Função orgânica da delinquência patrimonial na sociedade de consumo
Autor | Marcelo D'Angelo Lara |
Ocupação do Autor | Doutor em Criminologia pelo PPGCJ-UFPB |
Páginas | 195-233 |
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FUNÇÃO ORGÂNICA DA DELINQUÊNCIA
PATRIMONIAL NA SOCIEDADE
DE CONSUMO
Em conformidade com a proposta metodológica do trabalho, as infor-
mações discutidas nos capítulos anteriores constroem quatro axiomas, que
servem de base para a análise crítica da delinquência patrimonial, mormente
o fenômeno moderno da inclusão na sociedade de consumo através do crime.
Os axiomas estruturados reetem facetas do aparato de repressão e das
motivações para as práticas criminosas – que, embora distintas, se relacionam
–, viabilizando a análise da função da delinquência patrimonial na sociedade
de consumo, com base em quatro postulados: 1) o processo de desenvolvi-
mento dos valores normativos na sociedade ocidental manteve a proteção
da propriedade como um de seus pressupostos fundamentais, sublevando a
propriedade privada como um valor jurídico transcendental; 2) a estruturação
da sistemática penal material brasileira apresenta um intenso viés patrimo-
nialista, que extrapola o mero intento de proteção da propriedade, escudando
privilégios e sugerindo uma aplicação segregatória do jus puniendi estatal;
3) a realidade da repressão criminal no Brasil atende ao sugestionamento
da sistemática penal, denotando evidente propensão a punir a criminalida-
de patrimonial, buscando promover o desencorajamento desta modalidade
de delinquência por meio da pena privativa de liberdade; e 4) a despeito de
uma exarcebação axiológica, normativa e repressiva da proteção da proprie-
dade privada, o arcabouço protetivo construído é improfícuo para produzir
os efeitos sociais pretendidos, haja vista que a prevenção geral demanda do
indivíduo uma abstenção de participação na sociedade de consumo, quando a
inovação criminosa se apresenta como alternativa mais proveitosa à satisfa-
ção dos anseios do indivíduo.
Considerados os quatro pilares construídos pelo trabalho, percebe-se a
nítida existência de uma tensão social que se projeta nas relações transacionais
e de acumulação patrimonial, tendo de um lado o interesse na proteção dos
privilégios dos indivíduos que participam das interações de posse e consumo
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MARCELO D’ANGELO LARA
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através de meios lícitos, e do lado antagônico indivíduos que buscam par-
ticipar desses espaços transacionais obtendo recursos nanceiros através de
práticas criminosas. Estes opostos representam o antagonismo que justica a
maximização penal vivenciada na atualidade, e que o presente trabalho visa
esmiuçar.
6.1 Direito penal segregatório como espaço de exclusão
Considerando os axiomas apresentados no segundo e terceiro capítulo des-
te trabalho é possível estabelecer, com certa segurança, que a proteção patrimo-
nial e a manutenção dos privilégios das elites econômicas guraram como um
dos pressupostos elementares do direito penal brasileiro desde as Ordenações
portuguesas que deniram os parâmetros jurídicos do Brasil colonial.
O estabelecimento dessa sistemática concretizou o parâmetro tão obser-
vado pela criminologia crítica, reproduzindo a visão marxista de que o arca-
bouço penal se apresenta como um mecanismo de opressão de classes sociais
dominadas por classes dominantes705. Com efeito, está presente na sistemática
jurídico-penal brasileira a maior parte dos elementos apontados na percepção
marxista do aparato penal como um mecanismo de preservação do homem
egoísta ou, no mínimo, como uma estrutura de segurança incapaz de elevar
a sociedade acima de seu próprio egoísmo706. Encontra-se parcialmente sedi-
mentado o modelo de justiça criminal que reforça a liberdade em um sentido
materialista, baseada nas categorias do “ter” ou “não ter”, valendo-se de um
aparato de rearmação de virtudes cristãs no sistema de penas e recompensas,
sob uma perspectiva benthaniana707.
Diante desta realidade, sobretudo através da análise dos índices de re-
pressão criminal apontados no quarto capítulo deste texto, mostra-se patente
que o aparato punitivo enfatiza a repressão de condutas comumente pratica-
das pelos despossuídos, o que reforça o caráter segregatório do Direito Penal,
sobretudo em sua estrutura de aplicação708. Não seria exagerado reconhecer
705 MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Obras..., p. 114.
706 MARX, Karl. A questão judaica. 2ª ed. São Paulo: Moraes, 2016, p. 25.
707 MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A sagrada família: ou a crítica da Crítica crítica contra
Bruno Bauer e consortes. São Paulo: Boitempo, 2011, p. 54.
708 Neste sentido: ZAFFARONI, Eugênio Raúl. Em busca das penas perdidas. 3ª ed. Tradução:
Vânia Romano Pedrosa e Amir Lopes da Conceição. Rio de Janeiro: Revan, 1998; ROXIN,
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CRIMES PATRIMONIAIS – DELINQUÊNCIA COMO ELEMENTO DE INCLUSÃO SOCIAL
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na sistemática de repressão penal brasileira o fenômeno que Elena Larrauri709
chamou de “populismo punitivo”710, que busca reidenticar teorias de defe-
sa social, geralmente valendo-se do encarceramento como um instrumento
de manutenção da integridade social. A política de encarceramento, indo de
encontro aos anseios sociais de segurança e desesperança ante os pleitos de
impunidade, acaba por reforçar o apelo positivo de um sistema repressivo,
dissimulando a segregação como um dos principais atributos deste sistema.
Evidente que o emprego deste punitivismo populista falha em atingir as
nalidades a que se propõe. Ao revés, emerge como uma sistemática de prote-
ção legal com fundamentos falaciosos, na forma de ilusão falsamente baseada
na razão711. Tal ilusão se sustenta, entretanto, como estrutura de justicação,
que tem como objetivo preservar padrões sociais segregatórios712, moldando a
realidade social e estabelecendo os padrões de legalidade e liberdade. Resta,
portanto, o questionamento a respeito de como a sociedade tolera uma siste-
mática penal que se mostra falha tanto em atingir seus objetivos quanto em
dissimular suas reais razões. Esta indagação se mostra como o ponto que este
trabalho mais facilmente se desincumbe de esclarecer: não se trata de uma ilu-
são imposta por um poder político como um imperativo de ordem social; mas
sim de uma demanda dos detentores de poder socioeconômico, no sentido de
proteger seu arcabouço de patrimônio e regalias sem, contudo, relegar aqueles
menos favorecidos a uma posição de completa exclusão social. Em suma,
Claus. Política criminal e sistema jurídico penal. Tradução: Luiz Greco. Rio de Janeiro:
Renovar, 2000; CERVINI, Raúl. Os processos de descriminalização. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 1995; FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. A história da violência nas prisões.
Petrópolis: Vozes, 2008.
709 LARRAURI, Elena. Populismo punitivo... y como resistirlo. Revista de Estudos Criminais,
Sapucaia do Sul, Notadez n.25, abr./jun, 2007, p. 5.
710 O termo, originalmente, foi cunhado por Anthony Bottoms [The Philosophy and Politics of
Punishment and Sentencing. In: CLARKSON, Chris; MORGAN, Rod (Org.). The Politics of
Sentencing Reform. Oxford: Clarendon Press, 1995, p. 39], ao descrever uma modalidade de
atuação político-administrativa que se valia do direito penal buscando três finalidades: reduzir os
índices de criminalidade por meio de penas mais rígidas; reforçar o consenso moral da sociedade
por meio da repressão penal; e angariar votos através do logro das primeiras duas finalidades.
711 FEITOSA, Enoque. Forma jurídica e método dialético: a crítica marxista ao direito. Marxismo,
realismo e direitos humanos. João Pessoa: Editora Universitária da UFPB, p. 96-106, 2012,
p. 154.
712 FREITAS, Lorena. Uma análise pragmática dos direitos humanos. In: FREITAS, Lorena;
FEITOSA, Enoque. Marxismo, realismo e direitos humanos. João Pessoa: Editora Universitária
da UFPB, p. 226-240, 2012, p. 229.
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