Contratos

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cOnTRATOS
21.1 FUNDAMENTOS E PANORAMA
21.1.1 Contratos da Administração
Pactuar é natural na vida social. Pactos unem, geram previsibilidade, estabilizam
relações e fortalecem a conf‌iança. Por essas e outras vantagens, os serem humanos
negociam e pactuam a todo momento desde seu âmbito familiar até o campo das
relações econômicas.
Como f‌icções criadas pelos humanos e reconhecidas pelo direito, as pessoas
jurídicas atuam de igual forma. Ora pactuam entre si, ora com pessoas físicas, ingres-
sando em relações jurídicas pautadas no estabelecimento de obrigações recíprocas e
interdependentes. Não há pessoa jurídica não estatal viável sem contratos. Af‌inal, elas
não dispõem de poderes de autoridade, restando proibidas de impor suas vontades
aos outros. Para agir e cumprir suas f‌inalidades, dependem de constante negociação
e da formalização de convenções que estabeleçam obrigações.
Com o Estado, a situação é distinta. Embora muitas de suas funções e ações
também dependam da participação de terceiros, o poder de autoridade baseado na
soberania sobre a nação e sobre o território permite que atos administrativos vincu-
lem particulares, tornando o contrato uma f‌igura teoricamente prescindível. Ocorre
que, ao longo do tempo, o modelo de imposição da vontade estatal aos particulares
por meio de instrumentos unilaterais e monológicos de polícia administrativa, in-
tervenção na propriedade entre outros, mostrou def‌iciências e insucessos.
A uma, para impor suas vontades ao mercado ou à sociedade, o Estado depende
de legitimação democrática expressa em autorizativos expedidos pelo Poder Legis-
lativo e cuja elaboração não é simples em razão da dinâmica do processo legiferante.
A duas, as ações unilaterais nem sempre contam com aceitação dos destinatários, o
que, a três, tende a torná-las suscetíveis a resistência, conf‌litos e judicialização. Por
esses e outros motivos, além de ser burocrática, a ação impositiva estatal é geralmente
menos ef‌iciente, mais autoritária e custosa.
Essa percepção fez que, ao longo da história, os Estados democráticos gradual-
mente absorvessem formas convencionais de pactuação de obrigações, utilizando-as
paralelamente ou em substituição a medidas unilaterais. No direito internacional
público, esse movimento dá origem a tratados, convenções, acordos plurilaterais
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MANUAL DE DIREITO ADMINISTRATIVO – VOLUME III • Thiago Marrara
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e multilaterais. Já no direito interno, faz surgir acordos nos campos do direito pro-
cessual, do direito civil, do direito penal e, igualmente, do direito administrativo.
Nessa última área, a relevância e a diversidade das convenções formalizadas
pelo Estado tornaram necessária a elaboração doutrinária do conceito de “contratos
da Administração”, que designa toda a amplíssima gama de contratos f‌irmados no
âmbito das funções administrativas ora pela Administração Direta das pessoas polí-
ticas, ora pelas entidades especializadas que formam suas Administrações Indiretas.
Essa breve def‌inição revela que o conceito de “contratos da Administração” está
assentado em dois critérios cumulativos: o subjetivo e o material. Pela perspectiva
subjetiva ou pessoal, o conceito abrange somente os contratos f‌irmados pelo Esta-
do. Dessa maneira, por exemplo, não representam contratos da Administração os
celebrados por empresa não estatal que atue como concessionária com outros par-
ticulares. Tampouco se enquadram no conceito discutido os contratos f‌irmados por
uma OS ou outro ente do terceiro setor com particulares, a despeito de envolverem
objeto de interesse público. Para que se identif‌ique um contrato da Administração,
é imprescindível que, ao menos, um dos contratantes seja a Administração Pública,
Direta ou Indireta.
O segundo critério que sustenta o conceito é material. Nesse sentido, os contra-
tos da Administração abrangem unicamente os pactos que dizem respeito à execução
de função administrativa. O fato de uma convenção qualquer ter como parte o Estado
não bastará para que se insira no conceito. Os tratados internacionais, as conven-
ções e os acordos processuais não representam contratos da Administração por um
motivo simples: embora haja Estado, o pacto não serve a uma função administrativa.
Ao contrário dos critérios essenciais de natureza subjetiva e material, o regime
jurídico a que certo contrato se submete não é relevante para inclui-lo no conceito
em debate. Isso signif‌ica que os contratos da Administração formam uma categoria
teórica ampla e capaz de abarcar:
I. Contratos administrativos, ou seja, contratos da Administração predominante-
mente regidos pelo direito público interno (como os contratos de programa,
de ef‌iciência, de PPP etc.) e
II. Contratos privados da Administração, isto é, contratos estatais sobre função
administrativa, mas disciplinados predominantemente pelo direito privado
(como contratos de locação, de sociedade, de seguro e de compra e venda).
Essa diferenciação teórica dos contratos da Administração nas subcategorias
dos contratos administrativos propriamente ditos, de um lado, e dos contratos
privados da Administração, de outro, é útil para revelar a pluralidade de regimes
jurídicos que incidem sobre a Administração. Na prática, porém, essa diferença é
mais tênue e sútil do que se imagina. Nenhum contrato segue regime puramente
privado ou puramente público. Normas públicas e privadas se misturam, havendo,
tão somente, uma prevalência de um grupo ou outro de normas conforme o tipo do
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contrato e a maturidade do direito administrativo para discipliná-lo. Exatamente por
isso, como se demonstrará ao longo desse capítulo, a LLic abre espaço para aplicação
subsidiária de normas de direito contratual privado para todo e qualquer contrato
administrativo que não conte com norma própria no direito público.
21.1.2 Contratualizaç ão administrativa
A legislação e a teoria dos contratos administrativos ganharam força e comple-
xidade no Brasil nas últimas décadas em virtude do movimento de multiplicação
de instrumentos convencionais envolvendo a Administração Pública. Essa onda de
valorização contratual é designada por “contratualização” e atinge as relações entre o
Estado e o mercado, o Estado e o terceiro setor, bem como as relações estatais puras,
ou melhor, entre entidades da Administração Pública (relações interadministrativas)
e entre órgãos públicos dentro de um mesmo ente (relações intra-administrativas).
Como fenômeno indicativo da crescente utilização dos contratos como forma
de governar e administrar, ora a contratualização se coloca como via alternativa aos
modos unilaterais de ação pública, ora os substitui por completo. A preferência pelas
f‌iguras contratuais se justif‌ica pelos ganhos de democratização, de legitimidade, de
segurança jurídica e de ef‌iciência que elas ocasionam quando comparadas à ação
administrativa tradicional, marcada pelo caráter impositivo, unilateral e monoló-
gica. Na medida em que o Estado negocia, sua ação se torna mais permeável aos
interesses da população, dos agentes econômicos e dos agentes sociais. Ganha, pois,
legitimidade democrática e amplia sua aceitabilidade, estimulando os envolvidos
nos mecanismos contratuais a respeitarem as obrigações pactuadas.
No Brasil, o movimento de contratualização administrativa f‌loresceu sobretudo
a partir da década de 1990. Como demonstrado no capítulo anterior sobre licitações,
a partir de então, o Congresso Nacional editou a LLic de 1993, a Lei do RDC, a Lei
das Empresas Estatais, a Lei das OSCIP, a Lei das OS, a Lei das OSC, a LLic de 2021,
entre outros diplomas que edif‌icaram um abrangente direito contratual público
formado por variadas espécies convencionais e múltiplos regimes jurídicos. Essas
leis se sustentam na competência privativa do Congresso para editar normas gerais
sobre contratação pública em todas as suas modalidades (art. 22, inciso XXVII da
CF/88) e geram uma padronização expressiva do direito contratual público apesar
da estrutura federativa. Não impedem, contudo, que esse ramo se expanda e se di-
ferencie pelos inúmeros entes subnacionais nos espaços de criação normativa que
a federação lhes reserva.
Em vista da riqueza das novas formas de ajuste que se vislumbra no ordenamento
jurídico, torna-se necessário repensar as classif‌icações dos contratos administrativos,
superando a visão limitada que os restringe aos contratos de obras, bens e serviços
disciplinados pela LLic. Buscando contribuir com o avanço doutrinário no tema,
Fernando Dias Menezes de Almeida emprega o conceito de “módulos convencionais”
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