Investigação das razões da criminalidade patrimonial

AutorMarcelo D'Angelo Lara
Ocupação do AutorDoutor em Criminologia pelo PPGCJ-UFPB
Páginas157-193
5
INVESTIGAÇÃO DAS RAZÕES DA
CRIMINALIDADE PATRIMONIAL
Nas seções anteriores, o trabalho analisou a inclinação apresentada pela
sistemática penal brasileira em efetivar a proteção da propriedade privada,
por meio da incriminação progressiva de condutas – aqui chamadas de delitos
patrimoniais, atendendo a um critério de conveniência didática –, bem como
através da crescente repressão penal observada no país, mormente na última
década.
O que se observou de plano foi que, a despeito da avultação de novas
tipicações penais e da intensicação das prisões no período estudado, não
só os índices de delitos patrimoniais se mantiveram em ascensão até atingir
um patamar que representava o domínio absoluto das estatísticas repressivas,
como não se pode demonstrar efeitos do aparato coercitivo na redução da
criminalidade558, em especial a patrimonial.
Em virtude de tais observações, cabe inaugurar uma nova etapa da aná-
lise acerca do fenômeno criminalidade patrimonial, desta vez por meio da
investigação das aparentes razões deste meio de delinquência, construindo
o último axioma que irá compor o embasamento para a análise do conito
social imposto pelo direito penal patrimonialista.
Inicialmente, a intenção de ganho econômico emerge como a causa de
motivação evidente para a criminalidade patrimonial, de forma que esta ra-
micação da sistemática penal poderia ser entendida como aquilo que preco-
nizou Adam Smith559: o resultado de uma demanda por proteção derivada do
interesse na acumulação da propriedade. Esta demanda por proteção seria,
por sua vez, traduzida pelos postulados de John Stuart Mill560, que indicavam
558 O que se ilustra através da afirmação de Georg Rusche e Otto Kirchheimer (Punição..., p. 270),
no sentido de que a taxa de criminalidade é muito mais afetada pelo desenvolvimento econômico
que por questões de política penal.
559 SMITH, Adam. The Wealth of nations, 1776. Reprint, New York: Random House, 1937, p. 670.
560 MILL, John Stuart. The Collected Works of John Stuart Mill, edited by John Robson. Toronto:
University of Toronto Press, 1991, p. 888.
CRIMES PATRIMONIAIS_MIOLO.indd 157 30/08/2021 19:41:24
MARCELO D’ANGELO LARA
158
que a segurança da propriedade derivaria mais do senso de boas maneiras e
da opinião geral da sociedade moderna que propriamente das leis, sugerindo
que a tendência patrimonialista do direito penal seria um produto do interesse
coletivo, buscando conferir ecácia a uma particular moralidade561.
Entretanto, essas visões propedêuticas são incapazes de justicar o
aumento dos índices relativos aos delitos patrimoniais em contrapartida à
multiplicação da repressão e escalonamento do rigor das penas relativas a
tais crimes. Assim como torna-se incoerente com o contexto jurídico-social
estudado até o momento a máxima trazida pela primeira regra de Jeremy
Bentham562, de que a severidade da punição torna efetiva a expiação ao exce-
der as vantagens do delito, por meio do renamento utilitarista da observação
anteriormente proposta por Cesare Beccaria563, que atribuía a correção das
penas a um equilíbrio entre o mal do crime e o mal da pena. Isto porque, apa-
rentemente, os axiomas construídos nas seções anteriores deste trabalho com-
provam considerável incremento na severidade e regularidade das sanções,
sem a pretendida correlação com a redução da prática de delitos patrimoniais.
Não cabe a este texto explicar o crime em si, mesmo porque o estudo
se a a visão de Émile Durkheim564, de que o delito é um fenômeno não só
natural em qualquer sociedade como necessário aos processos de evolução
moral que acabarão por formar o senso de boas maneiras e a opinião geral
indicadas por Mill. O intento é investigar a possibilidade de se construir uma
teorização criminogênica da delinquência patrimonial, de forma a estabelecer
parâmetros nalísticos do infrator, posicionando-o corretamente na análise do
conito gerado pela proteção patrimonial através da lei penal.
Ainda que seja aparente a praxe da ciência criminológica brasileira em
primar por um enfoque crítico, tendendo a relacionar o aumento da criminali-
dade ao desdobramento de um processo capitalista pós-industrial565, tendendo
para o viés proposto pela criminologia radical, a criminologia sociológica pa-
rece ter obtido maior êxito em estudar as causas da criminalidade econômica.
561 DEODATO, Felipe Augusto Forte de Negreiros. Adequação..., p. 176.
562 BENTHAM, Jeremy. Teoria das penas legais e Tratado dos sofismas políticos. Leme: Edijur,
2002, p. 27.
563 BECCARIA, Cesare Bonesana. Dos delitos..., p. 31.
564 DURKHEIM, Émile. As regras..., p. 72.
565 FUKUYAMA, Francis. A grande ruptura: uma revolução silenciosa que já começou. O Estado
de São Paulo. São Paulo, 30 de maio de 1999. Caderno 2/Cultura, d-3 a d-7.
CRIMES PATRIMONIAIS_MIOLO.indd 158 30/08/2021 19:41:24
CRIMES PATRIMONIAIS – DELINQUÊNCIA COMO ELEMENTO DE INCLUSÃO SOCIAL
159
Isto não signica que o trabalho rompe com sua linha metodológica propos-
ta – ao contrário, busca estruturar a investigação das razões criminogênicas
sob uma perspectiva multidisciplinar –, uma vez que a criminologia crítica
não costuma fazer questionamentos relevantes sobre as causas da crimina-
lidade566. O que se pretende é assumir, denitivamente, a recomendação de
Lorenzo Morillas Cueva567, que concebeu a criminologia como uma ciência
livre de valores.
O estudo inicial dos propósitos da criminalidade patrimonial foi sugeri-
do por um pensador de inuência marxista568, o sociólogo holandês Willem
Bonger569, que relacionou diretamente os crimes contra a propriedade às
condições econômicas de seus autores. A premissa apresentada pelo neerlan-
dês inuenciou sociólogos norte-americanos570, que passaram a estudar os
aspectos criminogênicos da delinquência patrimonial sob uma perspectiva
econômica.
As mencionadas pesquisas não se iniciaram propriamente pela análi-
se das variáveis econômicas do crime, mas a partir da percepção de Robert
Merton571 de que a sociedade estabelece seus objetos de aspiração através dos
objetivos gerais comuns a todos os indivíduos, apontando o sucesso material
566 SMANIO, Gianpaolo Poggio. Criminologia e Juizado especial criminal. 2ª ed. São Paulo:
Atlas, 1998, p. 20.
567 MORILLAS CUEVA, Lorenzo. Metodología y ciencia penal. Granada: Universidad de
Granada, 1990, p. 96.
568 A classificação é objeto de dissenso doutrinário, posto que existem fontes que rejeitam a clas-
sificação de marxista dada ao pensamento de Bonger, rotulando-o como positivista (TAYLOR,
Ian; WALTON, Paul; YOUNG, Jock. The new criminology: for a social theory of deviance.
Londres: Routledge, 1973, p. 234), enquanto outras reconhecem nitidamente na obra do neer-
landês a influência marxista, inclusive, por meio da negação das teorias de matriz positivista
(SHECAIRA, Sérgio Salomão. Criminologia. 6ª ed., revista e atualizada. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2014, p. 128-129). Tal dissenso pode ser atenuado pelas colocações do próprio
William Bonger (Criminality and economic conditions. Tradução: Henry P. Horton. Londres:
William Heinemann, 1916), que reconhece em sua obra a influência do materialismo histórico
proposto por Marx – embora adaptado às suas noções particulares –, bem como manifesta con-
cordância com a relevância dada pelo filósofo alemão aos fatores econômicos como geradores
de tensões sociais.
569 BONGER, William Adrian. Criminality..., p. 66.
570 BERNSDORF, Wilhelm; KNOSPE, Horst. Internationales Soziologenlexikon, band 1. 2ª ed.
Sttutgart: Enke, 1980, p. 48.
571 MERTON, Robert King. Social theory and social structure. Nova York: The Free Press, 1968,
p. 171.
CRIMES PATRIMONIAIS_MIOLO.indd 159 30/08/2021 19:41:24

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT