Os Diálogos entre o Direito Interno e o Direito Internacional: Impactos na Concepção da Deficiência e seus Reflexos Assistenciais

AutorMelina Girardi Fachin
Páginas87-96

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Melina Girardi Fachin 1

1. Introito

A concepção contemporânea da proteção dos direitos humanos inaugurou uma nova esfera da responsabilidade quanto à sua implementação: estes deixaram de ser tema exclusivo da soberania estatal-constitucional. Isto impactou o modo de pensar e conceber não só os direitos, mas também o direito como um todo: este novo cenário demanda um alargamento da visão tradicional, segundo a qual apenas os estados guardam responsabilidades por direitos e somente para com seus cidadãos.

Destaca-se a importância da interface e dos diálogos dos diferentes planos protetivos para a realização dos direitos humanos — o que demanda a relação entre os ordenamentos internos e destes com o direito internacional dos direitos humanos. Emerge, dessa forma, uma nova espacialidade pública — lastreada na coexistência tensa e produtiva dessas diversas ordens paralelas e interlocutoras — que devem dialogar em torno da força expansiva da dignidade humana2.

O intento desse conflito produtivo é expandir e engrandecer a proteção dos direitos humanos, a partir de uma lógica plural, complexa, impura e miscigenada3. Nos diálogos, cada sistema corrobora com sua concepção de proteção a fim de proporcionar a coexistência complementar que interage sempre em benefício dos sujeitos protegidos e de seus direitos. A partir desse somatório nascem com os diálogos um novo espaço do direito constitucional transacional multinível.

O tema dos diálogos é atraente, porque, dentre outras razões "apela a uma resolução civilizada e respeitosa de conflitos, em momentos marcados por antagonismos políticos"4 e afasta modelos impositivos e verticais, sendo, ao menos em abstrato, mais próximo de uma concepção deliberativa de democracia5.

Tendo este aspecto idealmente benéfico dos diálogos resta conformar uma base teórica que dê conta da verificação prática — ou não — do que se propõe. É o que a presente reflexão pretende a partir do cotejo entre a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo (Convenção de Nova Iorque) e a lei brasileira que versa sobre assistência social. Para tanto, a partir de uma análise teórica inicial sobre o marco dos diálogos em direitos humanos, pas-sar-se-á a análise das alterações que a ratificação pelo Estado brasileiro da Convenção de Nova Iorque provocou na LOAS (Lei Orgânica da Assistência Social) para, ao final, avaliar se,

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neste caso, estaríamos diante de diálogo institucional em prol da maximização de direitos.

2. Dialogando sobre os diálogos

O original panorama que se forma da catarse do direito constitucional com o direito internacional dos direitos humanos demanda um alargamento da visão publicista tradicional: Ainda que ao Estado caiba a responsabilidade primária, destaca-se a importância da dos diálogos dos diferentes planos protetivos para a plena realização dos direitos humanos.6

Aproximam-se, assim, as noções de direitos humanos e direitos fundamentais7; achegam-se, assim, o direito constitucional e o direito internacional. Ambos se ressignificam dentro de um discurso transnacional que se forma em torno da mitigação do sofrimento humano8.

Não há assim mais — se é que um dia houve — um único locus constitucional, mas uma "mútua consideração, reconhecimento e cooperação para o fim de se atender objetivos constitucionais comuns"9. Este novo espaço é uma "rede complexa e diversamente integrada por instituções e sistemas jurídicos, articulada em distintos níveis normativos"10.

Esta nova espacilidade pública articula-se em torno do princípio pro persona, "pautada pela força expansiva do princípio da dignidade humana e dos direitos humanos, conferindo prevalencia ao human centered approach"11, ou seja colocando o humano — concreto, e localizado — no centro do palco.

A convivência entre as diversas ordens que convivem nesta espacilidade pública renovada nem sempre é concorde; coexistência não se traduz em consenso e concordância. O conflito produzido nessa aproximação tem resultado criativo e dessa catarse emerge uma pluralidade interna e internacional. Na relação entre essas camadas, ressignificam-se as estruturas internas e internacionais de proteção12.

Nessa nova espacialidade não há mais que se definir hierarquias — ao revés, é imprescindível a superação do discurso de prevalência de uma ordem sobre a outra. Forma-se, assim, uma rede, de vários planos, localizados em diversos níveis, que se alimentam e limitam reciprocamente.13

A partir desse somatório de forças paralelas e autónomas de proteção, nasce o diálogo entre tais searas, formando um ambiente multinível, marcado, a um só tempo, como alerta a doutrina14, pela constitucionalização, internacionalização e humanização15, em torno de uma constituição viva, tática e dinâmica centrada nos direitos humanos e na prevenção do sofrimento humano.

Duas são as principais caraterísticas deste movimento dialógico:

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  1. Este diálogo é, de um lado, marcado pelas trocas e integração argumentativa livre entre os agentes aplicadores e intérpretes do direito.

O diálogo entre ordenamentos jurídicos que compartilhem uma realidade material semelhante é produtivo e pode, ao mesmo tempo, (i) aprender com a prática estrangeira; (ii) aprimorá-la e complementá-la em prol do fortalecimento dos direitos na região. De realidades conexas decorrem problemas semelhantes e respostas correlatas.

O que se propugna é a passagem deste modelo meramente decorativo da utilização do direito comparado16 para um modelo de efetiva interlocução, o que significa uma abertura para o diálogo, a reflexão e o possível aproveitamento das experiências exteriores, sempre levando em considerando as particularidades de cada caso.17 Rompe-se, na lição de Marcelo Neves18, com o constitucionalismo provinciano09 ou mesmo uma espécie de colonialismo dialógico jurisdicional.

Por outro lado, integra-se nesse cenário o ambiente internacional de proteção de direitos humanos.

Impende esclarecer que o direito internacional dos direitos humanos não compõe instância recursal ou de reforma dos judiciários internos, mas sim da premissa que o direito interno e o direito internacional confluem na proteção do ser humano. Uma vez aderido, por autonomia da vontade estatal, o paradigma internacional de proteção, é necessário que os agentes nacionais considerem a jurisprudência internacional. Impende esclarecer que este paradigma não é estático e informado por um instrumento vivo20.

Abre-se aqui especial diálogo com as instâncias regionais e global no que toca ao cenário internacional da proteção dos direitos humanos. A partir do pontapé inicial da Declaração Universal dos Direitos Humanos (adotada pela unanimidade da Assembleia Geral da ONU em 1948), somam-se centenas de tratados sobre a matéria dos direitos humanos, não apenas no âmbito global das Nações Unidas, mas também na esfera das jurisdições regionais. Surgem, paralelamente, em adição, sistemas regionais de proteção que buscam internacionalizar os direitos humanos nos planos regionais, particularmente nos continentes Europeu, Americano e Africano.

O sistema ONU (no qual está inserida a convenção de Nova Iorque) e os regionais não são concorrentes, ao contrário, somam-se no intuito de uma rede de proteção mais completa. Os aparatos protetivos dialogam entre si, e com o direito local, firmando laços de cooperação para a promoção e proteção dos direitos humanos. É justamente neste sentido que os esforços acerca da proteção da pessoa com deficiência se inserem.

3. Ângulo externo: a convenção sobre os direitos das pessoas com deficiência (Convenção de Nova Iorque)

A Convenção de Nova Iorque está inserida dentro do que se convencionou tratar por sistema internacional global de direitos humanos. É a Organização das Nações Unidas a grande protagonista deste palco. A Carta das Nações Unidas, assinada em 1945 na cidade de São Francisco, é marco inicial e estabelece, dentre os propósitos da instituição a promoção dos direitos humanos.

Para viabilização de tais objetivos, sem embargo dos diversos órgãos que estruturam as Nações Unidas cujo relato aqui não se faz necessário, localizam-se os denominados mecanismos convencionais — que exsurgem de uma convenção específica adotada — de proteção aos direitos humanos. São fruto, em geral, do processo de localização da proteção dos direitos humanos — de seus sujeitos (como é o caso das pessoas com

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deficiência) ou temáticas (como, por exemplo, a Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes (1984) e seu protocolo facultativo).

A partir da cláusula geral de proteção, inaugurada na Declaração Universal, corre paralelamente o processo de especificação dos titulares de direitos. Como sintetiza Bobbio, essa tendência de "especificação" dos direitos humanos ilustra a passagem "do homem genérico — do homem enquanto homem — para o homem específico, ou tomado na diversidade de seus diversos status sociais, com base em diferentes critérios de diferenciação (o sexo, a idade, as condições físicas), cada um dos quais revela diferenças específicas, que não permitem igual tratamento e igual proteção".21 Justifica-se esta especialização do direito internacional dos direitos humanos justamente para reforçar e garantir a proteção àqueles que mais tem seus direitos violados.22

É nesse contexto que desponta a Convenção da ONU sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, objeto do presente capítulo. Tal conjunto de normas é exemplificativo desse processo direcionado à uma parcela expressiva da população mundial relegada, por muito, à invisibilidade e negação23.

Obviamente que o tratado é fruto de um longo caminhar na proteção dos direitos...

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