Processos

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PROcESSOS
19.1 TEORIA GERAL
19.1.1 Denições básic as: processos e procedimentos administrativos
As incontáveis ações que o Estado emprega na tentativa de atingir os objetivos
estabelecidos pelo povo por meio de seus representantes não podem se realizar de
maneira aleatória, desorganizada, isolada e pontual. Objetivos complexos exigem
ações estruturadas, racionais, articuladas, bem fundamentadas e planejadas, além
de legítimas. É nesse contexto que os procedimentos administrativos ganham força
como sequências organizadas de ações no exercício das funções administrativas. Toda e
qualquer sequência de ações interdependentes da Administração se enquadra nesse
amplo conceito de procedimento. Exemplos disso são os procedimentos internos de
organização de arquivos e estoques, os procedimentos de f‌iscalização de tráfego, os
de treinamento e capacitação, os de atendimento à população em hospitais públicos,
os de seleção e avaliação em escolas públicas, entre diversos outros.
O conceito de procedimento é bastante alargado, muito mais que o de processo.
Ainda que, por vezes, empreguem-se as duas palavras como sinônimos, rigorosamente,
os processos administrativos conf‌iguram somente os procedimentos que envolvem
acusações ou conf‌litos de interesses ou direitos. Por isso, destacam-se em relação aos
demais e oferecem necessariamente uma série de garantias jurídicas aos sujeitos que
deles participam como interessados. Processos administrativos são procedimentos
qualif‌icados por direitos e garantias dos sujeitos em conf‌lito. Eles são executados pela
Administração com a observância da ampla defesa e do contraditório e se diferenciam
dos processos legislativos e judiciais, penais ou cíveis, por culminarem em decisão de
natureza administrativa emitida no âmbito de qualquer dos três Poderes.
Essa def‌inição de processo administrativo como subcategoria qualif‌icada de
procedimento deriva do art. 5º, inciso LV da Constituição da República. De acordo
com esse dispositivo, aos “litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos
acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e
recursos a ela inerentes”. Essa norma é extremamente relevante, pois esclarece que
os direitos inerentes à defesa devem ser conferidos, em primeiro lugar, nos processos
sancionadores ou punitivos. Mas não só. Em segundo lugar, a Constituição estende
as garantias processuais a qualquer “litigante”, ou seja, qualquer pessoa física ou
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MANUAL DE DIREITO ADMINISTRATIVO – VOLUME III • Thiago Marrara
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jurídica que, diante da Administração Pública, envolva-se em conf‌lito atual ou po-
tencial concernente a seus direitos ou interesses.
A partir do dispositivo constitucional, resta claro que o devido processo não é
exclusividade do Judiciário. A Constituição impõe a oferta de garantias tanto nos
processos jurisdicionais, civis ou penais, quanto nos processos administrativos
conduzidos no Executivo, no Legislativo e no Judiciário. Esse mandamento tem
implicações gigantescas! Independentemente de qualquer indicação legal, proce-
dimentos de escolha ou de seleção, como um concurso público ou uma licitação,
necessitam ser tratados como processos administrativos. A mesma lógica vale para
os procedimentos preparatórios de atos liberatórios, como licenças ambientais ou
autorização para concentrações econômicas. Em todos esses casos, existe disputa,
existe litigante e a decisão f‌inal interfere na esfera jurídica do interessado, impondo
que se trate o procedimento como verdadeiro processo administrativo, acompanhado
das fases e garantias inerentes.
Esses processos existem onde quer que haja função administrativa capaz de
afetar a esfera jurídica de alguém. Isso signif‌ica que processos administrativos são
desenvolvidos no âmbito do Poder Executivo, mas não só. O Judiciário e o Legisla-
tivo também desempenham funções administrativas e, quando houver litigante ou
acusado, deverão respeitar garantias processuais antes de proferir decisões adminis-
trativas. Tome-se o exemplo das sanções disciplinares. Essas decisões punitivas são
expedidas no âmbito dos três Poderes para apurar faltas funcionais de servidores.
Exatamente por isso, somente gozarão de validade quando resultarem de um pro-
cesso administrativo adequadamente conduzido.
Por sua função introdutória, esse manual não explora aspectos de direito es-
trangeiro ou questões históricas. Todavia, convém advertir que a distinção entre
processo e procedimento pode seguir critérios distintos do aqui indicado em outros
países. Na Itália e Alemanha, por exemplo, procedimento administrativo é termo que
indica as sequências de atos praticadas dentro da Administração Pública, enquanto
o processo administrativo aponta procedimentos em curso na Justiça Administra-
tiva, como órgão especializado do Judiciário. O critério utilizado nesses países é
institucional e material. Procedimento representa função administrativa; processo
aponta função jurisdicional. Essa lógica é inaplicável ao Brasil, já que aqui não há
contencioso administrativo, ou seja, não existe jurisdição dedicada exclusivamente
ao direito administrativo, nem, por conseguinte, processo judicial administrativo.
Os conf‌litos envolvendo a Administração Pública são geralmente solucionados no
âmbito da justiça comum por meio de processos civis e, em certos casos, por meio
de processos penais, trabalhistas, militares e eleitorais.
19.1.2 Processualização no Brasil
Impulsionada pela edição de leis gerais federal, estaduais e municipais a reger
processos administrativos dos mais diversos tipos, a processualização ref‌lete a elevada
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preocupação da sociedade e do legislador com os momentos de criação decisória
na Administração Pública. Na raiz desse fenômeno se encontra o reconhecimento
def‌initivo da imprescindibilidade e dos impactos das variadas decisões administrati-
vas, concretas ou abstratas, sobre a vida dos indivíduos, da sociedade e do mercado.
É nesse sentido que a processualização desponta como um movimento ref‌letor
da crescente importância da teoria e da prática das decisões públicas, que, ao passar
dos anos, ganharam proeminência em virtude de transformações na administração
pública, como a regulação, a agencif‌icação e a deslegalização. Enganam-se aqueles
que enxergam na preocupação atual com o processo administrativo uma perda de
protagonismo dos atos administrativos e normativos. O que ocorre é exatamente o
oposto! A processualização se fortalece na medida em que a sociedade e o mercado
passam a se preocupar mais intensamente com a forma, o conteúdo e o impacto das
decisões estatais.
A processualização emergiu também por força de duas aspirações que se forma-
ram na década de 1990 e ainda perduram. A primeira consiste no desejo do Poder
Constituinte – condensado nos subsequentes mandamentos da Constituição da
República de 1988, promulgada num cenário pós-ditatorial – de democratizar as
atividades estatais, concretizar o ideal republicano e, ao mesmo tempo, garantir os
princípios da moralidade1 e da impessoalidade, bem como os direitos fundamentais
de petição e de ampla defesa, entre outros.
A segunda aspiração remete à política de desestatização e de fortalecimento de
parcerias entre Estado e mercado, inclusive para delegação de serviços públicos, que
se forjou ainda em meados da década de 1980 e materializou-se em leis específ‌icas
nos anos de 1990 e de 1997. A atração de capitais e de investidores demanda uma
ordem jurídica clara, bem estruturada e, mais que isso, transparente, minimamen-
te previsível e respeitosa, em seu funcionamento, a posições jurídicas dos agentes
econômicos. Não há país atrativo a investimentos sem processos decisórios estatais
regrados e racionais, sem um grau mínimo de segurança e de estabilidade.
Ao mesmo tempo em que viabiliza anseios pós-ditatoriais por democratização,
transparência e promoção de direitos fundamentais, a processualização se consagra
por ser útil a melhorar o ambiente institucional em prol da segurança jurídica. Isso,
dentre outras coisas, favorece o recebimento de capitais e de investimento, os em-
parceiramentos e o empreendedorismo – movimentos relevantes para um Estado
1. A relação entre moralidade e processualidade é bem esclarecida por Odete Medauar no seguinte trecho: “(...)
a atuação processualizada reduz as oportunidades de práticas imorais no exercício de poderes públicos:
atividades parametradas, presença de sujeitos com direitos e ônus, obrigação de motivar etc. dif‌icultam os
desvirtuamentos próprios da imoralidade administrativa. Há um sentido moralizador na conf‌litualidade
prevista e explícita, que substitui aquelas casuais e ocultas que nascem de presunções subjetivas e corpora-
tivas e de atividades facultativas de sujeitos mais espertos ou hábeis. Havendo, no entanto, práticas imorais
em momentos do processo, torna-se mais fácil evidenciá-las”. MEDAUAR, Odete. A processualidade no
Direito Administrativo, 3. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2021, p. 107.
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