Contrato de trabalho - caracterização, morfologia e nulidades. Conteúdo contratual - peculiaridades. O sistema de cotas no contrato de trabalho
Autor | Mauricio Godinho Delgado |
Páginas | 606-636 |
Page 606
Contrato é o acordo tácito ou expresso mediante o qual ajustam as partes pactuantes direitos e obrigações recíprocas.
Essa figura jurídica, embora não tenha sido desconhecida em experiências históricas antigas e medievais, tornou-se, no período contemporâneo, um dos pilares mais significativos de caracterização da cultura sociojurídica do mundo ocidental.
A relevância assumida pela noção e prática do contrato, nos últimos séculos, deriva da circunstância de as relações interindividuais e sociais contemporâneas — à diferença dos períodos históricos anteriores — vincularem seres juridicamentes livres, isto é, seres desprendidos de relações institucionalizadas de posse, domínio ou qualquer vinculação extravolitiva a outrem (como próprio da escravidão ou servidão). Ainda que se saiba que tal liber-dade muitas vezes tem dimensão extremamente volátil ou enganosa (basta lembrar-se dos contratos de adesão, que são típicos do Direito do Trabalho e do Direito Consumista, ilustrativamente), o fato é que os sujeitos compare-cem à celebração dos atos jurídicos centrais da sociedade atual como seres teoricamente livres. Nesse quadro, apenas o contrato emergiu como instrumento jurídico hábil a incorporar esse padrão específico de relacionamento entre os indivíduos, à medida que essencialmente o contrato é que se destacava como veículo jurídico de potenciamento ao exercício privado da liberdade e da vontade.
A experiência interindividual e social dos últimos duzentos anos encarregou-se de demonstrar quão quimérica e falaciosa podem ser essas noções de liberdade e vontade no contexto das relações entre pessoas e grupos sociais. O Direito do Trabalho, a propósito, é fruto da descoberta do caráter um tanto falacioso e quimérico de semelhante equação jurídica. Contudo, não obstante as graves limitações à liberdade e ao exercício pessoal da vontade em inúmeras situações contemporaneamente relevantes, preserva-se como essencial o reconhecimento de que tais valores são dados inerentes à contextura das relações sociojurídicas típicas do mundo contemporâneo. É que esse reconhecimento permite se vislumbrar um potencial de avanço e desenvolvimento do plano da liberdade e vontade no
Page 607
quadro das relações humanas — desenvolvimento e avanço inviáveis em estruturas sociojurídicas que não tivessem tais elementos como integrantes estruturais de suas relações características.
No Direito do Trabalho, a figura do contrato desponta com toda sua faceta enigmática. É que, de um lado, está-se diante talvez do mais eloquente exemplo de contrato de adesão fornecido pelo mundo contemporâneo, onde o exercício da liberdade e vontade por uma das partes contratuais — o empregado — encontra-se em polo extremado de contingenciamento. De outro lado, porém, a simples presença das noções de liberdade e vontade no contexto dessa relação contratual já alerta para o potencial de ampliação de seu efetivo cumprimento em harmonia com avanços sociopolíticos democráticos conquistados na história.
Definir um fenômeno consiste na atividade intelectual de apreensão e desvelamento dos elementos componentes desse fenômeno e do nexo lógico que os mantêm integrados. A definição é, pois, uma declaração da essência e composição de um determinado fenômeno: supõe, desse modo, o enunciado não só de seus elementos integrantes como do vínculo que os mantém unidos.
A definição do contrato de trabalho não foge a essa regra. Identificados seus elementos componentes e o laço que os mantêm integrados, define-se o contrato de trabalho como o negócio jurídico expresso ou tácito mediante o qual uma pessoa natural obriga-se perante pessoa natural, jurídica ou ente despersonificado a uma prestação pessoal, não eventual, subordinada e onerosa de serviços.
Também pode ser definido o contrato empregatício como o acordo de vontades, tácito ou expresso, pelo qual uma pessoa física coloca seus serviços à disposição de outrem, a serem prestados com pessoalidade, não even-tualidade, onerosidade e subordinação ao tomador. A definição, portanto, constrói-se a partir dos elementos fático-jurídicos componentes da relação empregatícia, deflagrada pelo ajuste tácito ou expresso entre as partes1.
Definição da CLT: crítica — A CLT define a figura jurídica em exame. Dispõe o art. 442, caput, que “contrato individual de trabalho é o acordo tácito ou expresso, correspondente à relação de emprego”.
Page 608
O texto da CLT não observa, como se percebe, a melhor técnica de construção de definições: em primeiro lugar, não desvela os elementos integrantes do contrato empregatício; em segundo lugar, estabelece uma relação incorreta entre seus termos (é que em vez de o contrato corresponder à relação de emprego, na verdade ele propicia o surgimento daquela relação); finalmente, em terceiro lugar, o referido enunciado legal produz um verdadeiro círculo vicioso de afirmações (contrato/relação de emprego; relação de emprego/contrato)2.
Como bem percebido pela pesquisa doutrinária acerca do assunto, o texto celetista verdadeiramente resultou de um “acordo teórico” entre as correntes contratualistas e acontratualistas na época de elaboração da CLT, na década de 1940: a norma legal reverenciou, a um só tempo, tanto a noção de contrato (teoria contratualista) como a noção de relação de emprego (teorias da relação de trabalho e institucionalista) — em franco prejuízo à melhor técnica jurídica3.
A denominação ideal de uma figura será aquele epíteto que melhor espelhar o efetivo conteúdo da figura identificada. Nesse quadro, têm surgido críticas à denominação contrato de trabalho, em geral ao fundamento de que inexistiria perfeita correspondência entre a referida denominação e o efetivo conteúdo do pacto laborativo a que ela se reporta.
A mais tradicional crítica é aquela apontada por Planiol. Sustentava o clássico jurista não traduzir a expressão contrato de trabalho a natureza do instituto a que se referia, indicando, em vez disso, o objeto da prestação (trabalho). Seria como se o contrato de transporte fosse designado pelo epíteto contrato de coisa (ou o contrato de locação imobiliária pelo epíteto contrato de bem imóvel)4.
A objeção, contudo, não tem valor absoluto, por distintas razões: de um lado, porque outros ramos jurídicos também conhecem designação de contrato efetivada sem referência à natureza do instituto; assim como conhecem designação de contrato elaborada reportando-se ao objeto da prestação5. De outro lado, porque a denominação pode enfatizar o aspecto mais relevante, do ponto de vista sociojurídico, do instituto a que se refere. No presente caso, o aspecto mais relevante é exatamente o trabalho prestado
Page 609
por uma pessoa natural a outrem. Se o epíteto escolhido produzir essa ênfase terá cumprido, ainda que em parte, a missão de espelhar o conteúdo essencial da figura definida.
A segunda objeção comumente produzida argumenta que a expressão trabalho tem amplitude muito maior do que o efetivo conteúdo do contrato em exame, já que compreende não só a relação de emprego como também a relação de trabalho autônomo, eventual, avulso e inúmeras outras que não sejam, tecnicamente, de natureza empregatícia. Nessa linha, seria mais precisa e adequada a expressão contrato de emprego, porque atada à estrita e tipificada relação jurídica envolvida por esse contrato, a relação de emprego6.
Não obstante a segunda objeção seja, do ponto de vista técnico, irreparável — dado que o epíteto contrato de trabalho pretende referir-se estritamente à relação de emprego e não às relações de trabalho em geral —, consagrou-se, inquestionavelmente, a expressão contrato de trabalho. Essa consagração, como fato sociocultural, suplanta as restrições classicamente opostas ao epíteto. É que hoje se sabe da delimitação estrita direcionada ao objeto do contrato de trabalho tipificado pela CLT; sabe-se que quando se fala contrato de trabalho, no sentido estrito, quer-se referir à noção técnico-jurídica de contrato de emprego.
De todo modo, deve-se ressaltar que a expressão contrato de trabalho pode ser também utilizada no sentido lato. Se o for, estará abarcando todos os contratos que tenham como objeto a pactuação de prestação de serviços por uma pessoa natural a outrem. Abrangeria, pois, o contrato de trabalho no sentido estrito (ou contrato de emprego, isto é, contrato que tenha como objeto a prestação empregatícia de trabalho), englobando, ainda, o contrato de empreitada, o contrato de prestação autônoma de serviços, de prestação eventual de serviços, de prestação de serviços de estágio e outros contratos de prestação laboral distinta da empregaticiamente pactuada.
A caracterização de um determinado fenômeno é o procedimento intelectual mediante o qual se desvelam os elementos integradores desse fenômeno e que instituem as marcas mais proeminentes de sua estrutura e dinâmica operacional. H.P. Fairchild define caráter como a “qualidade, traço ou conjunto de traços, atributos ou características que servem para indicar a qualidade essencial de uma pessoa ou coisa”7. A caracterização é o desvelamento desses atributos e qualidades.
Page 610
O procedimento de caracterização é mais amplo que o da definição. Nesta indicam-se os elementos componentes essenciais de um fenômeno e o nexo que os mantêm integrados. Na...
Para continuar a ler
PEÇA SUA AVALIAÇÃO