Meios de reconhecimento da multiparentalidade

AutorGuilherme Calmon Nogueira da Gama, Heloisa Alves de Paiva Josephson
Páginas63-106
63
Capítulo 2
MEIOS DE RECONHECIMENTO DA
MULTIPARENTALIDADE
O reconhecimento da multiparentalidade pelo
Supremo Tribunal Federal foi uma grande inovação no
Direito de Família, na medida em que proporcionou maior
segurança jurídica a modelos familiares já perceptíveis no
ambiente fático e social. No julgamento paradigma - RE nº
898.060/SC110 - o STF determinou que o prévio registro da
paternidade socioafetiva não obsta a perquirição da filiação
biológica, sendo desnecessária a anulação do primeiro por
erro ou falsidade.111
Apesar disso, ainda não foram feitas adaptações
legais para tratar do instituto, de modo que as decisões que
lhes são favoráveis resultam do emprego de princípios
explícitos e implícitos contidos na Constituição, em
especial os da afetividade, do melhor interesse da criança e
do adolescente e da dignidade da pessoa humana. É preciso,
portanto, que haja uma atualização no ordenamento legal
para acompanhar a sociedade atual e facilitar o
reconhecimento da multiparentalidade.112 Afinal, a
atividade de interpretação e de aplicação das normas
110 BRASIL, op. cit., nota 6.
111 PEREIRA, op. cit., p. 404-405.
112 LIMA, op. cit.
64
jurídicas pelo Poder Judiciário brasileiro se insere no
âmbito do Direito e, por isso, é fundamental que o Poder
Legislativo promova as devidas adequações normativas
para espancar qualquer dúvida a respeito do instituto e dos
seus efeitos.
Enquanto isso não ocorre, torna-se imprescindível
examinar pormenorizadamente os meios possíveis, seja na
via judicial ou extrajudicial, de reconhecimento da relação
multiparental. Isso será concretizado por um estudo
doutrinário e jurisprudencial sobre o tema e pela análise das
disposições do Provimento nº 63/2017113, alterado pelo
Provimento nº 83/2019114, ambos do CNJ, assim como de
outras normas já vigentes.
O Código Civil de 2002, em seu artigo 1.607115,
estipula a regra de que somente é viável o reconhecimento
da parentalidade nas hipóteses de filhos havidos fora do
casamento, ou seja, em que não incide a presunção de
filiação.116 Paulo Lôbo117, porém, afirma que, atualmente,
confere-se uma maior relevância à afetividade dos
membros da relação familiar, ocasionando o
redirecionamento da presunção pater is est, decorrente da
113 BRASIL. Corregedoria Nacional De Justiça. Provimento nº 63, de
14 de novembro de 2017. Disponível em:
detalhar/2525>. Acesso em: 9 jan. 2021.
114 BRASIL. Corregedoria Nacional De Justiça. Provimento nº 83, de
14 de agosto de 2019. Disponível em:
lhar/ 2975>. Acesso em: 10 jan. 2021.
115 BRASIL, op. cit., nota 28.
116 TEPEDINO; TEIXEIRA, op. cit., p. 239.
117 LÔBO, op. cit., 2020, p. 229.
65
origem matrimonial, a qual passa a derivar do estado de
filiação, independente da origem ou da concepção.
No que toca à multiparentalidade, segundo uma
interpretação sistemática e analógica das normas, é
plenamente legítimo que seu reconhecimento também seja
feito de maneira voluntária ou forçada, com o fito de
assegurar o melhor interesse do filho, visando o
assentamento das filiações biológica e socioafetiva.
Em termos introdutórios, cabe esclarecer que o ato
de reconhecimento voluntário é irrevogável, incondicional
e personalíssimo, podendo ser feito no próprio registro de
nascimento, em escritura pública ou documento particular,
em testamento e, ainda, ser manifestado perante o próprio
Poder Judiciário. Por outro lado, o reconhecimento forçado
corresponde a um direito indisponível do filho e advém de
sentença judicial, razão pela qual depende da propositura de
ação de investigação de paternidade ou maternidade.118
Nesse segmento do livro, será realizada uma
reflexão acerca das formas de reconhecimento extrajudicial
e judicial da multiparentalidade.
2.1. Reconhecimento extrajudicial de
multiparentalidade
Em uma abordagem inicial, cabe mencionar que,
nos casos em que não há incidência da presunção do artigo
1.597 do Código Civil de 2002119, o reconhecimento
voluntário de parentalidade se dá pelos meios previstos no
118 TEPEDINO; TEIXEIRA, op. cit., p. 270-276.
119 BRASIL, op. cit., nota 28.
66
artigo 1.609 do mesmo diploma legal120, sendo eles: (i)
registro de nascimento; (ii) reconhecimento indireto; (iii)
testamento ou (iv) reconhecimento incidental, perante o
juiz.121 Tal já era a previsão contida no Estatuto da Criança
e do Adolescente (Lei n° 8.069/90, art. 26) e na Lei n°
8.560/92 (art. 1°).
O julgamento do RE nº 898.060/SC122, já explicado
anteriormente, trouxe uma mudança de paradigma ao
mundo jurídico, dado que acolheu a tese da
multiparentalidade e determinou que equivalência
jurídica entre as filiações biológica e socioafetiva. Assim
sendo, deve-se perguntar se os mecanismos supracitados
podem ser aplicados ao referido instituto e realçar eventuais
obstáculos que podem surgir.
Nesse contexto, o Conselho Nacional de Justiça
editou, em 2017, o Provimento de nº 63123, estabelecendo o
procedimento de reconhecimento extrajudicial da
parentalidade socioafetiva e autorizando o registro
extrajudicial da multiparentalidade.124 O referido ato,
120 Ibidem.
121 LÔBO, op. cit., 2020, p. 274-277.
122 BRASIL, op. cit., nota 6.
123 BRASIL, op. cit., nota 113.
124 FRANCO, Karina Barbosa; EHRARDT JÚNIOR, Marcos.
Reconhecimento extrajudicia l da filiaçã o socioafetiva e
multiparenta lidade: comentários ao Provimento nº 63, de 14.11.17, do
CNJ. Revista Bra sileira de Direito Civil RBDCivil, Belo Horizonte,
v. 17, p. 223-237, jul./set. 2018. Disponível em:
com/search?q=Reconhecimento+extrajudicial+da+filia%C3%A7%C3
%A3o+socioafetiva+e+multiparentalidade%3A+coment%C3%A1rios
+ao+Provimento+n%C2%BA+63&oq=Reconhecimento+etrajudicial+
da+filia%C3%A7%C3%A3o+socioafetiva+e+multiparentalidade%3A
+coment%C3%A1rios+ao+Provimento+n%C2%BA+63&aqs=chrome
67
porém, foi posteriormente modificado pelo Provimento nº
83, de 2019125, que pretendeu restringir as hipóteses de
cabimento da formalização do vínculo pela via extrajudicial
e reforçar o controle.126
Esses Provimentos procuraram desburocratizar
alguns institutos do Direito de Família, propiciando que o
reconhecimento da filiação socioafetiva, decorrente da
posse de estado de filho, pudesse ser feita no próprio
cartório de registro civil das pessoas naturais, ao invés de
depender de processo judicial.127
Em primeiro lugar, dispõe o artigo 10 do
Provimento 63/2017, alterado pelo Provimento
83/2019, in verbis:
Art. 10. O reconhecimento voluntário
da paternidade ou da maternidade
socioafetiva de pessoas acima de 12
anos será autorizado perante os oficiais
de registro civil das pessoas naturais.
§ 1º O reconhecimento voluntário da
paternidade ou maternidade será
irrevogável, somente podendo ser
desconstituído pela via judicial, nas
..69i57.1110j0j7&sourceid=chrome&ie=UTF-8>. Acesso em: 1 mar.
2021, p. 232-236.
125 BRASIL, op. cit., nota 114.
126 CALDERÓN, Ricardo. Pr imeiras Impressões sobre o Provimento
83 do CNJ. Disponível em:
les/FINAL%20Coment%C3%A1rios%20Provimento%2083-20 19%2
0CNJ%20(revisado%2021%20agosto)%20-%20calderon%20-%20FI
NAL%20-%20com%20refer%C 3%AAncias .pdf>. Acesso em: 5 jan.
2021.
127 FRANCO, op. cit., p. 227.
68
hipóteses de vício de vontade, fraude
ou simulação.
§ Poderão requerer o
reconhecimento da paternidade ou
maternidade socioafetiva de filho os
maiores de dezoito anos de idade,
independentemente do estado civil.
§ Não poderão reconhecer a
paternidade ou maternidade
socioafetiva os irmãos entre si nem os
ascendentes.
§ 4º O pretenso pai ou mãe será pelo
menos dezesseis anos mais velho que o
filho a ser reconhecido. 128
Insta salientar que a redação original não trazia
limitação etária para tal registro, o que preocupava os
estudiosos do Direito. Isso porque a remodelagem da
filiação de crianças muito pequenas sem a interferência do
Poder Judiciário poderia facilitar casos de adoção à
brasileira ou de pessoas que pretendem furar a fila de
adoção. Dessa forma, passou-se a compreender que apenas
adolescentes e adultos poderiam usar da via extrajudicial
para atestar vínculos parentais afetivos, devendo as crianças
se valerem do meio judicial para tal reconhecimento.129
Não obstante tenha adotado uma interpretação
restritiva da tese do Tema de Repercussão Geral nº 622, de
que esta somente incide nas situações em que o
reconhecimento da filiação biológica é buscado após já
existir filiação socioafetiva registrada e não na hipótese
128 BRASIL, op. cit., nota 114.
129 CALDERÓN, op. cit.
69
inversa, o Tribunal de Justiça de São Paulo já proferiu
decisão levando em consideração as modificações trazidas
no Provimento nº 83/2019.130
Em razão da criação do limite etário de 12 (doze)
anos para reconhecimento extrajudicial da paternidade
socioafetiva, o Tribunal manteve a decisão do magistrado
de primeiro grau na qual se determinava a elaboração de
estudo social em detrimento da inclusão de pronto da
paternidade socioafetiva em registro após concordância das
partes e do Ministério Público, visto que a criança
envolvida não possuía a idade mínima.131
Destarte, ressaltando que essa mudança serve para
garantir a primazia do bem estar da criança, decidiu-se que
não havia como se julgar imediatamente procedente o
pedido sem dilação probatória naquele caso concreto, ainda
que tenha havido anuência das partes na inclusão da
filiação.132
Após ter havido indagações acerca da qualidade dos
vínculos socioafetivos aptos a serem concretizados pela via
extrajudicial133, o artigo 10-A foi acrescentado pelo
Provimento nº 83/2019, o qual fixa que aqueles deveriam
ser estáveis e exteriorizados socialmente.134 Esse
130 BRASIL. T ribunal de J ustiça do Est ado de São Paulo. Agra vo de
Instru mento 2242928 -84.2018.8.26.0000. Rel atora:
Desembargad ora Ana Maria Baldy . Disponível em: < https://tj-
sp.jusbrasil.com .br/jurisprudencia/778103572/agravo -de-instrumento-
ai-22429288420198260000-sp-2242928-8420198260000/inteiro-teor-
778103591>. Acesso em: 10 jan. 2021.
131 Ibidem.
132 Ibidem.
133 CALDERÓN, op. cit.
134 BRASIL, op. cit., nota 114.
70
dispositivo possui íntima relação com a necessidade de
comprovação, para fins da filiação socioafetiva, dos três
elementos da posse de estado de filho, quais sejam o
tratamento (tractatio), a reputação (reputatio) e o nome
(nominatio)135. Nesse aspecto, havendo permanência
contínua e duradoura do vínculo e reconhecimento dele pela
coletividade, estão presentes os atributos da estabilidade e
da exteriorização no meio social.136 A exigência do mesmo
sobrenome (nome de família) foi relativizada até em razão
das mudanças dos costumes na atualidade.
Logo, cabe ao registrador confirmar o vínculo
socioafetivo por uma apuração objetiva dos elementos
concretos à sua disposição e, para tanto, o requerente deve
provar a presença da afetividade por todos os meios em
direito admitidos ou justificar a impossibilidade de
apresentar essa documentação. Nesta última situação,
porém, o registrador deve indicar como foi averiguada a
socioafetividade e, em tendo dúvidas, não poderá praticar o
ato e deverá remeter o procedimento ao Poder Judiciário.137
Em momento anterior à vigência do Provimento nº
83/2019, alguns críticos suscitavam que certas regras do
Provimento anterior criavam um risco devido à
135 TARTUCE, Flávio. O provimento 83/2019 do Conselho Naciona l
de Justiça e o novo tratamento do reconhecimento extra judicial da
paren talidade socioafetiva. Disponível em:
gos/1353/O+provimento+832019+do+Conselho+Nacional+de+Justi%
C3%A7a+e+o+novo+tratamento+do+reconhecimento+extrajudicial+d
a+parentalidade+socioafetiva+#:~:text=No%20%C3%BAltimo%20di
a%2014%20de,reconhecimento%20extrajudicial%20da%20parentalid
ade%20socioafetiva.>. Acesso em: 10 jan. 2021.
136 CALDERÓN, op. cit.
137 BRASIL, op. cit., nota 114.
71
inviabilidade de investigação posterior dos elementos que
teriam possibilitado o registro, alegando que a declaração
dos envolvidos não seria suficiente.138 Ricardo Calderón
manifesta uma posição contrária, destacando uma
contradição na formulação de tais exigências:
Para o reconhecimento biológico de
uma paternidade tardia no cartório de
registro civil nada se exige, bastando a
auto-declaração do pretenso pai. Ou
seja, a mera alegação pelo interessado
de uma existência de vínculo biológico
- ausente de qualquer outro elemento -
é entendida como suficiente para
estabelecer uma paternidade biológica
e gerar o seu respectivo registro
(mesmo de crianças de tenra idade).
Para estes casos não se ouve vozes a
defender a intervenção do Ministério
Público. Salta aos olhos que para estas
situações de alegado vínculo biológico
nada se exige (nunca se cogitou de se
solicitar um exame em DNA para estas
paternidades biológicas tardias e nem
mesmo se aventou da participação do
MP no ato). Mas para o registro de
relações socioafetivas muitos
apresentam diversos óbices e
exigências, como se está a perceber139.
De todo modo, para solucionar controvérsias, o
Provimento nº 83/2019 previu, no artigo 10-A, § 4º, que os
138 CALDERÓN, op. cit.
139 Ibidem.
72
documentos colhidos para avaliação do vínculo
socioafetivo deveriam ser arquivados junto ao
requerimento.140 Assim, ainda que gere maior formalidade,
essa opção concede maior segurança jurídica e não causa
grande prejuízo às partes que desejam usar da via
extrajudicial.141
Antes das modificações trazidas pelo Provimento nº
83/2019, também não havia o dever de participação do
Ministério Público nesse procedimento. No entanto, com
fulcro nos artigos 129 da CRFB/88142 c/c 201, inciso VIII,
do ECA143, é função precípua da citada instituição o zelo
pelos direitos e garantias da criança e do adolescente, tendo
por obrigação promover as medidas judiciais e
extrajudiciais cabíveis para tanto.
Neste diapasão, o artigo 11, § 9º, do Provimento nº
63/2017 passou a dispor que, após cumpridos os requisitos
para registro da paternidade ou maternidade, é incumbência
do MP elaborar parecer favorável ou desfavorável144, sendo
que, neste último caso, os interessados deveriam recorrer ao
Poder Judiciário para o reconhecimento da filiação.
Ademais, enfatize-se que um dos “considerandos”
indicados no início do Provimento145 reproduz
140 BRASIL, op. cit., nota 114.
141 CALDERÓN, op. cit.
142 BRASIL, op. cit., nota 7.
143 BRASIL, op. cit., nota 19.
144 BRASIL, op. cit., nota 114.
145 BRASIL, op. cit., nota 113. “CONSIDERANDO o fato de que a
paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não
impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado
na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios (Supremo
Tribunal Federal RE n. 898.060/SC)”.
73
expressamente o Tema nº 622 do STF, o qual admite a
multiparentalidade, conforme já elucidado146. Nessa toada,
um dos dispositivos de grande importância para o presente
do trabalho é o artigo 14 do Provimento nº 63/2017, que
prevê em seu caput: “O reconhecimento da paternidade ou
maternidade socioafetiva somente poderá ser realizado de
forma unilateral e não implicará o registro de mais de dois
pais e de duas mães no campo FILIAÇÃO no assento de
nascimento”.147
Com intuito de esclarecer o termo “unilateral”, o
Provimento 83/2019 acresceu os parágrafos e ao
artigo 14, os quais trazem uma limitação e permitem apenas
inclusão de um ascendente socioafetivo na via extrajudicial,
seja do lado materno ou do paterno. Vale dizer que, se os
indivíduos desejarem inserir mais de um ascendente
socioafetivo, o pedido deve ser feito judicialmente.148
Embora ainda existam autores, como Paulo Lôbo149,
argumentando ser a decisão judicial prévia um dos
requisitos para a multiparentalidade, Flávio Tartuce150 e
Ricardo Calderón151 aduzem que os dispositivos
supracitados evidenciam o cabimento de registro da
multiparentalidade em cartório, desde que atenda aos
requisitos normativos, o que mais parece ter sido o intuito
da Corregedoria Nacional de Justiça.
146 BRASIL, op. cit., nota 6.
147 BRASIL, op. cit., nota 113.
148 BRASIL, op. cit., nota 114.
149 LÔBO, op. cit., 2020, p. 239-240.
150 TARTUCE, op. cit.
151 CALDERÓN, op. cit.
74
Diante do exposto, repara-se que o legislador almeja
amparar modelos familiares existentes na realidade fática
mais comuns e singelos, que costumam corresponder a
presença de um único ascendente socioafetivo, criando
obstáculos às pretensões que camuflam a adoção à
brasileira.152
Além disso, evitam-se vínculos sucessivos, que são
improváveis de acontecerem na prática, haja vista que é
preciso certo período de convivência para caracterização da
posse de estado de filho. Consequentemente, a inserção de
um segundo genitor socioafetivo dependerá do ingresso de
uma ação judicial pleiteando tal reconhecimento, com o
consequente julgamento de procedência do pedido.153
Sublinhe-se, ainda, que, nos termos do artigo 13 do
Provimento nº 63/2017, a via extrajudicial não pode ser
utilizada se já houver processo judicial em curso para
discutir o direito à filiação ou adoção154. E, ainda, o artigo
15 do mesmo Provimento explicita que o reconhecimento
espontâneo da paternidade ou maternidade socioafetiva não
impede o ajuizamento de demanda judicial para discussão
sobre a verdade biológica. 155
Considerando as explanações trazidas, constata-se
que as disposições dos Provimentos da Corregedoria
Nacional de Justiça facilitaram o reconhecimento
extrajudicial da multiparentalidade, sendo que as restrições
neles contidas procuraram preservar a segurança jurídica e
152 Ibidem.
153 TARTUCE, op. cit.
154 BRASIL. op. cit., nota 113.
155 Ibidem.
75
salvaguardar o melhor interesse da criança e do
adolescente, consagrado universalmente no artigo 3º da
Em complementação ao estudo dos Provimentos de
nº 63157 e nº 83158, ambos do CNJ, o Tribunal de Justiça do
Estado de São Paulo também já definiu ser viável a
homologação de acordo pactuado extrajudicialmente entre
pessoas capazes no qual se acordou a inclusão do pai
biológico sem a retirada do pai socioafetivo do registro159,
configurando uma relação multiparental.
Nesta parte do trabalho, cumpre analisar os
institutos do reconhecimento voluntário, previsto no artigo
1.609 do CC/02, e da presunção da paternidade sob o
prisma da multiparentalidade, dando maior enfoque as
hipóteses dos três primeiros incisos160, as quais são
156 BRASIL. Convenção sobre os Direitos da Criança s. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/d99710.htm.
Acesso em: 3 fev. 2021.
157 BRASIL, op. cit., nota 113.
158 BRASIL, op. cit., nota 114.
159 BRASIL. Tribunal de Justiç a do Estado de São Paulo. Apelação
Cível 1001850-22-2017.8.26.0000, Relator: Desembargador
Alexandre Marcondes. Disponível em:
jurisprudencia/772320505/apelacao-civel-ac-10018502220178260020
-sp-1001850-2220178260020/inteiro-teor-772320524>. Acesso em: 29
mar. 2021.
160 BRASIL, op. cit., nota 28. “O reconhecimento dos filho s havidos
fora do casamento é irrevogável e será feito: I - no registro do
nascimento; II - por escritura pública ou escrito particular, a ser
arquivado em cartório; III - por testamento, ainda que incidentalmente
manifestado; IV - por manifestação direta e expressa perante o juiz,
ainda que o reconhecimento não haja sido o objeto único e principal do
ato que o contém. Parágrafo único. O reconhecimento pode preceder o
nascimento do filho ou ser posterior ao seu falecimento, se ele deixar
descendentes.”.
76
realizadas na via extrajudicial. Insta mencionar que é
permitido que tal ato seja feito antes do nascimento do filho,
mesmo que somente produza efeitos após tal acontecimento
no mundo dos fatos.161
A primeira forma se dá no próprio registro de
nascimento, oportunidade em que o pai e/ou a mãe
declaram formalmente a filiação perante o oficial de
registro, na presença de testemunhas. Similarmente, essa
manifestação também pode ocorrer na modalidade
incidental, ou seja, de maneira clara e indiscutível em
escritura pública ou documento particular, o qual deverá ser
averbado no respectivo registro de nascimento.162
Entretanto, há certa controvérsia doutrinária sobre a
obrigatoriedade do consentimento expresso do filho maior
de idade nessas hipóteses. Enquanto a resposta é afirmativa
para Caio Mario163, Flávio Tartuce164 e Paulo Lôbo165
sustentam que o ato é válido independentemente de
concordância, sendo isso necessário apenas para dar
eficácia ao feito.
O Provimento de nº 83/2019 do CNJ166 deixou
expressa a autorização para averbação da
multiparentalidade no registro de nascimento, com a
inserção de, no máximo, um ascendente socioafetivo no
lado materno e/ou no lado paterno, motivo pelo qual os
161 PEREIRA, op. cit., p. 400.
162 LÔBO, op. cit., 2020, p. 274-275.
163 PEREIRA, op. cit., p. 406.
164 TARTUCE, op. cit., 2020, p. 528-529.
165 LÔBO, op. cit., 2020, p. 284.
166 BRASIL, op. cit., nota 114.
77
incisos I e II do artigo 1.609 do CC/02167 são plenamente
aplicáveis.
O reconhecimento de paternidade também pode ser
reproduzido em testamento, bastando que o testador afirme,
de modo expresso e direto, que certa pessoa é sua filha. Esse
ato é irrevogável e não é contaminado por eventual
invalidação posterior do negócio jurídico168. Apesar de
Paulo Lôbo169 entender que esses instrumentos pressupõem
a inexistência de outra paternidade no registro para que seus
efeitos sejam produzidos, eles devem ser adaptados ante a
possibilidade de existência de uma relação multiparental.
Isso porque não há óbice legal para reconhecimento
de parentalidade biológica ou socioafetiva por intermédio
de testamento, conforme disposto no artigo 11, § 8º, do
Provimento nº 63/2017 do CNJ170, razão pela qual a
multiparentalidade pode advir do negócio jurídico
unilateral mencionado, mas algumas questões ainda devem
ser tratadas.
A parentalidade socioafetiva se consubstancia na
posse de estado de filho, a qual possui como elementos o
tratamento (tr actacio), a fama (r epuctacio) e o nome
(nominatio).171 Logo, a verificação da presença destes
elementos demanda um certo tempo de convivência entre o
pai (ou a mãe) e seu filho, para fins de constatação do real
intuito das partes em constituir uma relação parental.
167 BRASIL, op. cit., nota 28.
168 Ibidem, p. 276-277.
169 Ibidem.
170 BRASIL, op. cit., nota 113.
171 TARTUCE, op. cit., 2020, p. 504-505.
78
Dessa maneira, é perceptível que são distintos os
momentos de estabelecimentos dos vínculos parentais. Por
um lado, a filiação biológica se identifica e surge da
concepção, ao passo que a filiação socioafetiva decorre da
averiguação dos três elementos supracitados, que
dependem de algum tempo para se efetivarem na realidade.
Suponha-se uma situação na qual há uma união
estável entre um casal heterossexual e a mulher acabe
engravidando de um terceiro com o qual manteve uma
relação sexual. Durante a gestação, o companheiro
confecciona um testamento reconhecendo o nascituro como
seu filho, mas acaba falecendo antes mesmo de seu
nascimento. Nesse caso, questiona-se: é cabível a
manutenção de ambos como genitores da criança logo em
seguida ao seu nascimento?
Os artigos 1.609, parágrafo único, do CC/02172 e 26,
parágrafo único, do Estatuto da Criança e do Adolescente173
permitem o reconhecimento de paternidade antes do
nascimento. No entanto, na situação acima, não houve o
cumprimento dos elementos para caracterização da posse
de estado de filho, não havendo falar em filiação
socioafetiva.
Destaque-se que, mesmo que assim desejasse, o
companheiro não poderia reconhecer o nascituro como seu
filho, tendo conhecimento e aceitando a sua origem
biológica, uma vez que não se aplica a técnica da presunção
de paternidade prevista no artigo 1.597 do CC/02174.
172 BRASIL, op. cit., nota 28.
173 BRASIL, op. cit., nota 19.
174 BRASIL, op. cit., nota 28.
79
Ademais, se ficasse provado que ele efetuou o
reconhecimento por ter sido enganado, o testamento
também poderia ser invalidado. Assim sendo, tal ato
somente pode ser feito pelo companheiro se for baseado na
verdade biológica ou na verdade socioafetiva.
É interessante, porém, explorar os fundamentos
jurídicos utilizados no debate judicial desenvolvido em
grau de apelação no Tribunal de Justiça do Estado de Minas
Gerais, o qual envolveu caso de dupla maternidade. Nele,
adequadamente frisou-se que todas as formas de união que
gerem a formação de uma entidade familiar merecem
proteção constitucional e, ao trazer uma abordagem
específica quanto aos meios de reconhecimento de filiação,
aponta que o rol previsto na legislação não seria taxativo,
sendo preciso observar os aspectos afetivo, social e familiar
no caso concreto.175
O referido órgão julgador chegou à conclusão de
que não há vedação ao reconhecimento de filiação por
testamento em hipóteses não previstas expressamente em
lei, ainda que não se constatasse a existência dos elementos
da relação socioafetiva. A partir dos princípios da dignidade
da pessoa humana, melhor interesse da criança e do
adolescente e da livre decisão do casal de planejamento
familiar, consignou-se que a ausência de vínculo biológico
e o falecimento da testadora antes do nascimento da criança
175 BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de Minas Ger ais. Apelaçã o
Cível 10625130030186001 . Relat or: Desemb argador M arcelo
Rodrigues. D isponível em:
cia/661095331/apelacao-civel-ac-10625130030186001-mg/inteiro-
teor-661095401>. Acesso em: 11 fev. 2021.
80
não obstaria o reconhecimento da parentalidade, porque
haveria uma afetividade implícita pelo fato de aquela estar
sendo gerada pelo casal, o que denotaria o sentimento
natural de quem pretende constituir família.176
Desse modo, não obstante a situação fática da
apelação envolver uma relação de dupla maternidade,
menciona-se no próprio julgamento que o contato com o
suposto pai biológico poderia ensejar a
multiparentalidade.177
Com alicerce nesse entendimento, poder-se-ia
sustentar que o ato do reconhecimento efetuado pelo
companheiro seria válido, porém observa-se apenas uma
posição isolada que não encontra respaldo no ordenamento
jurídico pátrio. Assim, é nítido que este precisa ser alterado
para propiciar mais segurança jurídica na definição das
situações aptas a ensejar a multiparentalidade e das que isso
seria vedado.
Noutro giro, a resposta poderia se modificar se
mulher estivesse grávida de seu amante enquanto vive em
uma relação matrimonial com outro homem, tendo em vista
que sobre ele incidiria a presunção de paternidade do artigo
1.597 do CC/02178. Caso o cônjuge varão falecesse em
período anterior ao nascimento da criança, restaria
impossibilitado o ajuizamento da ação negatória de
paternidade, uma vez que ele é único legitimado a propô-la,
conforme artigo 1.601 do CC/02.179
176 Ibidem.
177 Ibidem.
178 BRASIL, op. cit., nota 28.
179 Ibidem.
81
Além de ser cabível postular a declaração da origem
genética, o reconhecimento do estado de filiação é um
direito personalíssimo e não sujeito a prazo extintivo,
consoante artigo 27 do ECA.180. Destarte, ainda que essa
hipótese não esteja abarcada pela Tese nº 622 fixada pelo
STF181, não impedimento para identificação da
multiparentalidade, com a manutenção da paternidade
presumida e a inclusão da paternidade biológica, inclusive
pela via extrajudicial.
Ressalvada a demonstração do erro, não seria
legalmente razoável que alguém vindicasse estado contrário
do que consta no registro de nascimento, nos termos do
artigo 1.604 do CC/02, sendo que a ação negatória de
paternidade também não poderia ser ajuizada após o
falecimento do cônjuge varão.182
A partir das explicações dadas ao longo do trabalho,
a admissão da multiparentalidade deve ser visualizada
casuisticamente, sob o prisma dos princípios da afetividade,
do melhor interesse da criança e do adolescente, da
paternidade responsável e da dignidade da pessoa humana.
Não há previsão legal exigindo a exclusão de pai
que constou no registro em razão de uma presunção da
paternidade ou o estabelecendo de um procedimento para
tal finalidade. Independente disso, não há como vetar a
multiparentalidade, com a respectiva manutenção daquele e
inclusão do pai biológico, desde que seja verificado que o
reconhecimento não tem intento meramente patrimonial e
180 BRASIL, op. cit., nota 19.
181 Ibidem, nota 6.
182 Ibidem, nota 28.
82
que há afetividade na relação do genitor biológico com seu
filho. Todavia, não se pode dar uma resposta genérica
quanto à possibilidade do reconhecimento da
multiparentalidade nos exemplos apresentados, haja vista
que é sempre imprescindível que haja a análise da situação
concreta à luz dos princípios constitucionais.
Percebe-se que o Provimento nº 63/2017 do CNJ183,
com as modificações trazidas pelo Provimento nº 83/2019
do CNJ184, proporcionou uma maior desjudicialização das
questões de Direito de Família no segmento da
parentalidade, tendo em vista que viabilizou o
reconhecimento da filiação socioafetiva e da relação
multiparental pela via extrajudicial.
Diante da grande quantidade de processos existentes
no Poder Judiciário, essa medida permite um procedimento
mais célere e menos burocrático para concretização do
instituto da multiparentalidade, admitida pelo STF nos
termos do RE 898.060/SC185. Isso garante maior
segurança jurídica a tal modelo familiar e assegura o
cumprimento dos princípios da afetividade e da dignidade
da pessoa humana.
Vale dizer, porém, que o reconhecimento deve ser
pleiteado na via judicial sempre que a questão envolver
criança menor de 12 (doze) anos, pedido de inclusão de
mais de um ascendente socioafetivo ou se houver dúvida do
registrador quanto à presença dos pressupostos da
183 BRASIL, op. cit., nota 113.
184 BRASIL, nota 114.
185 BRASIL, nota 6.
83
socioafetividade. Essa última limitação é uma boa forma de
evitar a formalização de registros com finalidades
meramente patrimoniais, visto que torna indispensável a
averiguação concreta de todos os elementos necessários
para caracterização da relação parental fundada na
afetividade.
Em seguida, deve-se fazer um estudo mais
pormenorizado dos meios judiciais para reconhecimento da
multiparentalidade, englobando aspectos materiais e
processuais para ajuizamento das demandas.
2.2. Meios de reconhecimento judicial da
multiparentalidade
O artigo 1.609, inciso IV, do CC/02186 estabelece
como um dos meios de reconhecimento voluntário de filhos
havidos fora do casamento a manifestação direta e expressa
perante o juiz, mesmo que não tenha sido objeto do
processo principal.
Ato contínuo, o magistrado deve, se for o caso,
determinar a averbação da paternidade, após a concordância
do filho, se maior de idade.187 Desse modo, essa situação
poderia resultar na configuração da multiparentalidade, na
medida em que a declaração pode ser feita judicialmente
independentemente da existência prévia de um genitor no
registro público daquele indivíduo.
186 BRASIL, op. cit., nota 28.
187 TEPEDINO; TEIXEIRA, op. cit., p. 240-241.
84
Christiano Cassettari188 apresenta, em seu livro, um
procedimento criado pelo Juiz de Direito do Estado do
Amazonas, Dr. Gildo Carvalho Filho, por meio do qual se
facilitou o acesso à justiça e se permitiu que a tramitação do
feito se desse de maneira mais rápida e de custo baixo. O
autor esclarece que, para tanto, foi desenvolvido um termo
de audiência específico, com a finalidade de reduzir as
burocracias dessas demandas.
Assim sendo, se for indispensável a propositura de
ação judicial para declarar a multiparentalidade, o mais
adequado seria a implementação de sistemas como o
supramencionado. De todo modo, esse instituto pode
derivar também de ação negatória, de impugnação ou de
reconhecimento forçado de paternidade, as quais devem ser
melhor estudadas a seguir.
Inicialmente, é preciso destacar que o filho tem o
direito de impugnar o reconhecimento realizado, no prazo
decadencial de quatro anos a partir de sua maioridade ou de
sua emancipação, nos termos do artigo 1.614 do CC/02189.
Nessa hipótese, não há necessidade de comprovação de
inexistência de vínculo biológico nem de falsidade ou erro
no registro, bastando que não haja afetividade entre as
partes envolvidas, com base na ideia de filiação
socioafetiva e no princípio da liberdade das relações
familiares.190
188 CASSETTARI, op. cit., p. 241-250.
189 BRASIL, op. cit., nota 28.
190 LÔBO, op. cit., 2020, p. 285.
85
Dessa forma, ressalta Paulo Lôbo:
O art. 1.614 do Código Civil
harmoniza-se com o modelo de família
e de filiação tutelado pela
Constituição, além de realizar o
princípio da liberdade de ter o pai
afetivo e não o determinado pela
biologia. O reconhecimento do genitor
biológico não pode prevalecer sobre a
paternidade construída na convivência
familiar, que frequentemente ocorre
entre a mãe que registrou o filho e
outro homem, com quem casou ou
estabeleceu união estável, e que
assumiu os encargos da paternidade.191
Em sequência, vale à pena analisar as características
das demais ações relacionadas, direta ou indiretamente, ao
reconhecimento do filho. Em primeiro lugar, a ação
negatória de paternidade não está sujeita a prazo extintivo e
possui como base normativa o artigo 1.601 do CC/02,
podendo ser intentada se o marido deseja contestar a
paternidade dos filhos nascidos de sua mulher.192
Paulo Lôbo193 sustenta que esse direito é
personalíssimo do cônjuge da genitora, de modo que o
referido dispositivo não poderia receber uma interpretação
extensiva para abarcar o companheiro, tendo em vista que
não haveria presunção de paternidade nessa situação, mas
sim um ato de reconhecimento feito de livre e espontânea
191 Ibidem, p. 286.
192 BRASIL, op. cit., nota 28.
193 LÔBO, op. cit., 2020, p. 261-264.
86
vontade pelo indivíduo. Por outro lado, Caio Mario194
possui o entendimento oposto, no sentido de o companheiro
ser parte legítima para propositura de determinada ação.
Ainda nesse sentido, os herdeiros do cônjuge não
detêm legitimidade para propor a ação, mas apenas para
prosseguir nela caso o autor faleça na pendência da lide195.
Além disso, a mera prova de adultério da mulher ou a
ausência de vínculo biológico não são suficientes para
desconstituição da paternidade. Isso porque esta não pode
se dar por uma decisão arbitrária e impulsiva, devendo o
marido provar que, além de não ser o genitor biológico, não
houve constituição da filiação socioafetiva decorrente da
posse do estado de filho para que não se esvazie a proteção
constitucionalmente dada à família.196
Conforme a tese fixada pelo STF no julgamento do
Recurso Extraordinário nº 898.060/SC, com repercussão
geral197, as paternidades socioafetiva e biológica podem ser
asseguradas concomitantemente, motivo pelo qual o genitor
biológico não teria ação em face do pai socioafetivo, só
sendo plausível o ajuizamento da demanda em face do
próprio filho.198
Partindo das mesmas premissas o pedido contido na
ação de anulação do registro da paternidade só pode ser
julgado procedente se comprovado o erro ou a falsidade, na
forma do artigo 1.604 do CC/02199, o que somente se dá nos
194 PEREIRA, op. cit., p. 372.
195 Ibidem.
196 LÔBO, op. cit., 2020, p. 263.
197 BRASIL, op. cit., nota 6.
198 LÔBO, op. cit. 2020, p. 262-265.
199 BRASIL, op. cit., nota 28.
87
casos em que o registro é feito por um ato de
reconhecimento propriamente dito. Nesse aspecto,
incidindo a presunção legal de paternidade, a
desconstituição da filiação deve se dar pela ação de estado
mencionada anteriormente.200
Ainda assim, a contestação da paternidade não pode
derivar do arrependimento do pai registral, em razão do
princípio do venire contra factum proprium, razão pela qual
a filiação deve permanecer como está se não for
demonstrado erro ou falsidade no registro. 201 Apesar de se
admitir que essa ação tem um leque maior de legitimados,
o Superior Tribunal de Justiça possui precedente decidindo
no sentido da ilegitimidade dos herdeiros do pai registral
para seu ajuizamento, tendo em vista que isso seria um
direito indisponível dele.202
Nesse aspecto já se manifestou a Terceira Turma do
Superior Tribunal de Justiça, a qual deixou claro que deve
ser considerado como sendo ônus do cônjuge provar que foi
enganado pela esposa para que haja a retificação do registro
da criança ou adolescente, não sendo suficiente a mera
200 TEPEDINO; TEIXEIRA, op. cit., p. 245.
201 LÔBO, op. cit., 2020 , p. 265 e BRASIL. Tribunal de Justiça do
Distrito Federal e Territórios. Processo nº 0709339-25.2018.8.07.0006,
Relator: Desembargador Alfeu Machado. Disponível em:
df.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/1173672515/709339252018807000
6-segredo-de-justica-0709339-252018807 0006 >. Acesso em: 30 mar.
2021.
202 BRASIL. Sup erior Tribunal de Justiça. Recurso Especial
1.131.076/PR. Relator: Ministro Marco Buzzi. Disponível em:
stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/863108303/recurso-especial-resp-
1131076-pr-2009-0058196-2/inteiro-teor-863108386?ref=serp>.
Acesso em: 30 mar. 2021.
88
verificação de inexistência de vínculo biológico entre
eles.203 O Tribunal do Estado de São Paulo já afirmou que,
estando presente a socioafetividade na relação entre o pai
registral e a filha, o pedido contido na ação que impugna a
paternidade deverá ser julgado improcedente mesmo que
tenha havido exame de DNA atestando a ausência de
paternidade biológica, uma vez que tal prova por si só não
comprovaria erro ou falsidade no momento do registro204.
Vale dizer que o Superior Tribunal de Justiça igualmente já
possuía precedente antigo nesse sentido, ressaltando a
necessidade de se provar a falta tanto do vínculo biológico
como do socioafetivo205.
A ação de investigação de paternidade é a demanda
primordial para reconhecimento forçado da paternidade,
por meio da qual é possível averiguar não apenas a presença
do vínculo biológico como também do estado de filiação,
que pode ou não decorrer de origem genética.206
203 BRASIL. Sup erior Tribunal de Justiça. Recurso Especial
1.814.330/SP. Relatora: Ministra Nancy Andrighi. Disponível em:
al-resp-1814330-sp-2019-0133138-0/inteiro-teor-1289005569>.
Acesso em: 29 out. 2021.
204 RIBAS, Mariana. Mesmo com teste de DNA negativo, TJSP decide
que homem é pa i de cria nça. Jota, 2021. Disponível em :
22022021>. Acesso em: 30 mar. 2021.
205 BRASIL. Sup erior Tribunal de Justiça. Recurso Especial
1.059.214/RS. Relator: Ministro Luiz Felipe Salomão. Disponível em:
-resp-1059214-rs-2008-0111832-2-stj/inteiro-teor-21399241>. Acesso
em: 30 mar. 2021.
206 PEREIRA, op. cit., p. 421.
89
Os herdeiros somente poderão prosseguir nessa
ação se ela já estiver em curso ou propô-la se o sujeito
falecer menor ou incapaz, consoante a previsão do artigo
1.606 do CC/02207. À vista disso, cabe enfatizar que a
genitora não possui legitimidade ativa para requerer, por si
só, o reconhecimento da paternidade, somente sendo
possível que esta atue como representante de seu filho208.
Semelhantemente, compreende-se no sentido da
ilegitimidade do filho, em nome próprio, pleitear o
reconhecimento da filiação socioafetiva de sua genitora
falecida em face dos pretensos pais socioafetivos dela. Ele
tem a faculdade, tão somente, de ajuizar ação requerendo
direito que lhe seja próprio, isto é, que seja declarado o seu
vínculo com seus avós.209
Destaque-se que, em recente decisão, o Superior
Tribunal de Justiça definiu que os herdeiros do genitor
falecido possuem legitimidade para propositura de ação
declaratória de relação avoenga se não tiver sido intentada
207 BRASIL, op. cit., nota 28.
208 BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul.
Apelação Cível 017 4591-67.2019.8.21.7000. Relator:
Desembargador Ricardo Moreira Lins Pastl. Disponível em:
tj-rs.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/888648069/apelacao-civel-ac-700
82026824-rs/inteiro-teor-888648079>. Acesso em: 30 mar. 2021 e
BRASIL. Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios. Processo
0007297-82.2016.8.07.0016. Relatora: Desembargadora Nídia
Corrêa Lima. Disponível em:
cia/778859448/20160110530089-segredo-de-justica-0007297-822016
8070016>. Acesso em: 30 mar. 2021.
209 BRASIL. Sup erior Tribunal de Justiça. Recurso Especial
1.492.861/RS. Relator: Ministro Marco Aurélio Bellizze. Disponível
em: udencia/862536134/recurso-
especial-resp-1492861-rs-2014-0285460-6>. Acesso em: 30 mar. 2021.
90
ação de investigação de paternidade anteriormente, ainda
que o pai tenha outra filiação registral. No referido julgado,
a Ministra Nancy Andrighi frisou ser necessário tutelar o
direito próprio dos netos de terem reconhecida a relação
avoenga biológica. No entanto, eventuais efeitos
patrimoniais da declaração apenas ocorreriam se não
estivessem fulminados pela prescrição.210
Apesar de o julgado supracitado não dizer respeito
propriamente ao reconhecimento de multiparentalidade, os
temas tratados possuem íntima relação. Isso porque
constata-se que, na realidade, existia uma relação
multiparental não reconhecida em vida entre o réu e o
genitor dos autores e, após o seu falecimento, os seus filhos
pleiteiam, em direito próprio, a declaração da relação
avoenga.
Adolescente estabelece que reconhecimento do estado de
filiação é um direito personalíssimo, indisponível e não
sujeito a prazo extintivo, não havendo restrição quanto ao
legitimado passivo.211
Contudo, a Súmula nº 149 do STF esclarece que a
ação de investigação de paternidade é “imprescritível”,
210 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. É possível ajuizar a ção
declara tória de rela ção avoenga mesmo que o pai falecido tenha outr a
filiação reg istral. Disponível em:
Paginas/Comunicacao/Noticias/11062021-E-possivel-ajuizar-acao-
declaratoria-de-relacao-avoenga-mesmo-que-o-pai-falecido-tenha-
outra-filiacao-registral.aspx>. Acesso em: 14 jun. 2021.
211 BRASIL, op. cit., nota 19.
91
porém que a ação de petição de herança não o é212. Assim
sendo, esta se sujeita ao prazo de 10 anos, como prevê o
artigo 205 do CC/02, de modo que o sujeito teria direito de
pedir o reconhecimento da paternidade, mas não poderia
postular sua participação em inventário se ultrapassado o
prazo legal.213 Na realidade, caso se tratasse de prazo
prescricional, não seria a ação judicial atingida, muito
menos o direito em si considerado, mas sim eventual
pretensão a este relacionada, mas que nem seria o caso por
se tratar de direito potestativo.
É imprescindível, ainda, que haja o consentimento
do filho se ele for maior de idade, uma vez que o direito à
filiação é titularizado por ele, não podendo ser imposta. No
caso do filho menor de idade, a sua anuência no momento
do reconhecimento é dispensada, tendo em vista que ele é
incapaz e há presunção de que aquele foi feito em seu
benefício, o que pode ser ilidido por impugnação do filho
após os dezoito anos.214
Sublinhe-se, ainda, que caso o pai se recuse a
realizar de exame de DNA, aplicar-se-á a presunção juris
tantum de paternidade, de acordo com a orientação da
Súmula nº 301 do STJ215. Todavia, é preciso salientar que,
se isso não for suficiente para solucionar a controvérsia dos
212 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Súmula nº 149. Disponível em:
p?sumula=1986> Acesso em: 30 mar. 2021.
213 BRASIL, op. cit., nota 28.
214LÔBO, op. cit., 2020, p. 283.
215 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Súmula nº 301. Disponível
em:
sumulas-2011_23_capSumula301.pdf>. Acesso em: 30 mar. 2021.
92
autos, o Superior Tribunal de Justiça determinou que o
julgador deve adotar todas as medidas indutivas,
mandamentais e coercitivas, seguindo o disposto no artigo
139, inciso IV, do CPC/15.216
Inclusive, esse entendimento é reproduzido no
artigo 2º-A, caput e § 1º, da Lei nº 8.560/1992, o qual fixa
que todos os meios legais e moralmente legítimos são aptos
a comprovar a verdade dos fatos, assim como que a recusa
do réu em se submeter ao exame de DNA gera presunção
de paternidade, a ser analisada juntamente com as demais
provas acostadas aos autos.217
Ademais, a Lei nº 14.138/2021 trouxe uma inovação
para o ordenamento jurídico no que toca à investigação de
paternidade ao inserir o § ao artigo 2º-A da lei
supramencionada. Isso porque este definiu que, caso o
suposto pai tivesse falecido ou não houvesse mais notícias
de seu paradeiro, o magistrado poderia ordenar que fosse
efetuado exame de DNA em parentes consanguíneos, sendo
que a recusa destes também caracteriza a presunção de
paternidade, a qual deveria ser examinada conjuntamente
com o acervo probatório da demanda.218
216 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Reclamação nº 37.521/SP.
Relatora: Ministra Nancy Andrighi. Disponível em:
l.com.br/jurisprudencia/859498503/reclamacao-rcl-37521-sp-2019-
0061080-0/inteiro-teor-859498509?ref=serp>. Acesso em: 29 mar.
2021.
217 BRASIL. Lei nº 8.560, de 29 de dezembro de 1992. Disponível em:
. Acesso em:
26 abr. 2021.
218 BRASIL. Lei nº 14.138, de 16 de abril de 2021. Disponível em:
38.htm>. Acesso em: 26 abr. 2021.
93
Desse modo, considerando que o exame pode ser
realizado em familiares consanguíneos após o falecimento
do suposto pai, seria viável sustentar o cabimento de
reconhecimento post mortem de paternidade. Outrossim,
essa norma pode vir a implicar na admissibilidade da
multiparentalidade post mortem, o que será debatido no
início do próximo capítulo.
É pertinente ao tema tratar, também, da coisa
julgada da sentença proferida em sede de ação de
investigação de paternidade. Os Tribunais Superiores
possuem o entendimento prevalente no sentido de que
aquela poderia ser relativizada se não houvesse como
atestar a existência de vínculo genético em razão da não
realização de exame de DNA.219
A princípio, seria cabível a propositura de nova ação
investigatória objetivando o reconhecimento da filiação
biológica com todas as consequências dela advinda. No
entanto, a referida posição consolidada pelos Tribunais
Superiores não é aplicável se o reconhecimento da
parentalidade decorre da presunção diante da recusa do
219 BRASIL. Supremo Trib unal Federal. Recurso Extraor dinário nº
363.889/DF. Relator: Ministro Dias Toffoli Disponível em:
w.stf.jus.br/portal/jurisprudenciaRepercussao/verAndamentoProcesso.
asp?incidente=2072456&numeroProcesso=363889&classeProcesso=
RE&numeroTema=392#>. Acesso em: 30 mar. 202 1 e BRASIL.
Superior Tribunal de Justiça. Agravo Interno no Recurso Especial nº
1417628/MG. Relator: Ministro Marco Aurélio Bellizze. Disponível
em:
rno-no-recurso-especial-agint-no-resp-1417628-mg-2013-0045381-
1>. Acesso em: 30 mar. 2021.
94
investigado ou de seus herdeiros de submeter-se ao exame
de DNA.220
Isso se dá pois o argumento de que, em virtude da
relativização da coisa julgada, seria viável o ajuizamento de
posterior ação negatória de paternidade após a recusa do
exame afronta diretamente o princípio da boa-fé
processual.221 Portanto, esse tipo de alegação não merece
prosperar.
No que toca à multiparentalidade propriamente dita,
o Supremo Tribunal Federal, a partir do julgamento do RE
nº 898.060/SC, fixou a tese nº 622222, que deixou claro que
a paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro,
não obsta o reconhecimento do vínculo biológico
concomitantemente.223
Neste diapasão, ainda que a paternidade
socioafetiva conste do registro, é plenamente possível o
ajuizamento de ação de investigação de paternidade para
fins de reconhecimento do vínculo biológico com fulcro no
direito à felicidade e nos princípios do melhor interesse da
criança e do adolescente e da dignidade da pessoa humana.
Apesar de existirem posições contrárias224, esses
mesmos princípios asseguram que o vínculo socioafetivo
220 BRASIL. Sup erior Tribunal de Justiça. Recurso Especial
1562239/MS. Relator: Ministro Paulo de Tar so Sanseverino.
Disponível em:
recurso-especial-resp-1562239-ms-2015-0261655-2/inteiro-teor-4656
11413>. Acesso em: 30 mar. 2021.
221 Ibidem.
222 BRASIL, op. cit., nota 6.
223 Ibidem.
224 BRASIL, op. cit., nota 130.
95
seja posteriormente reconhecido. Isso é comumente
verificado nos casos em que uma pessoa decide se unir a
terceiro já possuindo um filho de uma relação anterior e este
acabe formando com o companheiro de sua genitora, após
um período de convivência, vínculo parental afetivo
decorrente da posse de estado de filho. Contudo, somente é
plausível a caracterização da multiparentalidade se for
mantida a afetividade com o pai ou/e mãe biológicos225.
Aliás, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo
já decidiu pela não incidência do princípio da congruência
ou adstrição em questões de família, até porque essas
matérias deveriam ser investigadas de ofício no processo,
consoante o princípio do melhor interesse da criança e do
adolescente, por se tratar de direito indisponível.226
Por conseguinte, independente de pedido expresso
nos autos sobre a multiparentalidade, seria juridicamente
defensável reconhecê-la se restar evidente o vínculo
parental entre os genitores e a criança ou adolescente, a
partir da análise das provas juntadas.
225 FIGUEIREDO, Elizabeth Giesta. A consolidaçã o da
multiparenta lidade como entida de familiar e as consequência s
jurídicas de seu reconhecimento pelo Supremo Tribunal Feder al. 2018.
120 f . Trab alho Mon ográfico (Curso de Pós-Graduação Lato Sensu).
Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro,
2018. Disponível em:
_videoteca/monografia/Monografia_pdf/2018/ElizabethGiestaFigueire
do_Monografia.pdf>. Acesso em: 4 abr. 2021.
226 BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Apelação
Cível nº 1000982-02.2018.8.26.0637. Relator: Desembargador Coelho
Mentes. Disponível em:
128887961/apelacao-civel-ac-10009820220188260637-sp-1000982-
0220188260637/inteiro-teor-1128887980>. Acesso em: 4 abr. 2021.
96
Em certos casos concretos, visualizam-se demandas
em que a parte pleiteia a investigação de paternidade
cumulada com a anulação de registro de parentalidade
anterior. Nessa situação, seguindo a mesma linha de
raciocínio acima destacada, o Superior Tribunal de Justiça
já se manifestou no sentido de que não haveria julgamento
extra petita ao se consolidar a multiparentalidade, haja vista
que isso iria decorrer da procedência do pedido contido na
primeira ação e improcedência do pedido da segunda
demanda.227
Não obstante a aceitação da multiparentalidade pelo
Supremo Tribunal Federal, um acórdão isolado do Tribunal
de Justiça do Rio Grande do Sul vedou a alteração do
registro civil para fazer constar a presença de dois genitores
por ausência de previsão legal.228
No entanto, esse julgamento contraria o
entendimento do STF e ofende a percepção atual no sentido
da necessidade de uma releitura civil-constitucional dos
dispositivos do Direito de Família e de uma intepretação
ampliativa dos princípios. Dessa forma, admitir a
227 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo Interno nos
Embargos de Dec laração nos Embargos de Declaração no Recurso
Especial nº 1.607.056/SP. Relator: Ministro Luis Felipe Salomão.
Disponível em:
agravo-interno-nos-embargos-de-declaracao-nos-embargos-de-declara
cao-no-recurso-especial-agint-nos-edcl-nos-edcl-no-resp-1607056-sp-
2016-0150632-0>. Acesso em: 17 nov. 2020.
228 BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul.
Apelação Cível nº 70073977670, Relatora: Desembargadora Liselen a
Schifino Robles Ribeiro. Disponível em:
jurisprudencia/489696091/apelacao-civel-ac-70073977670-rs/inteiro-
teor-489696102>. Acesso em: 04 abr. 2021.
97
multiparentalidade é fundamental para assegurar o
cumprimento dos princípios da dignidade da pessoa
humana, da paternidade responsável e do melhor interesse
da criança e do adolescente.
Destaque-se que também é cabível a propositura de
uma ação pleiteando, desde já, a declaração da
multiparentalidade. Caso haja uma interpretação analógica,
sistemática e literal dos artigos 1.606 do CC/02 e 27 do
ECA, que dizem respeito à ação de investigação e ao
reconhecimento da parentalidade, seria compreensível que
legitimidade ativa seria apenas do filho.229
Com base nessa ideia de direito personalíssimo do
filho, o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios
já decidiu pela ilegitimidade ativa da genitora e do pai
socioafetivo para intentarem, em nome da criança, ação
declaratória para reconhecimento da paternidade
socioafetiva.230
Outrossim, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do
Sul ressalta que a criança ou do adolescente deve estar
presente no polo ativo da demanda para fins de
reconhecimento da paternidade biológica. Assinale-se que
essa visão também poderia vir a ser utilizada em demandas
propostas para a caracterização da multiparentalidade
propriamente dita.231
No entanto, o Tribunal de Justiça de Santa Catarina
já assentou que o pai biológico é parte legítima para
ajuizamento da demanda postulando o reconhecimento do
229 LIMA, op. cit.
230 BRASIL, op. cit., nota 208.
231 Ibidem.
98
vínculo e a sua inclusão no registro juntamente com o
genitor socioafetivo.232 Similarmente, o Tribunal de Justiça
de Goiânia já autorizou que tios-avôs de uma adolescente
propusessem ação para inseri-los como pais socioafetivos
no registro civil dela, diante do caso concreto apresentado
naqueles autos.233
Uma grande diferença entre esses casos é que, nos
dois primeiros, a ação teria sido proposta por terceiros em
nome da criança ou adolescente; enquanto que nessas
últimas o ajuizamento foi diretamente feito pelos genitores
socioafetivo e biológico, os quais pleiteavam declarar a sua
paternidade e não o reconhecimento dessa paternidade em
nome do infante.
No que concerne às consequências que podem advir
da existência de uma relação multiparental, cabe indagar se
o reconhecimento do vínculo jurídico da paternidade ou
maternidade pode se dar sem que haja o reconhecimento de
alguns efeitos, como direito aos alimentos e à sucessão. Em
232 BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina. Apelação
Cível n º 0300233-75.2017.8.24.0068. Relator: Desembargador Jorge
Luis Costa Beber. Disponível em:
prudencia/1105309713/apelacao-civel-ac-3002337520178240068-
seara-0300233-7520178240068>. Acesso em: 4 abr. 2021.
233 INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO DE FAMÍL IA.
Multiparenta lidade: tios-avós terão seus nomes no registro ci vil de
adolescente. Disponível em:
tiparentalidade:+tios-av%C3%B3s+ter%C3%A3o+seus+nomes+no +
registro+civil+de+adolescente#:~:text=Multiparentalidade%3A%20tio
s%2Dav%C3%B3s%20ter%C3%A3o%20seus%20nomes%20no%20r
egistro%20civil%20de%20adolescente,-02%2F10%2F2019&text=N
r%C3%A3o%20haver%C3%A1%20preju%C3%ADzo%20dos%20no
mes,da%20menina%2C%20h%C3%A1%2012%20anos.>. Acesso em:
4 abr. 2021.
99
outras palavras: se seria possível identificar juridicamente a
parentalidade sem que alguns dos seus efeitos possam ser
produzidos.
Em primeiro lugar, cumpre distinguir o direito à
identidade biológica do reconhecimento do vínculo de
parentesco. Enquanto o primeiro diz respeito a um direito
da personalidade de toda pessoa, o segundo decorre da
comunhão afetiva que se constrói entre pais e filhos,
independente do vínculo de consanguinidade existente
entre eles.234
Rolf Madaleno defende que duas espécies
distintas de demandas de investigação de paternidade: (i)
uma em que se procura o reconhecimento do vínculo de
filiação e os efeitos dele decorrente, relacionados aos
alimentos e à sucessão; e (ii) uma na qual se pretende o
simples conhecimento da ascendência genética, o que se
admitiria pelo direito à vida íntima.235
Esclarece Ricardo Calderón que:
Toda pessoa tem direito fundamental,
na espécie direito da personalidade, de
vindicar sua origem biológica para
que, identificando seus ascendentes
genéticos, possa adotar medidas
preventivas para preservação da saúde
e, a fortiori, da vida. Esse direito é
individual, personalíssimo, não
dependendo de ser inserido em relação
de família para ser tutelado ou
234 LÔBO, op. cit. 2020, p. 240.
235 MADALENO, Rolf. Direito de Família. 10ª ed. rev. atual. ampl. Rio
de Janeiro: Forense, 2020, [e-book], p. 239-240.
100
protegido. A paternidade e a
maternidade derivam do estado de
filiação, independentemente da origem
(biológica ou não). Na hipótese de
inseminação artificial heteróloga, o
filho pode vindicar os dados genéticos
de dador anônimo de sêmen que
constem dos arquivos da instituição
que o armazenou, para fins de direito
da personalidade, mas não poderá fazê-
lo com escopo de atribuição de
paternidade.236
Em razão disso, não há falar em efeitos jurídicos ou
multiparentalidade se o objetivo do demandante for apenas
o conhecimento de sua origem genética, uma vez que este
não equivale ao reconhecimento da parentalidade.
Seguindo essa lógica de raciocínio, lecionam Gustavo
Tepedino e Ana Carolina Teixeira que:
A multiparentalidade implica a
vinculação jurídica de um indivíduo
com mais de um pai ou com mais de
uma mãe ao mesmo tempo. Trata-se,
portanto, da possibilidade que a pessoa
tem de estabelecer mais de duas
relações jurídicas parentais
simultâneas ou não, mas vivenciadas
por ela no decorrer da vida no
236 LÔBO, Paulo. Constitucionalizaçã o da pater nidade socioa fetiva:
em torno de um voto divergente do Ministro Edson Fachin. In:
ARRUDA, Desdêmona T. B. Toledo; MACHADO FILH O, Roberto
Dalledone; SILVA, Christine Oliveira Peter da (Coord.). Ministro Luiz
Edson Fa chin: cinco anos de Supremo Tribunal Federal. Belo
Horizonte: Fórum, 2021, [e-book] p. 143.
101
paradigma no qual vivemos,
titularizando todos os direitos e
deveres que normalmente decorrem do
estado de filiação. Em ambos os casos
ora tratados, faculta-se apenas o
reconhecimento da origem genética,
que não gera, por si só, efeitos de
parentesco. Uma vez reconhecido o
pedido como juridicamente possível, o
que se discute são os efeitos da
multiparentalidade, em face da plena
igualdade entre os filhos, o que irradia
o exercício de efeitos para todos os
vínculos parentais.237
Aliás, essa foi a ideia utilizada pelo Ministro Edson
Fachin em seu voto divergente e minoritário no RE nº
898.060/SC238, no qual ele entendeu que, naquele caso,
deveria prevalecer a filiação socioafetiva previamente
estabelecida, em detrimento do vínculo tão somente
biológico com o outro genitor.239
Apenas para fins elucidativos, o Ministro,
analisando as provas colhidas nos autos do caso concreto
julgado, compreendeu que, com relação ao genitor
biológico, seria admissível apenas salvaguardar o direito ao
conhecimento da origem genética. Sustentou, ainda, que
somente poderia ser reconhecida a multiparentalidade se
esta atendesse ao melhor interesse da criança e do
adolescente e se os pais biológico e socioafetivo desejassem
237 TEPEDINO; TEIXEIRA, op. cit., p. 236.
238 BRASIL, op. cit., nota 6.
239 YOUTUBE, op. cit., nota 42.
102
ficar na qualidade de genitores daquele indivíduo, o que não
teria ocorrido no caso apresentado à Corte240.
Nessa perspectiva, ainda que exista o direito à
identidade genética, a multiparentalidade somente pode ser
confirmada se verificada a afetividade tanto com o genitor
biológico como com o socioafetivo, consoante se depreende
dos princípios constitucionais inerentes às relações
familiares. Da mesma forma, aquela somente pode ser
confirmada se for apurado que é a forma que garante o
melhor interesse da criança ou adolescente.241
Saliente-se que, salvo em situações excepcionais
mencionadas no subtópico 1.3. do presente livro, não é
viável concretizar vínculo de paternidade com os genitores
biológicos na hipótese de adoção, em que a sentença que a
concede rompe as relações de parentesco preexistentes, e de
reprodução assistida heteróloga. Contudo, deve-se
mencionar que o sujeito possui o direito de conhecer a sua
origem genética, sem efeitos de parentesco242, garantida a
privacidade quanto à identidade do doador anônimo.
Ademais, conforme já aclarado anteriormente, não
há de ser materializada a multiparentalidade se tal instituto
não garantir o melhor interesse da criança e do adolescente
ou se forem constatadas pretensões meramente patrimoniais
240 Ibidem.
241 JUSBRASIL, op. cit., nota 63; BRASIL, op. cit., nota 63; BRASIL.
Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios. Processo nº
0007690-37.2016.8.07.0006. Relator: Desembargadora Ana Catarino.
Disponível em:
96/20160610077919-segredo-de-justica-0007690-3720168070 006>
Acesso em: 4 abr. 2021.
242 LÔBO, op. cit., 2020, p. 254.
103
das partes. Isso porque haveria total subversão da finalidade
do instituto, o qual busca consagrar os princípios da
afetividade, do melhor interesse da criança e do adolescente
e da própria dignidade da pessoa humana.
Portanto, cabe refletir, diante das peculiaridades do
caso concreto, se deve ser assegurado tão somente o direito
ao conhecimento da identidade genética ou declarada a
filiação biológica ou socioafetiva com todos os seus efeitos
jurídicos, o que seria uma boa forma de evitar a
patrimonialização das relações familiares.243 Assevere-se
que não haveria qualquer discriminação entre os filhos por
conta disso, mas sim seria feita uma necessária distinção
entre o direito à identidade genética e o reconhecimento do
vínculo de paternidade.
Noutro giro, cabe assinalar que há certa resistência
à aceitação de efeitos plenos ao vínculo socioafetivo na
jurisprudência. Isso pode ser constatado pela hesitação
cultural em consentir com a isonomia plena entre os filhos
biológico e socioafetivo e, ainda, pela banalização de
reconhecimento deste, na medida em que se observa, muitas
vezes, um afastamento do rigor técnico no exame dos
requisitos necessários para constituição da relação parental
pela afetividade, com a finalidade absoluta de proteger a
criança e ao adolescente.244
243 CALDERON, Ricardo; GRUBERT, Camila. Pr ojeções Sucessórias
da Multiparenta lidade. In: TEIXEIRA, Daniela Chaves (coord.).
Arquitetura do Planeja mento Sucessório. 2ª ed. rev. ampl. e atual., Belo
Horizonte: Fórum, 2019 [e-book], p. 292.
244 SCHREIBER; LUTOSA, op. cit., p. 857.
104
Segundo Anderson Schreiber e Paulo Lutosa, a falta
de tecnicidade não pode ocasionar uma paternidade com
apenas alguns efeitos jurídicos como alguns tribunais estão
realizando, visto que isso seria incompatível com a ordem
constitucional vigente. É necessário, assim, que o intérprete
faça um exame mais minucioso quanto à caracterização da
relação parental socioafetiva, com o fito de evitar uma
confusão entre esta e o mero sentimento de afeto.245
De fato, não é sustentável que se reconheça o
vínculo parental sem alguns efeitos jurídicos, haja vista que
isso configuraria clara discriminação entre os filhos, a qual
não é permitida no ordenamento jurídico pátrio, de acordo
com os artigos 227, § 6º, da CRFB/88246 e 1.596 do Código
Civil de 2002247.
Consoante aduz Paulo Lôbo, as diferenciações entre
os efeitos jurídicos que derivam dos laços de parentesco não
podem mais existir, tendo em vista que não mais se permite
uma interpretação da norma a ponto de culminar tratamento
desigual entre os filhos a partir do advento da Constituição
Federal de 1988.248 Destarte, em razão do princípio da
igualdade da filiação, não se pode aventar que não sejam
conferidos alguns direitos a determinados filhos, sob pena
de flagrante inconstitucionalidade249.
245 Ibidem, p. 858.
246 BRASIL, op. cit., nota 7.
247 BRASIL. op. cit., nota 28.
248 LÔBO, op. cit., 2020, p. 225-226.
249 FROTA, Pab lo Malheiros da Cunha; CALDERÓN, Ricardo.
Multiparenta lidade a partir da tese a provada pelo Supremo Tribuna l
Federa l. In: TEPEDINO, Gustavo, BROCHADO, An a Carolina,
TEIXEIRA, Vitor Almeida (Coords.). Da dogmática à efetividade do
105
Por conseguinte, Anderson Schreiber e Paulo
Lutosa250 expõem que, diante do reconhecimento da
paternidade, todos os efeitos jurídicos decorrentes da
filiação devem ser plenamente aplicados, haja vista que não
existe no Direito brasileiro uma categoria intermediária
entre a parentalidade e a não-parentalidade.
Vale dizer que a Quarta Turma do Superior Tribunal
de Justiça, em outubro de 2021, também assentou a
equivalência de tratamento e de efeitos jurídicos entre as
filiações socioafetiva e biológica após o reconhecimento da
multiparentalidade,251 decisão esta que confirma as demais
posições acima explicitadas.
Nota-se que todas as elocubrações têm como base a
análise de precedentes judiciais e posições doutrinárias.
Não previsão legal específica acerca dos aspectos
processuais para reconhecimento da multiparentalidade em
âmbito judicial nem sobre as consequências jurídicas
advindas disso, o que acaba gerando controvérsias no
âmbito dos tribunais estaduais e, consequentemente, causa
insegurança jurídica aos integrantes de tal modelo familiar.
Isso posto, no próximo capítulo, haverá um estudo
mais profundo sobre o cabimento do reconhecimento post
mortem da multiparentalidade e sobre outras controvérsias
Direito Civil: Anais do Congresso Internacional de Direito Civil
Constitucional IV Congress o do IBDCivil. 2ª ed. Belo Horizonte:
Fórum, 2019, p. 245.
250 SCHREIBER; LUTOSA, op. cit., p. 856.
251 INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO DE FAMÍLIA. STJ
reitera equivalência de tratamento e efeitos jur ídicos entr e vínculos
biológico e socioafetivo na multipar entalidade. Dispo nível em:
. Acesso em: 29 out. 2021.
106
que podem ser verificadas em casos envolvendo Direito das
Sucessões, que não foram esclarecidas por ausência de
previsão legal ou julgamento vinculante sobre o instituto.

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT