O Direito dos Imigrantes ao Benefício de Prestação Continuada: Uma Questão de Cidadania

AutorTatiana Chang Waldman - Camila Bibiana Freitas Baraldi - Táli Pires de Almeida
Páginas108-117

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Tatiana Chang Waldman1

Camila Bibiana Freitas2

Baraldo Táli Pires de Almeida3

1. Introdução

A marca dos 20 anos da Lei Orgânica da Assistência Social é um momento interessante para abordarmos temas atuais e crescentes na sociedade brasileira — como são as migrações internacionais — e sua relação com este importante documento de garantia de direitos. Dentro do campo dos benefícios assistenciais, um tema que vem se destacando nos debates contemporâneos é a concessão do Benefício de Prestação Continuada da Assistência Social (BPC) a essa população específica residente no país. As constantes violações deste direito social ilustradas pelos indeferimentos de pedidos de concessão do benefício da assistência social motivados pela nacionalidade do solicitante, não obstante o cumprimento dos requisitos legais, serão a preocupação central desse artigo.

A presença de imigrantes no Brasil é historicamente parte constituinte do crescimento económico brasileiro e de nossa vida social. Nas páginas dos jornais de hoje ganham destaque as notícias sobre imigrantes latino-americanos em condições de trabalho consideradas análogas a escravidão, e sobre as muitas empresas que anunciam a necessidade de flexibilizar nossa legislação a fim de facilitar a entrada de uma mão de obra qualificada advinda sobretudo do continente europeu. Desde a chegada dos portugueses em nosso território, passando pela vinda forçada dos negros africanos e das políticas de incentivo a migração europeia e japonesa nos séculos XIX e XX, nossa história segue marcada pela presença de milhares de imigrantes que forjaram nossa identidade social, nossa história e nossa trajetória económica.

A maioria dos estudos que tratam do tema das migrações internacionais observam os fatores histórico-estruturais relacionados ao fenómeno. Em geral, os países que recebem imigrantes atravessam um período de expansão e crescimento económico, acompanhado de uma necessidade de mão de obra, seja ela qualificada ou não. Enquanto que os países de origem dos imigrantes passam por situações de crise económica e desemprego. No entanto, esse cenário é mais complexo e diversificado, e mesmo sendo um tema que cada vez mais ganha atenção da sociedade e dos governos as migrações internacionais contemporâneas mobilizam apenas 3% da humanidade, uma taxa que se mantém estável nos últimos 50 anos (CSA, 2008; PNUD, 2009). De acordo com o Relatório de Desenvolvimento Humano (PNUD, 2009), existem 200 milhões de migrantes internacionais no mundo, a maioria mudou-se entre países com níveis de desenvolvimento semelhantes.

Ao observarmos os dados recentes a respeito do número de estrangeiros no Brasil, assim como ao analisarmos suas trajetó-rias, perceberemos um cenário mais complexo e diversificado do que no passado: são perfis originários dos cinco continentes e condições de migração também muito diversas. Existem pessoas que buscam refúgio no Brasil devido a perseguições políticas e religiosas, e há aquelas que chegam em busca de melhores condições de vida e trabalho.

Ainda que os imigrantes sofram com estigmatizações associadas à pobreza e vulnerabilidade e sejam discriminados na vida pública, de imediato a sua principal preocupação refere-se às dificuldades para garantir a regularização migratória, o que muitas vezes afeta concretamente sua situação económica. A

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associação de migração com pobreza nem sempre é pertinente, pois partir em busca de novas possibilidades de vida requer investimentos financeiros, envolvimento e contato com as redes migratórias que passam por relações de parentesco, experiência profissional e acadêmica (GRIMSON, 2011). Os grupos mais pobres e vulneráveis nem sempre possuem tal dinamismo.

A assimetria económica e social entre os países é um dos fa-tores necessários a serem levados em consideração ao se analisar o fenómeno das migrações internacionais. Porém, os estudos recentes (GRIMSON, 2011; PORTES, 2011; TRUZZI, 2008) apontam que cada vez mais os indivíduos migram dentro de redes. Ou seja, ainda que as escolhas individuais e os aspectos económicos sejam importantes, a migração internacional é um processo social que envolve múltiplas relações.

Ao analisarmos um fluxo migratório entre países é possível encontrar agências de emprego que cumprem o papel de recrutar trabalhadores dispostos a ocupar os postos de trabalho vagos nos países receptores ou mesmo acordos bilaterais ou regionais entre países que pretendem promover a circulação de trabalhadores e de pessoas em geral. O Brasil, de país emissor de trabalhadores migrantes durante as décadas de 1980 e 1990, inverteu essa posição e hoje é considerado um país receptor de imigrantes. Atualmente vive um período de expansão económica capaz de gerar uma grande demanda por trabalhadores com alto grau de qualificação e conhecimento específico em áreas como engenharia (civil, naval, transportes) e extração e refinamento de petróleo, por exemplo. Da mesma maneira, tem oferecido postos de trabalho que a população brasileira tem cada vez mais evitado se inserir, como é o caso do setor da costura na indústria da confecção (majoritariamente ocupado por imigrantes bolivianos, paraguaios e peruanos) e as profissões ligadas ao setor de serviços tais quais emprego doméstico, lazer e turismo (camareiros e garçons).

É importante descrever este cenário, pois se é certo que as migrações são um processo social complexo que envolve diversas relações sociais e decisões, também está clara a sua relação central com o trabalho — indivíduos que pretendem vender sua força de trabalho em áreas dispostas a recebê-la — e o papel económico e social que esses atores, os migrantes, desempenham.

A situação dos latino-americanos, além de tudo isso, insere-se em um contexto de integração regional na América do Sul por meio dos processos do Mercado Comum do Sul (Mercosul) e da União Sul-americana das Nações (Unasul). Calcula-se que a metade dos migrantes internacionais deslo-ca-se dentro da mesma região de origem e ao redor de 40% mudam-se para países vizinhos (PNUD, 2009). A migração internacional de trabalhadores latino-americanos com direção às áreas metropolitanas do Brasil como São Paulo e Rio de Janeiro é de fato um fenómeno em expansão (BAENINGER, 2012). No entanto, a condição de irregularidade migratória de muitas pessoas — apesar da possibilidade de regularização aberta pelo Mercosul — dificulta a tarefa de mensuração do número de imigrantes devido a ausência de documentação e registro desse fluxo.

Mesmo relativamente aos imigrantes registrados, há dificuldade para se encontrar dados sobre o número e sobre o perfil dos imigrantes no Brasil. As principais fontes de informação sobre o número de estrangeiros residentes no Brasil são a Polícia Federal e o Departamento de Estrangeiros/SNJ, órgão ligado ao Ministério da Justiça. Os números mais recentes de que se tem notícia publicados a respeito da presença imigrante no Brasil, o foram em jornais de grande circulação — os quais obtiverem a informação diretamente das autoridades governamentais — ou em notícias da própria página eletrónica do Ministério da Justiça. De acordo com estes dados, o número de estrangeiros residentes regularmente no Brasil é de cerca de 1 milhão e 500 mil, o que representa menos de 1% da população brasileira.

A migração de latino-americanos, no entanto, já é de certa forma consolidada (SILVA, 1995; FREITAS, 2010), o fluxo de bolivianos com destino à cidade de São Paulo remonta à década de 1950. A novidade presente na chegada de bolivianos, paraguaios e peruanos ao Brasil é o seu número expressivo e o nicho do mercado de trabalho aberto a eles: a indústria da confecção e no emprego doméstico.

As transformações ocorridas na indústria da confecção no Brasil desde o final dos anos 1980 são fruto de um intenso processo de reestruturação produtiva. A tentativa de enxugar os custos relacionados ao pagamento da mão de obra no setor da costura levou à opção pela terceirização da produção e pela flexibilização das relações de trabalho. A costura é uma etapa de trabalho que vem sendo realizada em inúmeras oficinas em condições de trabalho e de segurança precárias.

A entrada dos imigrantes latino-americanos na indústria da confecção é permeada pela busca de trabalho e desejo de ascensão social. A cooperação, por sua vez, é fundamental para o estabelecimento do imigrante no país de destino, uma vez que as redes de solidariedade são as alternativas capazes de oferecer a acolhida necessária e um trabalho imediato. São muitos os casos daqueles que começaram como costureiros, juntaram dinheiro e compraram sua primeira máquina de costura para, em seguida, ter sua oficina e seus próprios empregados. Essa perspectiva de ascensão faz com que os imigrantes suportem mais de dez horas de trabalho diário (SILVA, 1995; ALMEIDA, 2013).

Pesquisas etnográficas (SILVA, 1995, 2008; ALMEIDA, 2013) revelam que, no país de destino, apesar das dificuldades burocráticas relatadas, o imigrante busca sua regularização migratória e o cumprimento da legislação local. Assim como, trabalha para garantir ganhos económicos suficientes para realizar o pagamento de seus impostos e mantém a esperança de um futuro próspero.

Os atores estatais envolvidos no processo de migração internacional são distintos: países de origem, trânsito e destino. A responsabilidade é, assim, compartilhada e são múltiplas as dimensões em termos de políticas a serem trabalhadas: acesso ao mercado de trabalho, educação, saúde, seguridade social e direitos humanos. Tendo em vista a centralidade do trabalho para as migrações, as políticas de acesso ao trabalho, emprego e renda são vitais no delineamento das políticas migratórias que

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pretendem garantir condições dignas de vida...

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