Controle de Convencionalidade e Seguridade Social: Uma Análise da Aplicação da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência nas Decisões do TRF4 Relativas Ao Benefício de Prestação Continuada (BPC)

AutorSidnei Machado e Isabela Costa Rodrigues
Páginas97-107

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sidnei Machado1

Isabela Costa Rodrigues2

1. Introdução

As pessoas com deficiência têm enorme dimensão social e económica e representam um dos grandes desafios de inclusão social e acesso à direitos. Segundo dados do censo de 2010, no Brasil existem quarenta e cinco milhões de pessoas com algum tipo de deficiência, o que equivale a aproximadamente 23,9%3 da população brasileira. Também em relação ao cenário mundial 10% da população apresenta algum tipo de deficiência, segundo dados da ONU.4

No âmbito internacional, a Convenção Internacional sobre os direitos das pessoas com deficiência, ou convenção de Nova Iorque, é documento inovador e mais protetivo, uma vez que busca introduzir um novo conceito de deficiência, que deixa de ser puramente médico para ser social.

O Brasil ratificou a referida Convenção em 2009. Do ponto de vista normativo de sua aplicabilidade, a norma passou a integrar o ordenamento jurídico. A sua aplicação, contudo, se dá via o controle de convencionalidade, instituto em desenvolvimento, consiste em "método judicial de declaração de invalidade das leis incompatíveis com tratados internacionais, tanto por via de exceção (controle difuso ou concreto), quanto por via de ação direta (controle concentrado ou abstrato) e, assim, adaptar ou conformar atos ou leis internas aos compromissos internacionais assumidos pelo Estado" (MAZUOLLI, 2013, p. 36), como será explanado ao longo do trabalho.

Analisa-se neste ensaio o mecanismo de solução de antinomias entre norma interna e norma internacional, a partir da jurisprudência do Tribunal Regional Federal da 4â Região em casos julgados que envolvam a concessão do benefício de prestação continuada à pessoa com deficiência. O objetivo foi verificar se a corte observa em suas decisões os novos conceitos estabelecidos pela Convenção Internacional sobre os direitos das pessoas com deficiência, uma vez que ela pretende superar certos conceitos na legislação brasileira sobre o tema até então vigentes.

Para a análise do caso, foram selecionadas 716 decisões do TRF4, todas provenientes da quinta e sexta turma da corte, que abrangem o período de 2010 a 2017. Para análise do conteúdo das decisões, foi utilizado o método de estudo de casos, com foco na identificação do posicionamento ideológico das decisões. Já em relação ao fundamento jurídico das decisões,

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tal quesito fora analisado por meio da teoria da argumentação jurídica de Neil Maccormick, por meio dos critérios de con-sequencialismo, universalidade, coerência e consistência das decisões.

2. Aspectos do controle de convencionalidade

O controle de convencionalidade, fruto da internacionalização dos direitos humanos, pode ser entendido como mecanismo para se realizar a compatibilidade vertical do direito doméstico com os tratados de direitos humanos em vigor no país. Dessa forma, se uma norma infraconstitucional for contrária a outra norma oriunda de um tratado internacional de direitos humanos, deixará de ser válida, embora continue vigente (MAZZUOLI, 2011).

Embora tenha nascido em âmbito europeu, foi no contexto americano que o mecanismo se desenvolveu, mais precisamente no Sistema Interamericano de Direitos Humanos, cuja Corte Interamericana já se posicionou diversas vezes sobre o tema e também já consolidou diversos entendimentos.5

Vale ressaltar que o mecanismo não se restringe ao controle das leis simplesmente, mas dos atos administrativos e resoluções judiciais também, ou seja, independe do caráter na norma, de acordo com Hitters (2009, p. 120).

Quanto à terminologia apropriada, embora possam existir dúvidas quanto à utilização do termo "controle de convencio-nalidade", autores como Mazzuoli (2011), Alves e Leal (2017) defendem o uso dessa expressão específica, pois por mais que no ordenamento brasileiro os tratados tenham status de normas constitucionais (material e formalmente apenas no caso da Convenção Sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência), a expressão controle de constitucionalidade não seria a mais adequada ao caso, visto que os tratados não fazem parte do texto da Constituição em sentido estrito.

Quanto aos modos de exercício do controle de convencio-nalidade, ele pode ocorrer das seguintes formas: externa (pelas cortes internacionais, que interpretam os tratados) e interna.

O controle externo realizado pelas cortes internacionais se dá por meio da análise de casos concretos submetidos à sua apreciação (ALVES; NETO, 2016).

Ao proferir sua decisão no caso Almonacid Arellano et al. vs. Chile de 2006, a corte firmou entendimento de que o controle de convencionalidade por ela realizado tem caráter subsidiário ao controle realizado pelos juízes nacionais, sendo necessários o esgotamento das vias internas antes de chegar à corte interamericana.

Já o controle interno, impõe ao Estado (magistrados e outras autoridades públicas) o dever de verificar a adequação de suas normas à CADH ou outros tratados de direitos humanos, bem como estar atento à interpretação que a Corte confere a esses diplomas. Logo, os juízes nacionais podem ser considerados "guardiões da convencionalidade das leis" (FERRER MAC-GRE-GOR, 2011, p. 28).

Ainda na perspectiva interna, pode se dar de maneira preventiva (atividades do legislativo e executivo) e também repressiva, como já mencionado, na qual predomina a figura do poder judiciário. Nessa última modalidade, o controle pode se dar por via concentrada (perante o STF, quando da apreciação das ações diretas de inconstitucionalidade ou das ações declaratórias de constitucionalidade) ou por via difusa, pelos demais tribunais (ALVES; LEAL, 2017, p. 114)

Mazzuoli (2013, p. 38), ao comparar os níveis hierárquicos dos tratados, afirma que aqueles que detentores de nível constitucional serão paradigma de controle difuso de conven-cionalidade, apenas. Já aqueles que possuem equivalência de emenda constitucional, serão paradigma tanto de controle difuso quanto de controle concentrado de convencionalidade. Já os tratados comuns, apenas serão alvo de controle de supralegalidade.

Outro ponto relevante e não pacificado sobre o tema é a respeito de quais tratados que são paradigma do controle de convencionalidade.

Alguns autores, como Valério Mazzuoli (2011), defendem que todos os tratados de direitos humanos são passíveis de controle de convencionalidade (e os demais tratados comuns sujeitos ao controle de supralegalidade). Por outro lado, Chehab e Lopes (2016, p. 88) entendem que somente seria possível falar em controle de convencionalidade se for relativo à Convenção Americana de Direitos Humanos, visto o Brasil reconhece competência contenciosa apenas à Corte Interamericana.

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Todavia, esse segundo posicionamento não deve prosperar, visto que a própria corte reconheceu a possibilidade de controle aos tratados distintos da CADH, como aponta Hernán Alejandro Olano García (2016, p. 74). No mesmo sentido leciona Juan Carlos Hitters (2009, p. 120): En esto aspecto cabe repetir, que cuando hablamos de estas últimas no nos referimos sólo al Pacto de San José, sino a otros Tratados Internacionales ratificados por Argentina, al ius cogens y la jurisprudencia de la Corte IDH.

Ferrer MacGregor (2011, p. 29), também no mesmo sentido, defende a existência de um "bloco de convencionalidade", ou seja, deve-se estender o corpus iuris interamericano para incluir também os protocolos adicionais dos tratados, a interpretação dada pela Corte interamericana demais instrumentos internacionais.

Assim, nada impede que outros tratados que não a CADH sejam alvo do controle de convencionalidade, tais como as convenções da OIT, cujo controle de convencionalidade vem sendo analisado de forma expressiva pelo Tribunal Superior do Trabalho, bem como a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, principal objeto de estudo deste ensaio.

Por fim, como leciona Bazán (2012, p. 11) o sucesso na implementação do controle de convencionalidade depende de alguns fatores essenciais, como o "grau de receptividade dessas teses no direito interno, no trabalho dos operadores do direito e na vontade política dos Estados".

3. A Convenção Internacional sobre o direito das pessoas com deficiência

Ao longo da história, as pessoas com deficiência sofreram inúmeras privações e restrições a direitos, inclusive o direito à própria vida. Ao todo, pode-se afirmar que existiram cinco fases históricas paradigmáticas na luta por seus direitos, são elas a fase de eliminação, assistencialismo, integração, inclusão e emancipação (FONSECA, 2013; FEIJÓ e PINHEIRO, s.d).

Nesse contexto de emancipação, em 2008 as pessoas com deficiência conquistaram um novo instrumento de proteção aos seus direitos, mais inovador e eficaz. Trata-se da Convenção Sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, idealizada pela Organização das Nações Unidas, adotada pela assembleia geral em 13 de dezembro de 2006, aberta para assinatura dos estados em 2007, cuja vigência se iniciou em.5.de 2008. Segundo Amita Dhanda (2008) foi um diploma que teve rápido processo tramitação e implementação. Além disso, contou com a participação direta dos afetados.

Os trabalhos de elaboração do texto ocorrem por meio de um Comitê ad hoc, composto por 192 países, incluindo o Brasil, cuja participação se deu por meio da Coordenadoria de Direitos da Pessoa com Deficiência.

O Brasil adotou a Convenção em 9 de julho de 2008, por meio do Decreto Legislativo n. 186, sendo incorporado ao ordenamento jurídico pátrio por meio do procedimento previsto no § 3 do art. 5 da Constituição, ou seja, equivalente ao...

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