOCIAL
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como denição legal no direito europeu apenas no século XVII173 e, antes
disso, o termo propriedade pouco designava além do patrimônio imóvel ou
do arcabouço de bens de escambo e consumo diretamente detidos por um
cidadão.
Outro fator que merece atenção é o fato de o compêndio não tratar es-
pecicamente de uma legislação articulada de maneira meticulosa e técnica,
mas sim de mera organização da ius regni com objetivo de reunir registros
variados nos arquivos da Chancelaria-Mor portuguesa, bem como traduzir
diversas coletâneas em castelhano174. Sendo assim, não seria exagerado supor
que os valores tutelados pelas Ordenações Afonsinas tenham sido estabele-
cidos e pacicados na vivência jurídica lusitana no decorrer das décadas an-
teriores, especialmente nos períodos de ebulição que denem o marco social
antecedente à compilação.
Após a colonização do Brasil, as disposições lusitanas se converteram
nas Ordenações Manuelinas, editadas por ordem do rei D. Manuel I a partir
do ano de 1513175. Tais ordenações, pelos mesmos motivos e sob a mesma am-
bientação losóco-jurídica das Ordenações Afonsinas, mantiveram a divisão
pentateuca de sua antecessora, trazendo as disposições penais em seu quinto
e último livro.
Dentre as normas proibitivas propostas, permaneceram incriminadas
as condutas de falsicação de moedas e adulteração de peças de ourivesaria
(Título V); os furtos (Título XXXVII); subtração ou apropriação indevida de
aves (Título XLI); exploração de jogos de azar em prejuízo patrimonial de
terceiro (Título XLVIII); invasão de domicílio (Título LI); a criminalização
da conduta dos burlões e inliçadores176 (Título LXV); e a supressão de marcos
de delimitação de propriedade imóvel (Título XCV).
173 AYLMER, Gerald Edward. The Meaning and Definition of “Property” in Seventeenth-
Century England. Past and Present, Nº 86 (Feb., 1980), pp. 87-97, 1980. Oxford: University
Press, 1980, p. 87).
174 DOMINGUES, José. As Ordenações Afonsinas: três séculos de direito medieval, 1211-1512.
Sintra: Zéfiro Edições e Actividades Culturais, Unipessoal Lda., 2008, p. 65.
175 BRITO ARANHA, Pedro Wenceslau de. A imprensa em Portugal nos séculos XV e XVI: as
Ordenações d’El-Rei D. Manuel. Lisboa: Imprensa Nacional, 1898, p. 6).
176 Por meio das Ordenações Manuelinas, a coroa portuguesa criminalizou a conduta daqueles que,
sendo julgados devedores em procedimento judicial, não saldavam o débito. A esses o diplo-
ma batizou de burlões e inliçadores expressões que, em português arcaico, tem o sentido de
trapaceiro.
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