Controvérsias acerca da multiparentalidade no direito das sucessões

AutorGuilherme Calmon Nogueira da Gama, Heloisa Alves de Paiva Josephson
Páginas107-168
107
Capítulo 3
CONTROVÉRSIAS ACERCA DA
MULTIPARENTALIDADE NO DIREITO DAS
SUCESSÕES
Considerando tudo já ressaltado ao longo deste
trabalho, repara-se que a admissão da multiparentalidade
pelo Supremo Tribunal Federal no RE 898.060/SC252,
com repercussão geral, foi consectário do atendimento aos
princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana,
do pluralismo das entidades familiares, do melhor interesse
da criança e do adolescente e da afetividade.
Esse mesmo julgamento gerou, ainda, a edição da
Tese nº 622, a qual definiu que a paternidade socioafetiva
não impede o reconhecimento do vínculo de filiação
concomitante baseado na origem biológica, com efeitos
jurídicos próprios.253
Ratificando tal entendimento, indica o Tribunal de
Justiça do Estado do Rio de Janeiro que inexiste supremacia
entre o critério biológico e o critério da socioafetividade.
Desse modo, a multiparentalidade resta configurada se o
instituto assegurar o melhor interesse da criança e do
adolescente, o que, em caso de pedido de reconhecimento
252 BRASIL, op. cit., nota 6.
253 Ibidem.
108
judicial, pode ser verificado a partir da realização de
estudos interdisiciplinares e multiprofissionais nos autos.254
É possível visualizar a existência de consequências
sucessórias advindas do reconhecimento de uma relação
multiparental. Em função disso, é interessante perguntar se
seria cabível o reconhecimento da multiparentalidade post
mortem.
Enfatize-se, desde já, que o reconhecimento post
mortem da parentalidade socioafetiva depende da
configuração, em vida, da socioafetividade em decorrência
da posse de estado de filho255, enquanto que, a princípio, a
decisão que declara a paternidade biológica somente
precisaria de um exame de DNA positivo.
No entanto, cabe indagar se, de fato, seria
defensável que a multiparentalidade surja do
reconhecimento post mortem ou se haveria um mero
interesse patrimonial envolvido em tal demanda. Caso a
resposta fosse positiva, seriam questionáveis as
repercussões de tal ato no âmbito do Direito das Sucessões
e quais seriam os legitimados ativos e passivos para figurar
nos polos dessa demanda.
254 BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Apelação
0029507-82.2013.8.19.0054. Relator: Desembargador Carlos
Eduardo da Rosa da Fonseca Passos. Disponível em:
jus.br/EJURIS/ImpressaoConsJuris.aspx?CodDoc=4282075&PageSeq
=0>. Acesso em: 14 jun. 2021.
255 TEIXEIRA, Márcio Guilherme Alves. Filiaçã o socioafetiva no post
mortem: do reconhecimento ao direito à h erança. 2019. Trabalho
Monográfico (Graduação em Direito). Universidade Federal da
Paraíba, João Pessoa, 2019. Disponível em:
/jspui/handle/123456789/16542?locale=pt_BR>. Acesso em: 13 jun.
2021.
109
No que tange à partilha propriamente dita, de
antemão destaca-se que vigora no ordenamento jurídico
pátrio o princípio da igualdade entre os filhos, nos termos
do artigo 227, § 6º, da CRFB/88256. Apesar disso, é preciso
solucionar as problemáticas supracitadas e outras questões
que ainda não se encontram totalmente definidas pelos
tribunais e pela doutrina, relacionadas aos herdeiros
legítimos e testamentários. Além disso, outra questão que
gera debates e não está consolidada é a forma de partilha
em caso de sucessão do de cujus em favor dos seus
ascendentes, o que também deve ser analisado neste
capítulo.
3.1. Cabimento do reconhecimento post mortem da
multiparentalidade e consequências na herança
Preliminarmente, vale realçar que não há vedação ao
reconhecimento de paternidade ou maternidade
socioafetiva por meio de testamento público ou particular
além de outras espécies testamentárias , conforme já
assentou a Corregedoria Nacional de Justiça no artigo 11, §
8º, do Provimento nº 63/2017257. Não obstante, aqui não se
busca tratar dessa possibilidade, mas sim do caso em que
determinado sujeito acaba falecendo sem reconhecer
outrem como seu filho.
O acolhimento da multiparentalidade rompeu com o
modelo binário em matéria de parentalidade, permitindo
que fosse admitida a existência de múltiplos pais e mães,
256 BRASIL, op. cit., nota 7.
257 BRASIL, op. cit., nota 113.
110
com base no princípio da dignidade da pessoa humana e na
tutela da felicidade dos indivíduos258. Nesse aspecto, não há
mais espaço para uma percepção monolítica da filiação, de
modo que uma relação na qual existam elos diversos de
parentalidade deve gerar todos os efeitos jurídicos
cabíveis259, como direito a alimentos, herança e benefícios
previdenciários.
A princípio, não haveria qualquer obstáculo ao
recebimento de heranças de diversos ascendentes, motivo
pelo qual o filho será herdeiro legítimo necessário e terá
direito à legítima independentemente da origem do vínculo.
Por esse ângulo, titularizar direitos sucessórios em relação
aos pais biológicos e aos socioafetivos apenas assegura o
princípio da igualdade entre os filhos.260
Isso já foi reconhecido no Enunciado nº 33 do
IBDFAM, in verbis:
O reconhecimento da filiação
socioafetiva ou da multiparentalidade
gera efeitos jurídicos sucessórios,
sendo certo que o filho faz jus às
heranças, assim como os genitores, de
forma recíproca, bem como dos
respectivos ascendentes e parentes,
tanto por direito próprio como por
representação.261
258 LÔBO, op. cit. 2020, p. 244-245.
259 TEPEDINO; TEIXEIRA, op. cit., p. 232.
260 SCHREIBER; LUTOSA, op. cit., p. 859.
261 INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO DE FAMÍLIA, op. cit.,
nota 57.
111
Igualmente, o Superior Tribunal de Justiça também
determinou que as responsabilidades de ordem moral e
patrimonial seriam inerentes à paternidade, razão pela qual
a multiparentalidade deve garantir direitos hereditários após
a comprovação da filiação entre os membros da relação.262
Destarte, criar empecilhos aos direitos sucessórios
resultantes de uma relação multiparental seria um meio de
preservar uma instituição familiar dentro de padrões
convencionais, ofendendo ao princípio da igualdade entre
os filhos263, previsto nos artigos 227, § 6º, da CRFB/88264 e
1.596 do CC/02265
Em razão do exposto, a doutrina costuma acatar o
reconhecimento post mortem da paternidade socioafetiva
caso fique demonstrada a presença da afetividade em
decorrência da posse de estado de filho266. No entanto, é
necessário perguntar se essa mesma percepção pode ser
utilizada para as situações envolvendo multiparentalidade e
o reconhecimento post mortem de vínculos biológico e
socioafetivo concomitantes.
Maria Berenice Dias sustenta que a existência de pai
registral não impede a declaração de paternidade
socioafetiva e a caracterização da multiparentalidade, sendo
262 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial
1.618.230/RS. Relator: Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva.
Disponível em:
recurso-especial-resp-16 182 30-rs-2016-0204124-4>. Acesso em: 15
jun. 2021.
263 ARAUJO, op. cit.
264 BRASIL, op. cit., nota 7.
265 BRASIL, op. cit., nota 28.
266 SCHREIBER; LUTOSA, op. cit., p. 860 e CASSETARI, op. cit., p.
75.
112
suficiente a prova da posse de estado de filho para o
reconhecimento do vínculo de filiação post mortem.267
Ressalte-se que o direito à herança é um direito
fundamental, nos termos do artigo 5º, inciso XXX, da
CRFB/88268, de modo que um indivíduo pode acabar
recebendo heranças distintas de seus três genitores, se for
identificada uma relação pluriparental. Conforme
mencionado no subitem 1.4, deve-se, porém, coibir pleitos
com intuitos meramente patrimoniais, que subvertam o
objetivo da multiparentalidade.
Desse modo, é fundamental averiguar com cautela o
caso concreto apresentado, especialmente se o autor nunca
conviveu com seu pai biológico e já teria recebido herança
de seu pai registral. Defende Christiano Cassettari que se
aplica a tese da socioafetividade às avessas, isto é, a
ausência de afetividade na relação pode gerar a perda do
direito à herança do pai biológico.269
É importante clarificar que aqui não se trata de um
reconhecimento da filiação sem os seus efeitos sucessórios,
mas sim da impossibilidade de caracterização do vínculo
multiparental com a garantia, tão somente, do direito à
identidade genética, consoante já explanado anteriormente.
Isso se coaduna com o entendimento jurisprudencial
que compreende que o exame de DNA positivo não seria
apto, por si só, a ocasionar o vínculo, sendo basilar a
observância dos princípios do melhor interesse da criança e
267 DIAS, Maria Berenice. Manual das Sucessões. 7ª ed. rev., ampl. e
atual. Salvador: JusPodivm, 2021, p. 871.
268 BRASIL, op. cit., nota 7.
269 CASSETTARI, op. cit., p. 137.
113
do adolescente e da afetividade.270 No que concerne à
caracterização da multiparentalidade post mortem, afirma
Christiano Cassettari:
O temor de demandas exclusivamente
de cunho patrimonial existe, mas
caberá ao Judiciário coibir esse abuso
de direito, como já faz com outros
problemas; porém, não conseguimos
conceber um filho sem herança, que é
um direito fundamental (art. 5º, XXX,
da CF), por acreditarmos que a
multiparentalidade deve ser formada
em vida, pois assim se permite que as
pessoas possam conviver e criar laços
de afeto, e não post mortem. Aliás,
temos sérias dificuldades em aceitar
uma formação de multiparentalidade
post mortem, pois nesse caso fica
evidente o desejo de obtenção de
vantagem financeira.271
Outrossim, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais
possui precedente apontando ser crucial que se deixe nítido
o objetivo moral e não apenas econômico em ação de
investigação proposta em face de indivíduo já falecido, por
aquele que já possui filiação paternidade em seu registro.272
270 BRASIL, op. cit., nota 105 e JUSBRASIL, op. cit., nota 63.
271 CASSETTARI, op. cit., p. 264.
272 BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais. Agravo de
Instrumento nº 0232299-19.2017.8.13.0000. Relator: Desembargador
Albergaria Costa. Disponível em:
prudencia/943412966/agravo-de-instrumento-cv-ai-107041100057890
01-unai/inteiro-teor-943413104>. Acesso em: 14 jun. 2021.
114
O artigo 42, § 1º, do ECA veda a adoção por
ascendentes273, razão pela qual o Tribunal de Justiça do
Estado de São Paulo já proferiu decisão destacando que essa
regra somente pode ser flexibilizada para reconhecer a
parentalidade dos avós em situações extremamente
pontuais. Desse modo, isso não poderia ocorrer se
constatados intuitos puramente patrimoniais, tendo o
referido órgão jurisdicional negado a configuração da
multiparentalidade post mortem naquele caso.274
Portanto, cabe ao Poder Judiciário examinar se há
convivência entre as partes e vínculo afetivo entre elas ou
se exclusivo interesse econômico no registro da
parentalidade. Logo, torna-se crucial a utilização dos
princípios da vedação ao abuso do direito e da boa-fé
objetiva nesse campo para solucionar demandas
envolvendo a multiparentalidade post mortem.275
Apesar de entenderem que tais instrumentos
estariam disponíveis ao intérprete para frear pedido de
cunho puramente patrimonial, Anderson Schreiber e Paulo
Lutosa276 afirmam que o motivo íntimo do autor não é
suficiente para criar um obstáculo à procedência do pedido
contido na ação de investigação de paternidade. Contudo,
273 BRASIL, op. cit., nota 19.
274 BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Apelação nº
1016107-79.2018.8.26.0032. Relator: Desembargador Miguel Brandi.
Disponível em:
10/apelacao-civel-ac-10161077920188260032-sp-1016107-79201882
60032/inteiro-teor-894755457>. Acesso em: 14 jun. 2021.
275 CASSETTARI, op. cit., p. 264.
276 SCHREIBER; LUTOSA, op. cit., p. 861.
115
os autores277 enfatizam que o direito ao reconhecimento de
parentalidade com todos os seus efeitos patrimoniais e
existenciais não seria absoluto e comportaria relativizações.
Ainda sobre o tema, o Superior Tribunal de Justiça
já declarou que o reconhecimento da filiação post mortem
de filho maior dependeria de seu consentimento, uma vez
que não seria concebível a alteração unilateral da verdade
biológica ou afetiva de alguém sem que lhe tivesse sido
dada a oportunidade de se manifestar. Na situação
apreciada, buscou-se respeitar a memória e imagem
póstumas para preservar a história do filho e de sua genitora
biológica, que tinham falecido, não sendo autorizada a
inclusão da genitora socioafetiva.278
Com intuito de garantir a segurança jurídica e a
máxima eficácia ao princípio constitucional da afetividade,
não é razoável que se presuma o intuito meramente
patrimonial da parte ao ajuizar ação pleiteando a
multiparentalidade post mortem e os efeitos sucessórios
dela decorrente.
Dessa forma, somente a partir de uma análise
casuística minuciosa e da constatação da finalidade
unicamente financeira do demandante em seu pleito, seria
plausível afastar o reconhecimento da multiparentalidade
post mortem. Ressalte-se, apenas, que deve ser respeitado o
direito daquele indivíduo ao conhecimento de sua
277 Ibidem.
278 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial
1.688.470/RJ. Relatora: Ministra Nancy Andrighi. Disponível em:
al-resp-1688470-rj-2017-0200396-5/inteiro-teor-574629241>. Acesso
em: 14 jun. 2021.
116
ascendência genética, independente da caracterização do
vínculo parental.
Em suma, por força do princípio supracitado,
existindo dúvidas quanto ao objetivo puramente econômico
ou não do pleito de declaração de multiparentalidade post
mortem, este deve ser concedido. Pode-se considerar para
tal hipótese que prevalece o brocardo in dubio pro
“multiparentalidade”.
Ressalvado o perigo do surgimento de demandas
com cunho eminentemente patrimonial, os tribunais
estaduais aceitam o reconhecimento post mortem de
multiparentalidade279, desde que presente o vínculo
biológico ou socioafetivo, este último decorrente da
afetividade em razão da posse de estado de filho.
279 BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Apelação nº
1006090-70.2019.8.26.0477. Relatora: Desembargadora Viviani
Nicolau. Disponível em:
1162854284/apelacao-civel-ac-10060907020198260477-sp-1006090-
7020198260477>. Acesso em: 15 jun . 2021; BRASIL. Tribunal de
Justiça do Estado do Pará. Apelaçã o nº 0053715-38.2015.8.14.0301.
Relatora: Desembargado ra Maria de Nazare Saavedra Guimarães.
Disponível em: https://tj-pa.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/8138178
56/apelacao-apl-537153820158140301-belem/inteiro-teor-813817860.
Acesso em: 15 jun. 2021; BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de
Santa Catarina. Apelação 0300421-03.2015.8.24.0080. Relator:
Desembargador Jorge Luis Costa Beber. Disponível em:
jusbrasil.com.br/jurisprudencia/673588543/apelacao-civel-ac- 3004210
320158240080-xanxere-0300421-0320158240080>. Acesso em: 15
jun. 2021; BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.
Apelação Cível 1000105-52.2017.8.26.0587. Relatora:
Desembargadora Ana Maria Baldy. Disponível em:
sil.com.br/jurisprudencia/896014662/apelacao-civel-ac-10001055220
178260587-sp-1000105-5220178260587/inteiro-teor-896014902>.
Acesso em: 15 jun. 2021.
117
A partir disso, cabe explorar a legitimidade ativa e
passiva de tais ações, assim como o prazo prescricional para
petição de herança e outras eventuais questões advindas da
multiparentalidade post mortem. Vale pontuar que não
existe uma norma legal ou entendimento consolidado dos
Tribunais Superiores tratando especificamente dessa
matéria, motivo pelo qual deve-se observar alguns julgados
ocorridos nos tribunais estaduais e aplicar analogicamente
normas já vigentes no ordenamento jurídico.
A legitimidade ativa, assim como na ação de
investigação de paternidade, deve caber ao filho, nos termos
do artigo 1.606 do CC/02280, salvo se este falecer menor ou
incapaz. Noutro giro, é também defensável que o sujeito
postule a declaração de sua paternidade com relação a um
indivíduo já falecido na via judicial, mas poderia assim
fazê-lo no meio extrajudicial?
Ainda que seja aceito o reconhecimento da
paternidade socioafetiva e da multiparentalidade pela via
extrajudicial, o artigo 11, § 4º do Provimento nº 63281 do
CNJ282 estabelece que o filho menor de 18 anos também
deve consentir com a concretização de tal ato, razão pela
qual torna-se impossível que o reconhecimento se dê post
mortem por esse meio.
Dessa forma, o genitor, em querendo, poderia
intentar ação judicial para declarar a sua paternidade ao juiz
de maneira direta e expressa, nos termos do artigo 1.609,
280 BRASIL, op. cit., nota 28.
281 BRASIL, op. cit., nota 113.
282 Ibidem.
118
inciso IV, do CC/02283. Nessa ocasião, há de ser analisada
a presença dos elementos necessários para configuração do
vínculo de filiação e se essa demanda não tem pretensões
meramente patrimoniais.
No que tange à legitimidade passiva, os artigos 75,
inciso VII, e 618, inciso I, ambos do Código de Processo
Civil de 2015284 , estabelecem que o espólio é representado
ativa e passivamente por seu inventariante.
Consequentemente, o Tribunal de Justiça do Estado de São
Paulo possui julgado no sentido de que o polo passivo não
deve ser composto pelos herdeiros do falecido e sim pelo
espólio, na hipótese de se ter um inventário em
andamento.285
Entretanto, não havendo inventário, é indispensável
a citação de todos os herdeiros para compor um dos polos
da ação judicial. Isso porque restaria caracterizado
litisconsórcio necessário em decorrência da natureza da
relação jurídica controvertida, na forma do artigo 114 do
CPC/15286.
Em situação semelhante, o Tribunal de Justiça do
Distrito Federal e Territórios indicou que, em ação de
investigação de paternidade post mortem, o
283 BRASIL, op. cit., nota 28.
284 BRASIL. Código de Pr ocesso Civil. Disponível em:
planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm>.
Acesso em: 19 jun. 2021.
285 BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Apelação nº
1006980-79.2018.8.26.0077. Relator: Desembargador E néas Costa
Garcia. Disponível em:
173723930/apelacao-civel-ac-10069807920188260077-sp-1006980-
7920188260077/inteiro-teor-1173723977>. Acesso em: 19 jun. 2021.
286 BRASIL, op. cit., nota 284.
119
desconhecimento da existência de herdeiros não basta para
que a parte autora cumpra com seu encargo processual,
cabendo a ela realizar diligências mínimas na busca por
sucessores. Caso contrário, verificar-se-ia um grave vício
na demanda, uma vez que o litisconsórcio necessário é
condição de validade para o processo.287
Urge mencionar, ainda, que o referido Tribunal
define ser imprescindível a citação do pai registral ou de
seus herdeiros, caso já falecido, mesmo que nessas ações
somente se busque a inclusão do genitor biológico e não a
anulação do registro. Por isso, compreende-se que aquele
possui interesse jurídico de participar do processo, haja
vista que os efeitos derivados de eventual procedência do
pedido contido na ação de reconhecimento da
multiparentalidade, post mortem ou não, podem atingi-
lo.288 De acordo com os julgados supracitados, haveria
litisconsórcio passivo com o pai registral, de modo que a
falta de citação deste culminaria em grave nulidade
processual289, sendo a sentença passível de invalidação. Por
287 BRASIL. Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios.
Apelação Cível 071808 7-43.2018.8.07.0007. Relator:
Desembargador Alfeu Machado. Disponíve l em:
df.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/901062124/7180874320188070007
-segredo-de-justica-0718087-4320188070 007>. Acesso em: 16 jun.
2021.
288 Ibidem e BRASIL. Tribu nal de Justiça do Distrito Federal e
Territórios. Agravo de Instr umento nº 0709639-68.2019.8.07.0000.
Relator: Desembargador Sandoval Oliveira. Disponível em:
df.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/900928817/7096396820198070000
-segredo-de-justica-0709639-6820198070000/inteiro-teor-90092
8965>. Acesso em: 16 jun. 2021.
289 Ibidem.
120
outro lado, o Tribunal de Justiça do Estado de Santa
Catarina já se manifestou em sentido contrário, expondo
que somente em casos nos quais se almeja o cancelamento
ou anulação do registro de nascimento é fundamental a
formação de litisconsórcio passivo necessário com a citação
dos pais registrais, motivo pelo qual isso seria
desnecessário nas ações nas quais se postula o
reconhecimento da multiparentalidade.290
Saliente-se, ainda, que atualmente é legalmente
viável pedir pela realização de exame de DNA em parentes
consanguíneos do pai falecido na ação de investigação de
paternidade post mortem, sendo que a recusa também gera
a presunção de paternidade, a ser analisada juntamente com
as provas colhidas nos autos, de acordo com a previsão do
Uma das consequências decorrentes de tal
reconhecimento seria o enquadramento desse filho como
herdeiro legítimo necessário do falecido, razão pela qual
torna-se possível que este ajuíze ação de petição de herança
para obter a restituição de seu quinhão hereditário, com
base no artigo 1.824 do Código Civil de 2002292.
A petição de herança corresponde a uma ação
ajuizada pelo herdeiro ou coerdeiro, com o fito de ter
290 BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina. Apelação
Cível nº 0302950-86.2015.8.24.0082. Relator: Desembargador Rubens
Schulz. Disponível em:
13152048/apelacao-civel-ac-3029508620158240082-capital-continen
te-0302950-8620158240082/inteiro-teor-71315209 9>. Acesso em: 16
jun. 2021.
291 BRASIL, op. cit., nota 217.
292 BRASIL, op. cit., nota 28.
121
reconhecida essa qualidade, podendo reclamar dos
herdeiros a universalidade do acervo hereditário ou o seu
quinhão, a depender do caso.293 Cabe mencionar que Paulo
Lôbo294 critica o termo usado pela norma, afirmando que
não se trata de um pleito de restituição da herança, mas sim
de uma petição de posse de bens de herança.
Maria Berenice Dias295 argumenta que a petição de
herança tem natureza jurídica de ação real, visto que o
direito à sucessão aberta equivale a um bem imóvel. Além
disso, aduz a autora que a referida demanda deve ser
ajuizada em face dos detentores da herança, sendo eles
efetivamente herdeiros ou não296.
A legitimidade ativa para o ajuizamento de tal
demanda pertence ao herdeiro, o qual pode demandar o
reconhecimento de seu direito sucessório para obtenção da
restituição da herança ou de parte dela, enquanto que a
legitimidade passiva é de todo aquele que a possua, na
condição de herdeiro ou mesmo sem qualquer título,
conforme se depreende do artigo 1.824 do CC/02297.
Além disso, é preciso esclarecer que a ação de
petição de herança tem caráter universal, haja vista que
possui como objeto a universalidade do acervo hereditário
293 GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Herança Legítima Ad
Tempus: tutela sucessória no âmbito da filiaç ão resultante de
reprodução assistida póstuma. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017,
p. 159.
294 LÔBO, Paulo . Direito Civil: Sucessões. 7ª ed. V. 6. São Paulo:
Saraiva Educação, 2021 [e-book], p. 135.
295 DIAS, op. cit., p. 866.
296 Ibidem, p. 871.
297 BRASIL, op. cit., nota 28.
122
ou parte ideal dele, não podendo o autor postular apenas o
recebimento de um bem individualmente considerado, não
se confundindo essa ação com a reivindicatória.298
Diante dessa característica, o artigo 1.825 do
CC/02299 dispõe que tal ação pode abarcar todos os bens
hereditários mesmo que seja ajuizada por apenas um dos
herdeiros existentes. Além disso, essa ação pode ser
ajuizada antes ou depois de concluídos o inventário e a
partilha (ou adjudicação)300, sendo cabível que o herdeiro
preterido requeira sua habilitação no curso do inventário
judicial, consoante artigo 628 do CPC/15301.
Saliente-se que a petição de herança pode constituir
pretensão isolada ou, ainda, ser cumulada, por exemplo,
com eventual investigação de paternidade, caso o filho não
tenha sido reconhecido por seu genitor em vida302. Nessa
conjuntura, deve-se promover a reserva do quinhão
hereditário daquele que alega ser herdeiro303, visto que, em
caso de procedência dos pedidos contidos nas ações, aquele
deve receber todos os bens da herança que lhe eram devidos
e os frutos e rendimentos ocorridos após a constituição em
mora.304
298 GAMA, op. cit., p. 161-162.
299 BRASIL, nota 28.
300 GAMA, op. cit., p. 162.
301 BRASIL, op. cit., nota 284.
302 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil: direito
das sucessões. 27ª ed. V. 6. Atualizada e revista por Carlos Roberto
Barbosa Moreira. Rio de Janeiro: Forense, 2020 [e-book], p. 60.
303 DIAS, op. cit., p. 876.
304 PEREIRA, op. cit., 2020 b., p. 61.
123
A pretensão do herdeiro preterido em ajuizar a ação
de petição de herança é exatamente de ter reconhecida a sua
condição de sucessor e para que seja devolvido ao acervo
os bens que porventura já tiverem sido designados a outros
indivíduos. Assim, após a procedência da demanda, o(s)
réu(s) deverá(ão) restituir todos os bens que até então
possuía(m), para que seja feita uma nova partilha.305
Portanto, na hipótese de admissão da
multiparentalidade post mortem, é totalmente viável que o
filho reconhecido como tal ajuíze a ação de petição de
herança, uma vez que o reconhecimento da relação
multiparental ocasiona a incidência de todos os efeitos
jurídicos que lhe são próprios, conforme Tema de
Repercussão Geral nº 622 do STF306 e Enunciado nº 9 do
IBDFAM307.
Flávio Tartuce308 defende que a petição de herança
seria uma ação imprescritível porque o direito à herança é
um direito fundamental, intimamente ligado à própria
dignidade da pessoa humana. Afirma o autor que a
prescritibilidade poderia fazer com que o filho reconhecido
após o falecimento de seu genitor não recebesse a parcela
que lhe seria cabível, o que seria inconcebível pelo modelo
jurídico vigente.
305 GAMA, op. cit., p. 163.
306 BRASIL, op. cit., nota 6.
307 INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO DE FAMÍLIA, op. cit.,
nota 53.
308 TARTUCE, Flávio. Direito Civil: direito das sucessões. 14ª ed. rev.
ampl. atual. V. 6. Rio de Janeiro: Forense, 2021. [e-book], p. 155/156.
124
Igualmente, Luiz Paulo Vieira de Carvalho309
sustenta que as pretensões reais não estariam sujeitas à
prescrição extintiva e que estas seriam regidas pelos prazos
da prescrição aquisitiva ou usucapião. Dessa forma, de
acordo com o autor, as ações de petição de herança
deveriam ser consideradas imprescritíveis, sendo
possibilitado ao réu unicamente alegar exceção de
usucapião em sede de defesa.
Entretanto, essa não é a posição que prevalece na
doutrina310, que segue o entendimento consolidado na
súmula nº 149 do STF, a qual estabelece: “É imprescritível
a ação de investigação de paternidade, mas não o é a de
petição de herança”.311 Explica Maria Berenice Dias que
apenas a pretensão patrimonial de recebimento da herança
seria prescritível, sendo aplicável prazo geral de 10 anos
diante da inexistência de previsão legal específica312, na
forma do artigo 205 do Código Civil de 2002313.
Observa-se, porém, certa controvérsia acerca do
termo inicial para contagem do citado prazo prescricional
na hipótese de cumulação entre a petição de herança e a
ação de investigação de paternidade, na qual se almeja a
declaração do vínculo de filiação post mortem.
309 CARVALHO, op. cit., p. 321.
310 LÔBO, op. cit., 2021, p. 136 e TEPEDINO, Gustavo (Coord.);
NEVARES, Ana Luiza; MEIRELES, Rose Melo Vencelau.
Funda mentos do direito civil: direito das sucessões. 2ª ed. rev. atual.
ampl. V. 7. Rio de Janeiro: Forense, 2021, [e-book], p. 57.
311 BRASIL, op. cit., nota 205.
312 DIAS, op. cit., p. 876.
313 BRASIL, op. cit., nota 28.
125
Paulo Lôbo aduz que, por força do princípio de
saisine, a herança é transmitida aos herdeiros no momento
da abertura da sucessão, motivo pelo qual este deve ser o
termo inicial para o cômputo da prescrição, assim como
ressalta que o prazo de dez anos é suficiente para defesa de
pretensões sucessórias.314
Nessa mesma linha, Guilherme Calmon Nogueira
da Gama315 argumenta que a lesão ao direito à herança se
dá no momento em que ocorreu a abertura da sucessão,
visto que é com ela que se adquire concretamente o direito
à herança, mediante a transmissão da posse e propriedade
da parcela de bens do acervo hereditário.
Nessa toada, destaca o referido autor que:
Logo, caso venha a ser instaurado o
inventário judicial, ou mesmo
realizado inventário extrajudicial
devido ao acordo dos herdeiros que
comparecerem ao tabelião, sem
incapazes ou testamento envolvidos -,
com a preterição daquele que sustenta
ter a condição jurídica de herdeiro,
considera-se que a lesão ao direito à
herança dele ocorreu no momento do
falecimento do autor da sucessão,
razão pela qual tal época configura o
início de contagem do prazo
prescricional referente à pretensão de
petição de herança.316
314 LÔBO, op. cit., 2021, p. 135-136.
315 GAMA, op. cit., p. 172-174.
316 Ibidem, p. 174.
126
Ademais, elucida que as causas de impedimento,
suspensão e interrupção dos prazos prescricionais são
excepcionais, não comportando interpretação ampliativa
nem integração por analogia, de modo que não há falar em
causa de impedimento advinda do ajuizamento de ação de
investigação de paternidade.317
Noutro giro, Luiz Paulo Vieira de Carvalho318
defende que, em sendo adotada a posição majoritária da
doutrina pela prescritibilidade, o prazo somente deveria se
iniciar do trânsito em julgado da sentença que acolher o
pedido de reconhecimento da filiação e não da abertura da
sucessão, tendo em vista que somente a partir daquela seria
possível constatar a ofensa a direito subjetivo alheio.
Todavia, essa posição não é pacífica na
jurisprudência do próprio Superior Tribunal de Justiça,
existindo precedentes da Quarta Turma no sentido de que o
início do prazo prescricional se dá com a abertura da
sucessão319 e outros da Terceira Turma que compreendem
que o termo inicial deveria ser o trânsito em julgado da
sentença proferida em ação de investigação de paternidade,
317 Ibidem, p. 172-173.
318 CARVALHO, op. cit., p. 322.
319 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo Inter no no Agravo
em Recurso Especial nº 479.648/MS. Relator: Ministro Raul Araújo.
Disponível em:
agravo-interno-no-agravo-em-recurso-especial-agint-no-aresp-479648
-ms-2014-0039759-2>. Acesso em: 10 jul. 2021; BRASIL. Superior
Tribunal de Justiça. Agravo Interno no Agravo em Recurso Especial nº
1.430.937/SP. Relator: Ministro Raul Araújo. Disponível em:
stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/857229612/agravo-interno-no-agra
vo-em-recurso-especial-agint-no-aresp-1430937-sp-2019-0011448-
2>, Acesso em: 10 jul. 2021.
127
à luz da teoria da actio nata, diante da confirmação da
condição de herdeiro320. O tema foi submetido à apreciação
da Segunda Seção do STJ que concluiu no sentido do início
da contagem do prazo prescricional como sendo a data da
abertura da sucessão321.
É necessário pontuar que, conforme já mencionado,
além de ser possível a cumulação da ação de investigação
da paternidade com a ação de petição de herança, é viável
ainda a propositura das duas ações em separado, com
eventual suspensão desta última pela prejudicialidade
identificada.322
Enfatize-se que é possível incidir, dependendo das
circunstâncias concretas, as causas impeditivas e
suspensivas da prescrição contidas entre os artigos 197 e
320 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial
1.762.852/SP. Relator: Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva.
Disponível em:
1/recurso-especial-resp-1762852-sp-2018-0221264-4>. Acesso em: 10
jul. 2021; BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especia l nº
1.605.483/MG. Relator: Mi nistro Paulo de Tarso Sanseverino.
Disponível em:
7/recurso-especial-resp-1605483-mg-2015-0103692-1>. Acesso em:
10 jul. 2021; BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo Interno no
Agravo em Recurso Especial nº 1.215.185/SP. Relator: Ministro Marco
Aurélio Bellizze. Disponível em:
dencia/860094235/agravo-interno-no-agravo-em-recurso-especial-
agint-no-aresp-1215185-sp-2017-0299431-1>. Acesso em: 10 jul.
2021.
321 Prescr ição de petição de herança começa a cor rer mesmo sem
prévia investigaçã o de paternidade”. In: https://www.stj.jus. br/sites/
portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/2022/23112022-Prescricao-de-
peticao-de-heranca-comeca-a-correr-mesmo-sem-previa-investigacao-
de-paternidade.aspx
322 GAMA, op. cit., p. 172-173.
128
199 do Código Civil de 2002323, as quais são alicerçadas em
motivos de natureza moral, pela necessidade de proteger
interesses de pessoas que não conseguiriam efetivamente
assimilar a situação jurídica da qual são titulares, ou em
outras razões elencadas na legislação civil324.
Percebe-se que, muitas vezes, as ações de
investigação de paternidade e de petição de herança
envolvem absolutamente incapazes, motivo pelo qual o
prazo prescricional somente se iniciaria na data em que o
indivíduo completasse 16 anos de idade. Assim sendo,
conforme já houve oportunidade de analisar, se houver a
abertura da sucessão de uma pessoa que não reconheceu
descendente, nascido menos de um ano, deve-se
aguardar o decurso de, pelo menos, 16 anos para poder ser
iniciada a contagem do prazo de 10 anos para promover a
ação de petição de herança.325
À vista do que foi explanado acima, com todo
respeito às opiniões contrárias, seria mais adequado
considerar como termo inicial da prescrição a data da
abertura da sucessão e não o trânsito em julgado da sentença
proferida em ação de investigação de paternidade. Isso
porque, em primeiro lugar, a lei não considera o
ajuizamento desta como causa de impedimento do prazo
prescricional, não sendo apropriado realizar uma
interpretação ampliativa da norma ou usar da analogia para
assim fazer. Ademais, a definição do seu termo inicial deve
se basear na data da lesão ao direito, que, nesse caso, teria
323 Ibidem.
324 GAMA, op. cit., p. 176.
325 Ibidem.
129
ocorrido com o falecimento do autor da sucessão e não na
data em que é confirmada a condição de filho. Este foi o
entendimento alcançado pela Segunda Seção do STJ em
precedente relativamente recente, como já referido.
Frise-se que, ainda que o direito à herança seja
considerado direito fundamental, na forma do artigo 5º,
inciso XXX, da CRFB/88326, entender de maneira contrária
ao ponto de vista acima sustentado poderia configurar uma
verdadeira violação à segurança jurídica, visto que a ação
de investigação de paternidade pode acabar demorando
anos ou até décadas.
Por exemplo, em sendo o herdeiro absolutamente
incapaz, o seu prazo prescricional somente se contaria a
partir do dia em que ele completasse 16 anos de idade, de
modo que se afere que esse sujeito poderia ter cerca de 26
anos para propor a ação de petição de herança para ter seu
direito resguardado, o que vem a ser mais do que suficiente
para assegurar a pretensão do sucessor.
Desse modo, fica claro que admitir que o prazo
prescricional comece do trânsito em julgado da sentença da
ação de investigação jurídica culminaria em uma situação
de incerteza jurídica que não se coaduna com o
ordenamento jurídico atual.
Sublinhe-se que é permitido a parte não apenas
ajuizar a ação de petição de herança cumulada com de
investigação de paternidade, como também propor ambas
as ações em separado e pleitear a suspensão da primeira em
razão da prejudicialidade, evitando o curso da prescrição.
326 BRASIL, op. cit., nota 7.
130
Destarte, o termo inicial do prazo prescricional daquela
deve ser a data da abertura da sucessão, que se dá com o
falecimento do autor da herança.
A partir dessas premissas iniciais sobre a relação
entre o Direito das Sucessões e a multiparentalidade, em
seguida serão analisados alguns de seus efeitos em casos de
sucessão legítima e testamentária.
3.2. Hipótese de sucessão legítima em favor dos
ascendentes
De início, cabe fazer uma diferenciação resumida
entre os conceitos de sucessão testamentária e de sucessão
legítima. A primeira corresponde ao meio de transmissão
da herança por intermédio de um testamento (e/ou
codicilo), isto é, determinada pessoa define prévia e
documentalmente quem ficará com seu patrimônio após o
seu falecimento, devendo ser resguardada a parcela relativa
à legítima dos herdeiros necessários.327
Noutro giro, a sucessão legítima é aquela decorrente
de lei, sendo aplicável nos casos em que inexistir
testamento (ab intestato)328 ou nas hipóteses em que o
testamento for revogado, reputado nulo ou se os herdeiros
testamentários forem excluídos, falecerem antes do de cujus
ou renunciarem à herança.329
Nessa oportunidade, será realizado um exame da
sucessão legítima nos casos de multiparentalidade,
327 DIAS, op. cit., p. 159-160.
328 PEREIRA, op. cit., 2020 b., p. 69.
329 LÔBO, op. cit., 2021, p. 35.
131
especificadamente com relação à aplicada em favor dos
ascendentes, observadas as hipóteses com e sem
concorrência com cônjuge ou companheiro, a qual pode vir
a culminar maiores debates judiciais.
O Supremo Tribunal Federal consolidou seu
entendimento acerca da admissão da multiparentalidade na
tese de Repercussão Geral nº 622, estabelecida no curso do
julgamento do Recurso Extraordinário de nº 898.060/SC,
por meio da qual se fixou que a paternidade socioafetiva
não impediria o reconhecimento do vínculo de filiação
concomitante baseado na origem biológica, com os efeitos
jurídicos próprios.330
Em razão disso, passou a se compreender que os
direitos hereditários podem derivar da multiparentalidade,
o que garantiria não apenas os princípios constitucionais da
afetividade e do melhor interesse da criança e do
adolescente, como também o direito fundamental à herança,
previsto no artigo 5º, inciso XXX, da CRFB/88331.
Em complementação, o artigo 227, § 6º, da
CRFB/88332 dispõe sobre o princípio da igualdade entre os
filhos independentemente de sua origem, vedando
quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação.
Por força disso, reconhecida a multiparentalidade e feito o
registro em nome de mais de dois pais, o descendente fará
jus à herança de todos os seus genitores.333
330 BRASIL, op. cit., nota 6.
331 BRASIL, op. cit., nota 7.
332 Ibidem.
333 DIAS, op. cit., p. 190-191.
132
Assim sendo, esclarece Paulo Lôbo334 que esse
descendente terá duplo direito à herança, ainda que isso
gere uma situação mais vantajosa a ele com relação aos
irmãos socioafetivos e biológicos.
De acordo com Christiano Cassettari, é incumbência
do Poder Judiciário coibir demandas de cunho
exclusivamente patrimonial por intermédio do instituto que
proíbe o abuso do direito, porém não é concebível que haja
um filho sem herança, que esta equivale a um direito
fundamental335. Assentando a questão, foi aprovado, na
VIII Jornada de Direito Civil do CJF, o enunciado nº 632, o
qual sedimentou que: “Nos casos de reconhecimento de
multiparentalidade paterna ou materna, o filho terá direito à
participação na herança de todos os ascendentes
reconhecidos.”336
Outrossim, a situação inversa também poderia ser
observada, tornando-se factível que três ou mais genitores
tenham direito à herança de seu filho, o que se depreende
do enunciado nº 33 do IBDFAM.337 Com o fito de tratar de
algumas ideias iniciais, cumpre destacar que são herdeiros
legítimos os descendentes, ascendentes, cônjuge,
companheiro e colaterais, estabelecendo a lei uma ordem de
preferência e substituições entre eles, denominada ordem de
334 LÔBO, op. cit., 2021, p. 41.
335 CASSETTARI, op. cit., p. 263-264.
336 BRASIL, Conselho da Justiça Federal. VIII Jornada de Direito Civil.
Disponível em: .
Acesso em: 10 ago. 2021.
337 INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO DE FAMÍLIA, op. cit.,
nota 57.
133
vocação hereditária338, na forma do artigo 1.829 do
CC/02339.
Nesse sentido, os ascendentes são chamados em
segundo lugar na ordem sucessória, vindo em seguida aos
descendentes, sendo que os mais próximos excluem os mais
remotos.340 A princípio, em havendo igualdade em grau e
diversidade de linha, os ascendentes da linha paterna
herdariam a metade e a outra caberia aos da linha materna,
conforme artigo 1.836, § 2º, do CC/02341, caso não haja
cônjuge ou companheiro sobrevivente.
No entanto, uma interpretação literal do citado
artigo poderia se mostrar injusta e desigual dentro de uma
relação multiparental. Por exemplo, coexistindo no registro
duas mães e um pai, este ficaria com 50% da herança de seu
descendente, enquanto que aquelas teriam direito a apenas
25% cada uma, em razão de o dispositivo indicar que os
ascendentes da linha paterna herdam a metade e a outra
parte pertence aos da linha materna.
Não obstante, é preciso observar que, na época em
que o Código Civil entrou em vigor, não havia
entendimento algum admitindo a multiparentalidade. Em
338 LÔBO, op. cit., 2021, p. 35.
339 BRASIL, op. cit., nota 28. “A sucessão legítima defere-se na ordem
seguinte: I - aos descendentes, em concorrência com o cônjuge
sobrevivente, salvo se casado este com o falecido no regime da
comunhão universal, ou no da separação obrigatória de bens (art. 1.640,
parágrafo único); ou se, no regime da comunhão parcial, o autor da
herança não houver deixado bens particulares; II - aos ascendentes, em
concorrência com o cônj uge; III - ao cônjuge sobrevivente; IV - aos
colaterais.”
340 DIAS, op. cit., p. 192.
341 BRASIL., op. cit., nota 28.
134
consequência, o legislador não levou em consideração a
possibilidade de existirem três ou mais genitores no registro
civil de nascimento de determinada pessoa, tampouco que
isso geraria efeitos no âmbito do direito das sucessões.
Portanto, vale dizer que não seria viável falar em
silêncio eloquente do legislador ou algo similar para afastar
o pensamento de que a herança deveria ser dividida de
maneira igualitária entre todos os ascendentes.
Assim sendo, Maria Berenice Dias342 defende que a
referência legal não tem como subsistir se o falecido tiver
um pai e duas mães, porque seria uma injustiça conceder ao
genitor o dobro do que teriam direito as genitoras. Dessa
maneira, a autora destaca que a herança deveria ser dividida
igualmente entre todos.
Seguindo essa linha de raciocínio, compreendem
Gustavo Tepedino, Ana Luiza Maia Nevares e Rose Melo
Vencelau Meireles que:
Maior dificuldade se mostra na
sucessão dos ascendentes na
multiparentalidade. Nesse caso, tem-se
pelo menos três ascendentes. A
prevalência pela linha paterna ou
materna não se apresenta razoável.
Pode-se depreender que na norma
contida no § 2º do artigo 1.836 do
Código Civil resta consolidado o
princípio da igualdade como critério de
partilha, ainda que tenha a premissa da
existência de duas linhas, paterna e
materna. Eis o viés que se propõe. Na
342 DIAS, op. cit., p. 192.
135
sucessão de descendente por
ascendentes, constatada a
multiparentalidade, caberá a cada
ascendente um quinhão igual, com a
tentativa de aproximar as hipóteses
anteriores.343
Além de ser defendida por outros doutrinadores344
essa posição é definida no enunciado nº 642 da VIII Jornada
de Direito Civil do CJF, colacionado abaixo:
Nas hipóteses de multiparentalidade,
havendo o falecimento do descendente
com o chamamento de seus
ascendentes à sucessão legítima, se
houver igualdade em grau e
diversidade em linha entre os
ascendentes convocados a herdar, a
herança deverá ser dividida em tantas
linhas quantos sejam os genitores.345
Contudo, uma parcela da doutrina ainda adota uma
percepção contrária à exposta, como é o caso da posição de
Luiz Paulo Vieira de Carvalho. Argumenta o autor que não
seria cabível desconsiderar o disposto no artigo 1.836 do
CC/02346, uma vez que o artigo 5º, inciso II, da CRFB/88347
343 TEPEDINO; NEVARES; MEIRELES, op. cit., p. 84.
344 CASSETTARI, op. cit., p. 264; TARTUCE, op. cit., 2021, p . 256-
257; LÔBO, op. cit., 2021, p. 41-42.
345 BRASIL, Conselho da Justiça Federal. VIII Jornada de Direito Civil.
Disponível em: .
Acesso em: 10 ago. 2021.
346 BRASIL, op. cit., nota 28.
347 BRASIL, op. cit., nota 7.
136
expressamente fixa que ninguém é obrigado a fazer ou
deixa de fazer algo, salvo na existência de lei.348
Neste diapasão, aduz que o autor que, existindo dois
pais (ou mães) e uma mãe (ou pai), aqueles receberão
metade da quota devida aos ascendentes, cabendo 25% para
cada um, e esta fará jus a outra parte integralmente.
Salienta, ainda, que só existiria inconstitucionalidade se
houvesse alguma situação que gerasse uma diferenciação
entre os filhos e não entre os ascendentes.349
Entretanto, data vênia, conforme explicitado
anteriormente, o Código Civil entrou em vigor em um
momento anterior ao do efetivo reconhecimento da
multiparentalidade. Além disso, uma divisão igualitária
assegura maior plenitude ao direito fundamental à herança,
assim como aos princípios da igualdade e da dignidade da
pessoa humana. Ademais, é assente a orientação de que, em
se tratando de herdeiros legítimos que integram a mesma
classe e grau de parentesco a partilha do acervo hereditário
deverá ser igualitária, como regra, sendo excepcional a
divisão desigual.
Nesse sentido, diante de uma ponderação entre os
preceitos constitucionais, afere-se que esse modo de
partilha entre os ascendentes não violaria a Constituição
Federal, mas sim traria um maior equilíbrio para a ordem
jurídica pátria e salvaguardaria outros dispositivos e
princípios constitucionais.
348 CARVALHO, Luiz Paulo Vieira de. Direito das Sucessões. 4ª ed.
rev. atual. ampl. São Paulo: Atlas, 2019 [e-book], p. 367-368.
349 Ibidem.
137
Outra questão controvertida verificada no âmbito do
direito sucessório em relações multiparentais é na hipótese
de concorrência entre cônjuge (ou companheiro) e
ascendentes na sucessão. Isso porque o artigo 1.837 do
Código Civil de 2002350 prevê que o cônjuge deve receber
um terço da herança caso concorra com ascendentes ou
metade, se houver um único ascendente.
À vista disso, concorrendo o cônjuge com o pai e a
mãe do falecido, os três terão direitos sucessórios na mesma
proporção, de 1/3 da herança e, por outro lado, se houver
apenas um ascendente de primeiro grau ou outros
ascendentes de graus diversos, o cônjuge fará jus à metade
da herança e o restante será dividido entre os demais.351
No entanto, admitida a multiparentalidade, o
cônjuge (ou companheiro) pode estar concorrendo com
mais de dois ascendentes em primeiro grau. Nessa situação,
também caberia a ele um terço da herança?
Por uma interpretação literal do dispositivo
mencionado, a resposta seria afirmativa. Por exemplo, caso
certa pessoa faleça deixando três ascendentes vivos em
primeiro grau e o cônjuge, caberia a este um terço e aos
demais o total de dois terços da herança, ou seja, o quinhão
hereditário de cada ascendente corresponderia a 2/9 do
acervo hereditário.
É possível, porém, se contemplar uma intepretação
contrária à literalidade da regra do Código Civil, com o
objetivo de proteger a igualdade entre os herdeiros, de
350 BRASIL, op. cit., nota 28.
351 TARTUCE, op. cit., 2021, p. 257-259.
138
modo que o cônjuge, em concorrência com os ascendentes,
receberia um quinhão igual a eles.
Com fulcro na ideia de preservar o cônjuge ou
companheiro sobrevivente, Débora Gozzo segue o primeiro
entendimento, sustentando que o mais adequado seria
garantir a quota daquele, correspondente a um terço do
patrimônio do de cujus, enquanto que o restante deveria ser
dividido igualmente entre os ascendentes.352
Por outro lado, Anderson Schreiber e Paulo
Lutosa353 defendem a necessidade de aplicação da ratio do
dispositivo, motivo pelo qual a herança deveria ser
repartida em partes iguais entre o cônjuge e os ascendentes
de primeiro grau.
Flávio Tartuce, inicialmente, concordava com a
primeira posição apresentada e aduzia que era preciso
resguardar a quota do cônjuge ou companheiro e que o
restante deveria ser dividido entre os ascendentes. No
entanto, sua reflexão se alterou após ser influenciado e
convencido por José Fernando Simão, de modo que aquele
passou a abraçar a segunda forma de se pensar.354
José Fernando Simão faz uma interpretação
teleológica da norma e afirma que o seu objetivo foi tratar
de forma isonômica os ascendentes de primeiro grau e o
352 GOZZO, Débora. Dupla pater nidade e direito sucessór io: a
orientação dos Tribunais Superiores brasileiros. Disponível em:
civilistica.com/wp-content/uploads/2017/12/Gozzo-civilistica.com-
a.6.n.1.2017.pdf>. Acesso em: 10 ago. 2021.
353SCHREIBER; LUTOSA, op. cit., p. 862.
354 TARTUCE, op. cit., 2021, p. 259.
139
cônjuge ou companheiro sobrevivente, uma vez que
assegurou o mesmo quinhão para as duas classes.355
Esclarece o autor que, no caso de
multiparentalidade, a herança deve ser partilhada por
cabeça, o que gera uma grande facilitação no cálculo dos
quinhões devidos a cada um. Conclui, ainda, que o
dispositivo apenas não menciona “partes iguais” e sim um
terço porque na ocasião não se compreendia que seria
factível a existência de mais de dois genitores no registro.356
Nesse momento, cabe efetuar uma distinção entre
modos de suceder por direito próprio, por representação
ou por direito de transmissão e de partilhar por cabeça,
por estirpe ou por linhas.
A sucessão por direito próprio se dá na hipótese em
que certo sujeito pertence à classe e ao grau chamado em
primeiro lugar na ordem de vocação hereditária, enquanto
que o direito à representação nasce na situação em que os
descendentes tomam o lugar de herdeiro preferencial
impossibilitado de suceder, seja por pré-morte ou por
indignidade ou deserdação357, nos termos dos artigos 1.851
a 1.856 do Código Civil de 2002358.
355 SIMÃO, José Fernando. A concorrência dos pais e ou das mães com
o cônjuge sobrevivente. Disponível em:
2018-set-02/processo-familiar-concorrencia-pais-ou-maes-conjugeso
sobrevivente#:~:text=Essa%20%C3%A9%20a%20solu%C3%A7%C3
%A3o%20a,at%C3%A9%20bem%20pouco%20tempo1.>. Acesso em:
15 ago. 2021.
356 Ibidem.
357 TEPEDINO; NEVARES; MEIRELES, op. cit., p. 66.
358 BRASIL, op. cit., nota 28.
140
Ressalta Paulo Lôbo que o direito à representação
apenas tem lugar se houver concorrência entre quem herda
por direito próprio e os que assumem a qualidade do pré-
morto ou excluído, bem como não existe se os descendentes
seguintes na ordem de vocação estiverem no mesmo
grau.359
Por fim, o direito de transmissão pode ser observado
tanto da sucessão testamentária como na sucessão legítima,
ocorrendo se o herdeiro falece após a abertura da sucessão
sem ter aceitado ou rejeitado a herança do falecido,360 de
acordo com o artigo 1.809 do CC/02.361
No que tange aos modos de partilhar, por um lado,
a partilha por cabeça é feita em partes iguais e ocorre nas
hipóteses de sucessão por direito próprio362. Por outro, a
partilha por estirpe se se houver o direito de
representação ou de transmissão, haja vista que a herança é
dividida pelo conjunto dos representantes e é
posteriormente partilhada de maneira igualitária entre
eles363, cumprindo-se observar as regras contidas nos
artigos 1.835 e 1.840, ambos do Código Civil de 2002364.
O último modo de partilhar se dá na sucessão em
favor ascendentes, na qual, a princípio, há divisão da
herança entre duas linhas, paterna e materna365. Todavia, na
hipótese de multiparentalidade, na qual verifica-se que há
359 LÔBO, op. cit., 2021, p. 55-57.
360 CARVALHO, op. cit., p. 327.
361 BRASIL, op. cit., nota 28.
362 CARVALHO, op. cit., p. 328.
363 TEPEDINO; NEVARES; MEIRELES, op. cit., p. 67.
364 BRASIL, op. cit., nota 28.
365 DIAS, op. cit., p. 62.
141
três ou mais genitores, essa interpretação não deve se
manter.
Nesse caso, deve-se compreender pela existência de
múltiplas linhas, conforme indicado por parcela da
doutrina.366 Inclusive, Gustavo Tepedino, Ana Luiza Maia
Nevares e Rose Melo Vencelau Meireles já apontam que
não seria viável falar em linhas materna e paterna, mas sim
as linhas ou troncos ascendentes.367
Observe-se que a consolidação da
multiparentalidade somente ocorreu em âmbito
jurisprudencial com o Recurso Extraordinário
898.060/SC, com repercussão geral368. Assim sendo, de
fato, os legisladores não consideraram tal instituto no
momento de elaboração das normas do Código Civil,
gerando controvérsias na matéria referente à sucessão dos
ascendentes, em concorrência com o cônjuge ou não.
Entretanto, não há entendimento consolidado nos
Tribunais Superiores acerca do tema, de modo que os
juristas buscam criar as melhores soluções possíveis para os
casos envolvendo a multiparentalidade.
A realização de uma interpretação não apenas
literal, mas teleológica dos dispositivos legais parece
garantir um maior equilíbrio entre os herdeiros. No entanto,
apesar haver uma posição majoritária na doutrina
defendendo a partilha igualitária na sucessão entre
ascendentes e uma tendência de se seguir essa mesma linha
366 LÔBO, op. cit., p. 58 e TEPEDINO; NEVARES; MEIRELES, op.
cit., p. 68.
367 TEPEDINO; NEVARES; MEIRELES, op. cit., p. 68.
368 BRASIL, op. cit., nota 6.
142
de raciocínio se houver concorrência com o cônjuge ou
companheiro, remanesce uma certa insegurança jurídica em
razão da ausência de legislação e jurisprudência nesse
sentido.
Vale dizer que, não obstante a existência de opinião
doutrinária defendendo a divisão por cabeça na sucessão em
favor de ascendentes, em concorrência ou não com o
cônjuge, no caso de multiparentalidade, data venia, essa
não se mostra a solução mais adequada. Por exemplo, na
situação em que o falecido não tenha deixado descendentes,
mas apenas o seu cônjuge e seis avós, a divisão prejudicará
o primeiro de sobremaneira e não parece se coadunar com
o intuito do legislador ao criar a partilha por linhas.
Neste diapasão, ao invés do modo de partilha por
cabeça, dever-se-ia manter a adoção da partilha por linhas,
utilizando-se da ideia de que esta terá como base os troncos
ascendentes existentes e não mais se estruturará unicamente
nas duas linhas, paterna e materna. Assim sendo, em
havendo dois pais e uma mãe, deve ser feita a seguinte
divisão: uma linha paterna “A”, uma linha paterna “B” e
uma linha materna.
Essa percepção, inclusive, já se encontra expressa
no recente Enunciado de nº 676 da IX Jornada de Direito
Civil do CJF, o qual estipula: “Art. 1.836, §2º: A expressão
diversidade em linha, constante do §2º do art. 1.836 do
Código Civil, não deve mais ser restrita à linha paterna e à
linha materna, devendo ser compreendidas como linhas
143
ascendentes.”369 Assim, a divisão da herança entre os
ascendentes, em não havendo concorrência com cônjuge ou
companheiro, não deve levar em consideração tão somente
as linhas paterna e materna, mas sim as linhas ascendentes.
Vale realçar que, apesar de o enunciado supracitado
tratar do artigo 1.836, § 2º, do Código Civil de 2002370, é
evidente que pode vir a ser utilizado na interpretação das
hipóteses de sucessão legítima em favor ascendentes, em
concorrência com cônjuge ou companheiro. Por
conseguinte, nessa situação, todos deveriam receber um
quinhão igual, observando-se as linhas ascendentes
existentes.
Exemplificando, se um sujeito não possuir genitores
e deixar quatro avôs maternos, dois avôs paternos e seu
companheiro, a herança deverá ser dividida da seguinte
forma: 1/4 ao companheiro sobrevivente, 1/4 a linha
ascendente “A”, 1/4 a linha ascendente “B” e 1/4 a linha
ascendente “C”.
Com o objetivo de garantir a máxima segurança
jurídica para formação desse modelo familiar, verifica-se
ser imprescindível a atualização legislativa para tratar da
sucessão em casos de multiparentalidade, o que permitiria
que se encerrassem quaisquer questionamentos sobre como
deve ser feita eventual partilha nessas situações.
369 BRASIL. Conselho da Justiça Federal. IX Jorn ada de Direito Civil.
Disponível em: .
Acesso em: 23 jun. 2022.
370 BRASIL, op. cit., nota 28.
144
3.3. Aspectos sobre adiantamento da legítima e
sucessão testamentária nos casos de
multiparentalidade
De acordo com tudo o que foi mencionado
anteriormente ao longo deste livro, resta nítido que a
multiparentalidade mesmo reconhecida post mortem
assegura direitos sucessórios aos integrantes da relação, os
quais fazem jus à sua parcela da legítima se forem herdeiros
necessários, como ocorre com os filhos e ascendentes.
Todavia, é interessante averiguar se há falar em
presunção de adiantamento da legítima por eventual doação
feita em vida por tais indivíduos, o que vem a estar
intimamente ligado com o instituto da colação. Este
corresponde ao dever imposto aos descendentes e ao
cônjuge ou companheiro de trazer todas as doações que
tiverem recebido do de cujus em vida, para que componham
o valor total da legítima dos herdeiros necessários371, a fim
de garantir maior igualdade entre os quinhões.
A doação em favor de herdeiro necessário, por si só,
não possui vício de invalidade, porém, para preservar o
princípio da igualdade, presume-se que toda liberalidade
efetuada de ascendente para descendente é retirada da
legítima e não da parte disponível, motivo pelo qual é
preciso fazer uma conferência dos bens transferidos em
sede de inventário.372 Em tese, essa obrigação busca evitar
a ocorrência de fraude à lei, visto que impede que o de cujus
371 LÔBO, op. cit., 2021, p. 43.
372 DIAS, op. cit., p. 367-368.
145
possa doar livremente seus bens para beneficiar alguns de
seus herdeiros necessários em detrimento dos demais.373
Entretanto, somente os descendentes e o cônjuge ou
companheiro possuem esse encargo, conforme artigos
2.002 e 2.003 do Código Civil de 2002374, estando os
ascendentes e colaterais dispensados da colação, uma vez
que, por ser uma norma restritiva de direitos, não se autoriza
a realização de analogia ou interpretação extensiva para
abarca-los.375
Por exemplo, se um filho doa em vida 50% de seu
patrimônio a apenas um de seus três genitores, esse ato não
é considerado adiantamento da legítima e presume-se que
os bens foram retirados da parte disponível. Assim sendo,
se aquele descendente acaba falecendo antes dos
ascendentes, o beneficiado pelo ato de liberalidade não é
obrigado a trazer o bem à colação para igualar as legítimas.
Por conseguinte, argumenta Gustavo Tepedino376 que tal
isenção permite que um ascendente possa ser preferido em
relação aos demais, causando um desequilíbrio nos
quinhões hereditários.
De toda maneira, a lei autoriza que o próprio doador
faça uma dispensa à colação, o que faz com que a
liberalidade passe a ser computada como parte disponível
do acervo hereditário e não seja caracterizada como
373 LÔBO, op. cit., 2021, p. 44.
374 BRASIL, op. cit., nota 28.
375 TARTUCE, op. cit., 2021, p. 681.
376TEPEDINO; NEVARES; MEIRELES, op. cit., p. 261.
146
adiantamento da herança377, desde que não haja excesso,
nos termos do artigo 2.005 do Código Civil de 2002.378
O parágrafo único do artigo supracitado379
determina, porém, que se presume imputada na parte
disponível a liberalidade em favor de descendente que, no
momento do ato, não seria chamado à sucessão na
qualidade de herdeiro necessário. Assim, haveria dispensa
presumida de colação caso um neto, donatário de seu avô,
venha a sucedê-lo por direito de representação em razão do
falecimento de seu genitor, e não estivesse na ordem de
vocação quando foi praticado o ato de liberalidade.380
Nesse aspecto, Maria Berenice Dias destaca que é o
momento da liberalidade que identifica a qualidade do
herdeiro e o dever de colacionar e não do falecimento do
doador. Não obstante, não se pode fazer uma diferenciação
pelo simples fato de um dos herdeiros necessários nascer ou
ser reconhecido como tal após o ato de liberalidade, de
modo que o surgimento deste faz com que a doação se
transforme em adiantamento da legítima.381
Suponha-se a seguinte situação hipotética
envolvendo o reconhecimento de multiparentalidade post
mortem: João era companheiro de Carla e mantinha uma
relação afetiva com o filho desta, Caio, restando no plano
fático configurada a posse de estado de filho. Apesar disso,
João não reconheceu tal paternidade socioafetiva em vida,
377 Ibidem, p. 267.
378 BRASIL, op. cit., nota 28.
379 Ibidem.
380 TEPEDINO; NEVARES; MEIRELES, op. cit., p. 268.
381 DIAS, op. cit., p. 832-837.
147
uma vez que o genitor biológico de Caio já constava em seu
registro e ele desconhecia por completo o instituto da
multiparentalidade.
Em dado momento, João, mesmo tendo outros
filhos, doou 50% de seu patrimônio, em vida, para Caio e
acabou falecendo pouco tempo depois. Após a abertura da
sucessão daquele, Caio descobriu que a multiparentalidade
era juridicamente aceita e ajuizou ação postulando o seu
reconhecimento post mortem, para incluir João em seu
registro. No caso de procedência do pedido contido nessa
ação, seria possível presumir que aquela parcela doada
agora configuraria adiantamento da legítima ou aplicar-se-
ia o parágrafo único do artigo 2.005 do Código Civil, já que
o reconhecimento somente se deu após o falecimento de
João? No livro de Caio Mario382, tem-se a indicação de que
o filho natural não é obrigado a trazer os bens à colação se
tiver recebido a doação antes do seu reconhecimento como
tal, visto que somente este ato lhe conferiria o sta tus e o
qualificaria como herdeiro necessário.
Não obstante, conforme mencionado, a
parentalidade socioafetiva se consubstancia na posse de
estado de filho, a qual possui como elementos o tratamento
(tractacio), a fama (repuctacio) e o nome (nominatio),383 os
quais podem ser analisados a partir do contexto fático
envolvendo os indivíduos inseridos naquela relação.
Assim, obedecendo os critérios acima, a paternidade
socioafetiva se dá pela demonstração de dados fáticos,
382 PEREIRA, op. cit., 2020 b., p. 377.
383 TARTUCE, op. cit., 2020, p. 504-505.
148
constituindo-se a partir da verificação da presença dos
elementos citados acima. Dessa maneira, no exemplo
apresentado, admitir que a doação não corresponderia a
adiantamento da legítima apenas porque a procedência do
pedido de declaração de multiparentalidade ocorreu após o
falecimento do doador geraria um tratamento desigual aos
filhos, o que afronta o artigo 227, § 6º, da CRFB/88384.
Enfatize-se que o interesse do autor com o
ajuizamento desse tipo de ação é a declaração da existência
de uma relação jurídica, nos termos do artigo 19, inciso I,
do Código de Processo Civil de 2015385. Destarte, em razão
de sua natureza, a sentença proferida em ação de
investigação de paternidade possui efeitos ex tunc386.
Com base nesses mesmos fundamentos, caso haja
um registro anterior de uma filiação socioafetiva e José,
genitor biológico de Caio, lhe doe uma parcela de seu
patrimônio em vida, igualmente o ato de liberalidade
configura antecipação da legítima. Em consequência,
impõe-se o dever de colação, mesmo que o reconhecimento
da paternidade tenha se dado após o falecimento do
ascendente pela procedência do pedido contido em uma
ação judicial ou por meio de uma disposição testamentária
do genitor reconhecendo a filiação.
Desse modo, pelo fato de a sentença proferida em
ação na qual se pretende o reconhecimento da paternidade
retroagir e para garantir a igualdade entre os filhos, o artigo
384 BRASIL, op. cit., nota 6.
385 BRASIL, op. cit., nota 284.
386 LÔBO, op. cit., 2020, p. 282.
149
2.005, parágrafo único, do Código Civil de 2002387 não
deve incidir se houver tão somente o reconhecimento
posterior da filiação.
No que concerne à sucessão testamentária, cumpre
elucidar que esta decorre de declarações de última vontade
do de cujus, devendo seguir limites e instrumentos formais
apontados pela norma jurídica.388 A concretização de um
testamento é viável a partir da garantia constitucional à
propriedade privada e da própria autonomia privada no
âmbito do Direito das Sucessões, restando expresso no
Código Civil que as disposições de bens após o falecimento
de certa pessoa somente podem se dar por meio de
testamento ou codicilo.389
Essa liberdade, porém, não é absoluta, na medida
em que, em primeiro lugar, é necessário preservar a
legítima, que diz respeito à metade do patrimônio do
falecido destinado por lei aos seus herdeiros necessários.
No testamento, é possível que haja herdeiros testamentários
para quem o testador deixa a universalidade ou fração de
seu patrimônio e legatários, que recebem um bem
específico.390
Caso haja algum tipo de excesso, é preciso recortar
os atos de liberalidade, restringindo o quinhão do herdeiro
testamentário e, se isso não for suficiente, deve ocorrer a
diminuição do legado.391 Esse ato é denominado redução
387 BRASIL, op. cit., nota 28.
388 LÔBO, op. cit., 2021, p. 93.
389 TEPEDINO; NEVARES; MEIRELES, op. cit., p. 123.
390 DIAS, op. cit., p. 445.
391 Ibidem, p. 446.
150
das cláusulas testamentárias e, com ela, as disposições são
cerceadas até o limite da parte disponível, consoante artigos
1.967 e seguintes do Código Civil de 2002.392
Com base no artigo 1.845 do CC/02,393 são
herdeiros necessários os descendentes, os ascendentes e o
cônjuge, cabendo questionar, nesta oportunidade, se tal
dispositivo engloba ou não os companheiros.
A união estável foi reconhecida constitucionalmente
como entidade familiar no artigo 226, § 3º, da CRFB/88394.
Antes do advento do Código Civil de 2002, a legislação já
garantia àqueles que viviam em união estável com o de
cujus participação no acervo hereditário, em concorrência
com os descendentes e ascendentes, bem como, na ausência
destes, assegurava o recebimento da herança em sua
integralidade.395 Tratava-se da previsão contida no art. 2°,
da Lei n° 8.971/94, redigida de modo muito semelhante ao
então art. 1.611, do Código Civil de 1916.
Em sequência, o Código Civil de 2002 passou a
tratar especificadamente da sucessão do companheiro em
seu artigo 1.790396. Durante certo período, a posição
392 BRASIL, op. cit., nota 28.
393 Ibidem.
394 BRASIL, op. cit., nota 7.
395 PEREIRA, op. cit., p. 140.
396 “A companheira ou o companheiro participará da sucessão do outro,
quanto aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável,
nas condições seguintes: I - se concorrer com filhos comuns, terá direito
a uma quota equivalente à que por lei for atribuída ao filho; II - se
concorrer com descendentes só do autor da herança, tocar-lhe- á a
metade do que couber a cada um daqueles; III - se concorrer com outros
parentes sucessíveis, terá direito a um terço da herança; IV - não
havendo parentes sucessíveis, terá direito à totalidade da herança.”.
BRASIL, op. cit., nota 28.
151
majoritária na doutrina era no sentido de que o companheiro
não poderia ser considerado herdeiro necessário397, de
acordo com a ausência de sua indicação expressa no artigo
1.845 do mesmo diploma legal mencionado398.
Contudo, o artigo 1.790 do Código Civil de 2002399
discriminava o companheiro ao lhe conferir direitos
sucessórios bastante inferiores ao do cônjuge, de modo que
parcela da doutrina400 sustentava que o regime por ele
estabelecido era incompatível com o ordenamento jurídico
por violar os princípios da igualdade, da dignidade humana,
da proporcionalidade e da vedação ao retrocesso.
Neste diapasão, no julgamento do Recurso
Extraordinário 878.694/MG, o Supremo Tribunal
Federal se posicionou no sentido da inconstitucionalidade
do dispositivo anteriormente mencionado e assentou a
seguinte tese: “No sistema constitucional vigente, é
inconstitucional a distinção de regimes sucessórios entre
cônjuges e companheiros, devendo ser aplicado, em ambos
os casos, o regime estabelecido no art. 1.829 do
CC/2002”401.
397 TARTUCE, op. cit., 2021, p. 339-340.
398 BRASIL, op. cit., nota 28.
399 Ibidem.
400 TEPEDINO; NEVARES; MEIRELES, op. cit., p. 65; LÔBO, op.
cit., 2021, p. 71-74; CARVALHO, op. cit., p. 438 e PEREIRA, op. cit.,
2020 b., p. 143-144.
401 BRASIL. Supremo Trib unal Federal. Recurso Extraor dinário nº
878.694/MG. Relator: Ministro Luís Roberto Barroso. Disponível em:
=%22RE%20878694%22&base=acordaos&sinonimo=true&plural=tr
ue&page=1&pageSize=10&sort=_score&sortBy=desc&isAdvanced=t
rue>. Acesso em: 10 out. 2021.
152
Entretanto, não houve uma definição propriamente
dita sobre os companheiros terem ou não se tornado
herdeiros necessários. Caso a resposta fosse negativa,
aqueles não fariam jus à legítima e poderiam ser afastados
se o de cujus, por meio de disposição testamentária,
deixasse os seus bens para outrem, respeitada a quota de
eventuais ascendentes e descendentes.402
Uma grande parte da doutrina, a partir dos
fundamentos expostos na decisão do Recurso
Extraordinário indicado acima, vem manifestando a
posição de que, nos dias atuais, o companheiro deve ser
considerado herdeiro necessário.403 Nesse aspecto, Gustavo
Tepedino, Ana Luiza Maia Nevares e Rose Melo Vencelau
Meireles404 argumentam que o artigo 1.850 do CC/02405
permite que o testador exclua os colaterais da sucessão, não
tratando do companheiro, o que seria mais um motivo para
considerá-lo como herdeiro necessário.
Noutro giro, Mário Luiz Delgado406 sustenta que em
momento algum o Supremo Tribunal Federal teria cuidado
402 CARVALHO, op. cit., 479.
403 DIAS, op. cit., p. 157; TARTUCE, op. cit., 2021, p. 173 -175;
PEREIRA, op. cit., 2020 b., p. 151; CARVALHO, op. cit., p. 479-4 80;
LÔBO, op. cit. 2021, p. 72-75 e TEPEDINO; NEVARES; MEIRELES,
op. cit., p. 111.
404 TEPEDINO; NEVARES; MEIRELES, op. cit., p. 111.
405 BRASIL, op. cit., nota 28.
406 DELGADO, Mário Luiz. A sucessão na união estável após o
julgamento dos embargos de decla ração pelo STF: o companheiro não
se tornou herdeiro necessário. Disponível em:
tigos/1308/A+sucess%C3%A3o+na+uni%C3%A3o+est%C3%A1vel+
ap%C3%B3s+o+julgamento+dos+embargos+de+declara%C3%A7%
C3%A3o+pelo+STF%3A+o+companheiro+n%C3%A3o+se+tornou+
herdeiro+necess%C3%A1rio>. Acesso em: 13 out. 2021.
153
da aplicação do artigo 1.845 do CC/02407 à sucessão da
união estável, razão pela qual não seria cabível afirmar que
teria havido a transformação do companheiro em herdeiro
necessário.
O autor ressalta que deve ser presumida a
constitucionalidade do dispositivo acima apontado, que
exclui o companheiro sobrevivente do rol dos herdeiros
necessários em decorrência da falta de pronunciamento do
Supremo Tribunal Federal sobre o tema, tendo em vista que
não seria possível afastar a sua vigência apenas pela ratio
decidendi dos votos proferidos. Por fim, aduz que não
caberia à doutrina ou à jurisprudência conceder os efeitos
da sociedade conjugal à união estável, visto que isso
ofenderia a liberdade dos indivíduos em não quererem se
sujeitar ao regime do casamento.408
Observa-se, porém, que atualmente prevalece na
doutrina a visão de que os companheiros devem ser
considerados herdeiros necessários, com fulcro nos
fundamentos do Recurso Extraordinário nº 878.694/MG409,
aplicando-se igualmente a eles regras do direito sucessório
do cônjuge. Assim sendo, aqueles fariam jus à legítima,
sendo-lhes assegurado metade do acervo hereditário.
Ainda que não seja cabível dispor do patrimônio
excedendo a legítima dos herdeiros necessários, nada obsta
que o testador beneficie estes com a parte disponível,
hipótese em que não há necessidade de respeito à igualdade
dos quinhões, tendo em vista que esse princípio somente se
407 BRASIL, op. cit., nota 28.
408 DELGADO, op. cit.
409 BRASIL, op. cit., nota 399.
154
aplica à sucessão legítima. Caso isso ocorra, aquele
indivíduo, além de necessário, é considerado herdeiro
testamentário.410
Dessa maneira, o testador pode deixar a metade de
seu patrimônio equivalente à parte disponível para um
de seus quatro genitores sobreviventes, o qual também fará
jus à sua parcela como herdeiro legítimo e necessário.
Destaque-se, ainda, que o testador detém a
faculdade de indicar os bens e valores a compor os quinhões
hereditários, deliberando sobre como deve ocorrer a
partilha, de acordo com o artigo 2.014 do CC/02.411 Essa
situação pode gerar certos conflitos no tratamento de
sucessão dos ascendentes, seja em concorrência com o
cônjuge ou companheiro ou não, na hipótese de
multiparentalidade.
Consoante explicitado no subitem anterior, a norma
jurídica não dispõe especificamente sobre a sucessão
hereditária em relações multiparentais. Tal circunstância
ocasionou diversos questionamentos acerca de como
deveria ser distribuída a herança, tendo parte da doutrina
sustentado ser necessário seguir a literalidade da lei,
enquanto outra compreendeu ser necessária a relativização
das disposições legais para garantir uma maior igualdade
entre os herdeiros.
Por conseguinte, a divisão formulada pelo testador
para facilitar a partilha entre os herdeiros e evitar a
existência de conflitos poderia, na realidade, acabar
culminando no ajuizamento de demandas judiciais por
410 DIAS, op. cit., p. 160.
411 BRASIL, op. cit., nota 28.
155
conta da falta de definição específica sobre o tema. Assim,
evidencia-se, mais uma vez, ser indispensável uma
atualização legislativa abordando essa divisão de modo a
assegurar maior segurança jurídica e observância dos
princípios constitucionais.
Ressalte-se que, em havendo problema na partilha
feita por testamento, deve-se seguir a forma indicada pela
norma jurídica, de acordo com a ressalva trazida na parte
final do próprio artigo 2.014 do Código Civil de 2002.412
Ainda sobre eventuais questões imprecisas
envolvendo a sucessão testamentária em relações
multiparentais, caso se admita o seu reconhecimento post
mortem, é preciso estudar o rompimento do testamento,
previsto no artigo 1.973 do CC/02.413
Esse fenômeno jurídico depende da aferição dos
seguintes requisitos cumulativos: (i) existência de
descendente sucessível não contemplado pelo testamento;
(ii) desconhecimento da existência desse descendente pelo
testador; e (iii) sobrevivência do descendente ao testador.414
Na hipótese da presença deles, o testamento não será
considerado inválido, mas sim ineficaz. Assim sendo, esse
instituto acaba sendo uma exceção ao princípio da
prevalência da vontade do testador, disposto no artigo 1.899
do CC/02415, tendo em vista que se presume que aquele teria
412 Ibidem.
413 Ibidem.
414 LÔBO, op. cit., 2021, p. 105.
415 BRASIL, op. cit., nota 28.
156
feito disposições testamentárias diversas se soubesse da
existência de herdeiros necessários.416
Sustenta Caio Mario417 que o reconhecimento
ulterior de filiação e a procedência do pedido em ação de
investigação de paternidade concedem o status de filho a
determinado individuo, equivalendo tais hipóteses à
superveniência de descendente.
Por exemplo, se um indivíduo tiver sido
reconhecido como genitor de outrem após a procedência do
pedido de uma ação declaratória de multiparentalidade post
mortem, eventual testamento elaborado anteriormente por
aquele deve ser considerado rompido, se demonstrado o
desconhecimento quanto à existência desse herdeiro
necessário.
Vale dizer que se o testador tinha ciência ou a
mínima desconfiança de que possuía o herdeiro necessário
e mesmo assim testou, a hipótese não será de rompimento,
mas sim de redução das cláusulas testamentárias para se
enquadrarem dentro da parte disponível.418
No entanto, com a finalidade de evitar a ocorrência
do rompimento, Luiz Paulo Vieira de Carvalho419 defende
que o testador pode dispor que o testamento deve ser
cumprido mesmo que sobrevenha algum descendente.
Paulo Lôbo420 aduz, ainda, que tal negócio jurídico seria
eficaz se os limites da parte disponível fossem garantidos,
416 DIAS, op. cit., p. 663-664.
417 PEREIRA, op. cit., 2020 b., p. 322.
418 DIAS, op. cit., p. 642.
419 CARVALHO, op. cit., p; 943.
420 LÔBO, op. cit., 2021, p. 104-105.
157
na situação em que há dúvida quanto à subsistência de
herdeiros necessários.
Ainda acerca do tema, o Superior Tribunal de
Justiça afirma que o rompimento do testamento é uma
medida excepcional, admitida apenas se ficar comprovado
que o testador não conhecia o descendente sucessível.
Nessa toada, no julgamento do Recurso Especial
1.615.054/MG, definiu-se que esse fenômeno não resta
concretizado se houver prova em sentido contrário, cabendo
no máximo a redução das cláusulas testamentárias que
invadirem a legítima.421
Naquela situação, determinada mulher descobriu
que possuía um neto após o falecimento de seu filho,
ocasião em que passou a manter um relacionamento
afetuoso com ele. Todavia, após a procedência do pedido
contido na ação de investigação de paternidade, aquela
declarou não possuir descendentes necessários, mesmo
sabendo da existência de seu neto. Em razão disso, a
Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça
compreendeu que prevaleceria a última declaração de
vontade.422
421 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial
1.615.054/MG. Relatora: Ministra Nancy Andrighi. Disponível em:
al-resp-1615054-mg-2016-0190168-8/inteiro-teor-860723444>.
Acesso em: 11 ago. 2021.
422 MIGALHAS. Testamento só pode ser rompido se testador não tinha
conhecimento da existência de descendente. Disponível em: https://
www.migalhas.com.br/quentes/263158/testamento-so-pode-ser-rom pi
do-se-testador-nao-tinha-conhecimento-da-existencia-de-descendente.
Acesso em: 13 ago. 2021.
158
Entretanto, na hipótese em que se ajuíza uma ação
pretendendo o reconhecimento do vínculo socioafetivo e de
uma consequente multiparentalidade post mortem,
compreender o contexto com essa visão pode não ser o mais
adequado.
É preciso se observar que nem sempre as pessoas
têm noção do cabimento da multiparentalidade, ou seja, que
é aceitável o reconhecimento da paternidade socioafetiva
mesmo com o prévio registro de uma paternidade biológica
e vice versa. Se no âmbito jurídico ainda remanescem várias
questões controvertidas a respeito, quiçá no âmbito da
sociedade civil em geral.
Desse modo, ainda que as partes mantenham um
vínculo de afetividade e que se constate a posse de estado
de filho na relação, seria provável que não houvesse o
reconhecimento de parentalidade pelo simples fato de já
constar um pai ou uma mãe no registro, diante da ignorância
quanto ao instituto da multiparentalidade.
Em consequência, esse indivíduo pode acabar
realizando um testamento, declarando nele que não possui
descendentes sucessíveis apenas por não saber que aquele
sujeito poderia ser, de fato, seu filho, mesmo que o
considere como tal.
Isso poderia remeter a uma ideia de que o indivíduo
tinha conhecimento da existência de um descendente
sucessível e mesmo assim testou, o que não é bem o caso.
Assim sendo, em situações concretas que envolvam a
multiparentalidade, torna-se imprescindível examinar se o
testador tinha efetiva ciência de que haveria um vínculo
parental entre ele e o descendente.
159
Contudo, na prática, essa é uma questão é bastante
difícil de ser comprovada, motivo pelo qual seria mais
apropriado presumir que ele não sabia da existência de
descendentes, a fim de preservar com a máxima plenitude o
direito fundamental à herança.
Diante de tudo apresentado nesses três subitens,
percebe-se que vários pontos relacionados aos efeitos
sucessórios decorrentes da multiparentalidade ainda não
foram efetivamente resolvidos, visto que a legislação não
foi devidamente atualizada para tratar do instituto.
Destarte, é fundamental que sejam criadas normas
legais dispondo do assunto ou, se possível, que os temas
sejam consolidados de maneira mais concreta pela
jurisprudência. Logo, em sequência, serão trazidas algumas
propostas de alterações no Código Civil, tendo por
finalidade resolver alguns dos assuntos controvertidos
explicitados e assegurar maior segurança jurídica.
3.4. Propostas legislativas para suprir lacunas no
campo da multiparentalidade
A partir da valorização da afetividade nas relações
familiares, é possível verificar uma redefinição e ampliação
do que se entende por vínculos parentais, tendo tal
fenômeno culminado no reconhecimento da
multiparentalidade. De maneira acertada, a admissão dessa
forma de composição familiar nada mais faz do que refletir
a realidade no registro de nascimento de determinado
160
indivíduo que possui vínculo parental com três ou mais
genitores423.
Não à toa que, em 2013, no IX Congresso de Direito
de Família realizado pelo IBDFAM, já havia sido aprovado
o Enunciado 9, responsável por afirmar que a
multiparentalidade gera efeitos jurídicos424. Não obstante,
remanesceram conflitos quanto à equivalência ou não entre
a filiação socioafetiva e a filiação biológica, sendo a
aceitação da relação multiparental somente consolidada por
meio do Recurso Extraordinário de 898.060/SC425,
vinculante aos demais órgãos jurisdicionais em razão de sua
repercussão geral.
Vale dizer que a jurisprudência uniformiza conflitos
existentes na ordem jurídica e funciona como importante
mecanismo de proteção à segurança jurídica, cujo objetivo
é estabilizar a aplicação dos postulados, dos princípios e das
regras constitucionais e infraconstitucionais nas relações
jurídicas. Isso fortalece as entidades do Estado Democrático
de Direito e gera mais confiabilidade ao ordenamento,
assegurando um estado de paz entre particulares, assim
como entre eles e o Estado. 426
423 DIAS, op. cit., p. 60.
424 INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO DE FAMÍLIA, op. cit.,
nota 53.
425 BRASIL, op. cit., nota 5.
426 DELGADO, José Augusto. A imprevisibilidade da s decisões
judiciária s e seus reflexos na segurança jurídica . Disponível em:
://bdjur.stj.jus.br/jspui/bitstream/2011/74120/A%20IMPREVISIBILI
DADE%20DAS%20DECIS%c3%95ES%20JUDICI%c3%81RIAS%
20E%20SEUS%20REFLEXOS%20NA%20SEGURAN%c3%87A%2
0JUR%c3%8dDICA_delgado.pdf>. Acesso em: 29 jun. 2022, p. 11-13.
161
Noutro giro, a edição de uma norma geral faz com
que certa regra se torne obrigatória ante à força coercitiva
das normas editadas pelo Poder Legislativo, servindo para
garantir a ordem social e que os direitos de todos os
indivíduos sejam preservados. Ademais, cumpre destacar
que que as leis infraconstitucionais retiram seu fundamento
de validade da Constituição, por ser a norma com maior
hierarquia.
Nesse aspecto, independente de outras funções que
possuem, as leis servem para regular a sociedade e
estabelecer os direitos e deveres dos indivíduos, sendo que
as normas infraconstitucionais apenas podem ser aplicadas
se estiverem condizentes com as disposições
constitucionais.
Todavia, elas não são suficientes para dispor acerca
de todas as situações jurídicas visualizadas na realidade,
bem como podem vir a ser genéricas e dizer menos do que
deveriam, causando conflitos que culminam na propositura
de ações judiciais. Desse modo, a jurisprudência almeja
uniformizar eventuais controvérsias e interpretações
envolvendo uma norma jurídica para evitar o ajuizamento
de demandas posteriores.
No campo da multiparentalidade, as normas
jurídicas ainda não foram modificadas para tratar de
aspectos relacionados com o tema. Isso acarreta conflitos
quanto a alguns assuntos que permeiam o instituto, tais
como a possibilidade de caracterização de
multiparentalidade se constatado o interesse puramente
patrimonial das partes ou em casos de adoção e reprodução
assistida heteróloga, o direito sucessório dos ascendentes,
162
em concorrência ou não com o cônjuge ou companheiro,
dentre outros.
No âmbito do Direito de Sucessões, o Projeto de Lei
nº 5.774/2019427 foi apresentado para modificar a previsão
legal relativa à sucessão dos ascendentes, em concorrência
com cônjuge ou companheiro, estabelecendo o seu artigo 2º
que:
Art.2º A Lei 10.406 de 10 de
fevereiro de 2002 passa a vigorar com
a seguinte redação:
“Art. 1.837. Concorrendo com
ascendentes em primeiro grau, ao
cônjuge tocará quinhão igual ao que a
eles couber; caber-lhe-á a metade da
herança se houver um só ascendente,
ou se maior for aquele grau.”
Apesar de sua importância para o Direito de
Sucessões brasileiro, o Projeto de Lei não sofreu qualquer
movimentação desde novembro de 2019, data em que foi
remetido às Comissões de Seguridade Social e Família e
Constituição e Justiça e de Cidadania.428
Com a devida vênia, já se aferiu anteriormente que
a sucessão legítima em favor dos ascendentes, em
concorrência com o cônjuge ou companheiro, deve ser feita
de maneira igualitária e observando-se as linhas
ascendentes existentes, conforme defendem Gustavo
427 BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei nº 5.774/2019.
Disponível em:
tramitacao?idProposicao=2227740>. Acesso em: 20 ago. 2021.
428 Ibidem.
163
Tepedino, Ana Luiza Maia Nevares e Rose Melo Vencelau
Meireles429.
Consoante já mencionado, essa percepção de que
não há falar apenas em linhas materna e paterna, mas sim
em linhas ascendentes, foi estampada no Enunciado nº 676
da IX Jornada de Direito Civil do CJF430, oportunidade na
qual se verificou a necessidade de se fazer uma leitura
diferente do artigo 1.836, § 2º, do Código Civil431.
Sob esta percepção, caso determinado sujeito venha
a óbito e deixe um companheiro, dois pais e uma mãe, a sua
herança deve ser dividida de maneira isonômica entre
aquele, a linha paterna “A”, a linha paterna “B” e a linha
materna.
Note-se, portanto, que o Enunciado nº 676 da IX
Jornada de Direito Civil do CJF432 e o Enunciado nº 642 da
VIII Jornada de Direito Civil do CJF433 trazem uma
interpretação que assegura uma divisão mais igualitária do
acervo hereditário, devendo ser utilizada na sucessão
legítima entre os ascendentes, tanto nos casos com
concorrência como nos sem concorrência com cônjuge ou
companheiro.
Essa visão, um tanto mais progressista quanto às
composições familiares, não está livre de posições
contrárias, partidárias da aplicação literal dos dispositivos
concernentes à sucessão dos ascendentes, em concorrência
429 TEPEDINO; NEVARES; MEIRELES, op. cit., p. 68.
430 BRASIL, op. cit., nota 368.
431 BRASIL, op. cit., nota 28.
432 BRASIL, op. cit., nota 368
433 BRASIL, op. cit., nota 344.
164
com cônjuge ou companheiro434, e à sucessão dos
ascendentes sem essa concorrência435.
Por certo, os enunciados e os precedentes
vinculantes dos Tribunais Superiores representam
instrumentos extremamente importantes, consolidando
entendimentos que muitas das vezes não serão aprovados
pelo Poder Legislativo, até por um conservadorismo ainda
existente entre os parlamentares. Sem aqueles, temas como,
por exemplo, o cabimento de união homoafetiva, a
necessidade de a sucessão do companheiro ser igual ao do
cônjuge e a possibilidade de reconhecimento da
multiparentalidade não receberiam um tratamento jurídico
adequado e os conflitos sobre eles iriam perseverar.
Desse modo, eles preservam princípios
constitucionais da afetividade, da isonomia, da dignidade
da pessoa humana e do melhor interesse da criança e do
adolescente. Apesar disso, ao longo do presente livro,
observou-se que alguns assuntos ainda trazem grandes
dúvidas e discussões, capazes de despertar divergências nos
âmbitos doutrinário e judicial, o que poderia ser
naturalmente evitado pela promoção de simples inovações
normativas436.
Em que pese seu enorme valor na aplicação do
Direito, decisões judiciais podem ser imprevisíveis, o que
tem o potencial de causar insegurança jurídica e de
434 GOZZO, op. cit.
435 CARVALHO, op. cit., 367-368.
436 AZEVEDO, Lídia. A possibilidade jur ídica do r econhecimento da
multiparenta lidade. Dispon ível em: possibilidade jurídica do
reconhecimento da multiparentalidade>. Acesso em: 28 jun. 2022.
165
contribuir com o enfraquecimento do regime democrático.
Nesse passo, a inexistência de uniformidade de decisões
judiciais ocasiona uma situação de intranquilidade e
aumenta a possibilidade de embates jurídicos, ofendendo os
princípios da segurança jurídica, da dignidade da pessoa
humana e da estabilidade das instituições.437
Destaque-se o que lecionava José Augusto Delgado:
Segurança jurídica representa
confiabilidade no Sistema Legal
aplicado. Este deve traduzir ordem e
estabilidade, com base na observância
dos princípios da igualdade, da
legalidade, da moralidade, da
irretroatividade de leis, de respeito aos
direitos adquiridos, da inexistência de
julgamentos parciais, da não mudança
injustificada de orientação
jurisprudencial, de respeito à coisa
julgada quando não inconstitucional,
ao ato jurídico perfeito, à concessão de
ampla defesa e do contraditório, da
aplicação da justiça social, da
independência do Poder Judiciário, da
valorização dos direitos da cidadania e
da dignidade humana438.
É de se apontar, ainda, que o efeito vinculante
decorrente de uma decisão proferida pelo STF em recursos
com repercussão geral, em ação declaratória de
constitucionalidade ou em ação direta de
437 DELGADO, op. cit., p. 4.
438 Ibidem, p. 16.
166
inconstitucionalidade não atingem o Poder Legislativo.
Desse modo, uma lei poderia advir dispondo de forma
totalmente oposta ao entendimento fixado pela Corte
Constitucional, configurando o denominado efeito
backlash.
Malgrado a possibilidade de isso ocorrer não ser
grande, de toda forma o STF somente poderia sedimentar
uma posição caso fosse previamente provocado.
Considerando a ausência de norma legal dispondo sobre a
multiparentalidade, seria necessário que existissem ações
judiciais em curso abarcando todos os pontos mais
controvertidos, as quais precisariam seguir todo o trâmite
processual até chegarem a Corte para julgamento.
Por conseguinte, constata-se que edição de uma lei
que dispusesse sobre os aspectos ainda hoje controvertidos
ou que podem vir a ser objeto de dubiedade nos casos de
multiparentalidade (ou, pelo menos, de alguns deles), é a
maneira mais eficaz de proporcionar maior proteção
jurídica a tais vínculos familiares. Com isso, não haveria
uma sujeição a imprevisibilidade de decisões judiciais nem
se dependeria de uma consolidação jurisprudencial que
viesse a vincular os Tribunais, que poderia demorar anos
para ocorrer.
É sabido que a mera edição de lei não soluciona
todas as controvérsias presentes e futuras no campo na
multiparentalidade. Ainda assim, a introdução de
dispositivos legais à lei civil para tratar desse modelo
familiar se mostra fundamental para conferir maior
segurança jurídica, visto que a criação da norma implica na
redução de posições destoantes e de maiores discussões
167
com relação a aspectos não tratados no julgamento com
repercussão geral do STF.
Destaque-se que o Projeto de Lei nº 5.774/2019,
acima mencionado, abarcou tão somente um dos aspectos
controvertidos envolvendo a multiparentalidade, sendo
imprescindível a implementação de outros dispositivos que
abordem outras questões de igual importância para o
instituto.
Nesse sentido, sem pretender esgotar as discussões
sobre a matéria, busca-se, então, indicar algumas
possibilidades de redação com o propósito de alterar o
Código Civil em vigor para dispor sobre determinados
pontos envolvendo a multiparentalidade.
Primeiramente, é de se sugerir a inclusão de um
dispositivo no Código Civil de 2002, especificamente na
parte das disposições gerais sobre as relações de parentesco,
isto é, no Subtítulo II, Capítulo I, que poderia ser redigido
do seguinte modo: “Art. 1.593-A. A multiparentalidade
deve ser reconhecida a partir da constatação da existência
de vínculos parentais com três ou mais indivíduos,
atendidos os princípios da afetividade e do melhor interesse
da criança e do adolescente. §1º - Em situações
excepcionais, a serem apuradas de acordo com o caso
concreto, deve ser reconhecida a multiparentalidade mesmo
que tenha havido adoção ou inseminação assistida
heteróloga. §2º - Não há de ser reconhecida a relação
multiparental nas hipóteses em que fique efetivamente
provado o interesse meramente patrimonial, caso em que
será salvaguardado apenas eventual direito à identidade
168
genética. §3º - É cabível a multiparentalidade post mortem,
observada a restrição do parágrafo anterior.”
Outrossim, propõe-se, ainda, duas alterações nos
dispositivos envolvendo sucessão legítima em favor de
ascendentes e em benefício destes em concorrência com o
cônjuge ou companheiro. A primeira seria no parágrafo 2º
do artigo 1.836 do Código Civil de 2002, que poderia passar
a ter uma redação nessa esteira: Art. 1.836. (...). § 2°. Na
hipótese de multiparentalidade, havendo igualdade em grau
e diversidade em linha, o quinhão dos ascendentes será
dividido de acordo com a quantidade de linhas de
ascendentes ainda existente.”
A segunda modificação se daria no artigo 1.837 do
Código Civil de 2002, sendo plausível que ele viesse a
prever, por exemplo: Art. 1.837. Concorrendo com
ascendentes, ao cônjuge ou companheiro tocará quinhão
igual ao que a eles couber, devendo-se observar a
quantidade de linhas ascendentes existentes.”
Por meio de tais mudanças no Código Civil, tem-se
como objetivo primordial encerrar algumas discussões que
subsistem sobre pontos relativos à multiparentalidade. Com
isso, assegurar-se-ia maior segurança jurídica a esse modelo
familiar, o que é crucial para também garantir a máxima
proteção aos princípios constitucionais da afetividade, da
dignidade da pessoa humana e do melhor interesse da
criança e do adolescente.

Para continuar a ler

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