Propriedade privada como um valor transcendental no direito ocidental e brasileiro
Autor | Marcelo D'Angelo Lara |
Ocupação do Autor | Doutor em Criminologia pelo PPGCJ-UFPB |
Páginas | 19-58 |
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PROPRIEDADE PRIVADA COMO UM
VALOR TRANSCENDENTAL NO DIREITO
OCIDENTAL E BRASILEIRO
O primeiro axioma que o trabalho pretende construir guarda relação com
a valoração da propriedade privada no Ocidente, por meio da investigação de
eventuais inuências absorvidas pela sistemática sociojurídica brasileira.
Antes da análise da hipótese de ocorrência de uma estruturação de direito
penal patrimonialista no Brasil, é necessário que se construa uma compreensão
axiológica da propriedade privada no Direito ocidental e, consequentemente,
no país. Esta compreensão perpassa o estudo dos precedentes históricos que
serviram de base para o conceito ocidental de propriedade privada, e os funda-
mentos de sua proteção pelas sistemáticas jurídicas historicamente construí-
das no Ocidente. Em seguida, faz-se necessária a consideração dos elementos
losócos que, ao longo dos séculos, permaneceram justicando a valoração
normativa da propriedade privada, não só permitindo sua proteção jurídica
como fomentando a sua ampliação, até a contemporaneidade.
2.1 Cidadania e liberdade individual: gênese da ideia da lei como
garantidora de direitos na Antiguidade
A formulação do pensamento do homem como um sujeito de direitos, o
que perpassa o estabelecimento de ideais como os de humanidade ou liberda-
de, encontra sua gênese no conceito de cidadania. Conforme explicou Costas
Douzinas3, o conceito de humanidade é uma invenção da modernidade, cuja
própria denominação – que se atribui a Cícero –, surgiu da expressão romana
humanitas, signicando o eruditio et institutio in bona artes4¸ o que diferen-
ciava o romano educado dos bárbaros. O conceito de humanidade não foi
3 DOUZINAS, Costas. Os Paradoxos dos Direitos Humanos. Tradução: Caius Brandão. Anuário
do Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas em Direitos Humanos, v. 1, n. 1, 2011, p. 4.
4 Tradução livre: “erudição e instrução em boa conduta”.
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MARCELO D’ANGELO LARA
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estabelecido para caracterizar o indivíduo da espécie humana de forma geral,
mas sim o homem detentor de direitos nas sociedades helênica e romana,
denominado cidadão.
Essa visão permeou a estruturação do sentido de liberdade e direitos indi-
viduais transcritos nos sistemas jurídicos dessas duas grandes civilizações. Tais
ideias encontraram reforço na losoa grega – que inuenciou sobremaneira o
pensamento romano através das interações iniciais na Magna Grécia –, sobre
a existência de um direito natural e innito, composto de regras autoevidentes,
comprováveis de plano e impassíveis de alteração.
A interpretação de que as coisas são innitas e imutáveis, desta forma
se manifestando a organização social como substrato da estruturação natural
do Universo, própria do pensamento de Parmênides5, foi notada nos escri-
tos jurídicos de Zaleuco de Locros, tido como o primeiro dos legisladores6.
Posteriormente, Aristóteles7 viria a endossar essa estrutura de pensamento,
diferenciando os escravos daquelas pessoas que a natureza honrou com a li-
berdade. Embora não dotada da mesma profundidade contemplativa da lo-
soa helênica, tal mentalidade foi observada na organização de sociedades
vetustas, a exemplo da mesopotâmica, conforme disposições do Código de
Ur-Nammu8, que já apresentava a divisão social dicotômica entre homens
livres e escravos9.
Essa mentalidade levou a criação de uma estraticação social, que, cada
vez mais, se fez notada na sociedade helênica, especicamente em Atenas,
em virtude da atração de estrangeiros àquela pólis pelo comércio, como uma
necessidade de amenização do mal-estar causado pela presença de elemen-
tos estranhos ao regime vigente10. Em estágios mais avançados, a reforma
5 SANTOS, José Trindade. Da natureza: Parmênides. Thesaurus Editora, 2000, VIII. Parmênides
de Eleia foi um dos mais importantes filósofos eleatas do período pré-socrático, precursor do
racionalismo na filosofia helênica.
6 WOLKMER, Antonio Carlos. Fundamentos de história do direito. Belo Horizonte: Del Rey,
2007, p. 51.
7 ARISTÓTELES. Política. Tradução: Mário da Gama Kury. Brasília: UnB, 1997, p. 17.
8 Codificação erigida aproximadamente em 2040 a.C., que regulamentava costumes antigos de forma
taxativa, reconhecido como o primeiro código escrito da história da humanidade (HAMBLIN,
William J. Warfare in the Ancient Near East to 1600 bc. New York: Routledge, 2006).
9 GILISSEN, John. Introdução histórica ao direito. Tradução: A.M. Hespanha e L. M. Macaista
Malheiros. 2ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Goubenkian, 1995, p. 61.
10 ENGELS, Friedrich. A origem da família, da propriedade privada e do Estado. Joinvile:
Clube de Autores, 2009, p. 126.
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CRIMES PATRIMONIAIS – DELINQUÊNCIA COMO ELEMENTO DE INCLUSÃO SOCIAL
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de Sólon chegou a dividir a sociedade ateniense em quatro classes criando,
ainda, a Eclésia, assembleia popular capaz de produzir decisões políticas11.
Dado o apreço dos romanos pelas normatizações escritas, provavelmen-
te as reproduções do pensamento indicado em legislações da Magna Grécia
inuenciaram a losoa e o direito romanos, de forma a sedimentar o pensa-
mento de que os ideais jurídicos de cidadania e liberdade estariam intrinse-
camente ligados ao posicionamento social do indivíduo. Ou, de forma mais
clara, que este posicionamento social era denido por uma ordem natural
que preestabelecia a liberdade, sendo a cidadania um derivativo lógico dessa
predisposição.
Por este motivo, os romanos reproduziram o conceito helênico de cida-
dania, entendida não como um elemento de caracterização de direitos inatos
ao indivíduo humano, mas sim como a designação de um direito de precedên-
cia em uma sociedade estraticada, naquilo que Michel Villey12 chamou de
superação das liberdades gregas. Para tanto, instituíram o privilegiu13 como
gênese de um direito exclusivo, regalia ou imunidade conferida aos cidadãos
dotados de liberdade – condição ainda ligada ao conceito helênico de liber-
dade –, na forma de status que permitia ao cidadão da pólis participar das
deliberações sobre a vida pública14.
Destes privilégios derivou a condição de cidadão, ou quirites15 a qual, mais
tarde, convergiu para a de civitas, posição social que garantia ao seu detentor
o papel de sujeito de direito privado. Esta condição motivou o estabelecimento
do privus como espaço de limitação do imperium estatal sobre o indivíduo,
estrutura essencial do pater familias, que garantia ao cidadão – notadamente o
homem “chefe de família” –, jurisdição em sua propriedade privada.
Posteriormente, houve uma reorganização social, especicamente atra-
vés da constituição de Sérvio Túlio, que distribuiu a sociedade romana em seis
11 ARISTÓTELES. A Constituição dos Atenienses. Tradução: Delfim Ferreira Leão. Lisboa:
Calouste Gulbekian, 2003, item 4-9.
12 VILLEY, Michel. O direito e os direitos humanos. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 53.
13 Reputa-se a gênese do conceito à expressão privus-lex, significando regulamentação erigida no
sentido de beneficiar indivíduo específico.
14 CONSTANT, Benjamin. Da liberdade dos antigos comparada à dos modernos. In: Filosofia
Política 2. Porto Alegre: LP&M, 1985, p. 11.
15 Expressão também conhecida como quiritium, significando “lanceiro”, como se designava o
cidadão na Roma Antiga. A terminologia provavelmente remonta às tradições da Antiguidade,
em que era comum garantir cidadania aos militares.
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