Crise no combate à escravidão contemporânea no Brasil

AutorDivo Augusto Cavadas
Páginas175-208
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Capítulo IV
CRISE NO COMBATE À ESCRAVIDÃO
CONTEMPORÂNEA NO BRASIL
Ao longo do presente estudo abordou-se o
fenômeno histórico, social e cultural da escravidão à luz
da História do Direito, História do Imaginário Político,
Economia Política e Filosofia Moral. Deveras, a
escravidão constitui-se em conceito multifacetado no
amplo espectro das Humanidades, o que justifica o mérito
científico de sua abordagem sob um regime
multidisciplinar e interdisciplinar, com pretensões
transdisciplinares sob a égide da teoria da complexidade
(cf. MORIN, 1990).
A escravidão no Brasil distinguiu-se daquela
empreendida noutros territórios sob o contexto histórico
dos séculos XVI-XIX. Os povos escravizados pelo tráfico
atlântico foram submetidos a uma rotina de exploração e
humilhação corporal e mental, ao mesmo tempo em que
conviveram numa sociedade marcada pelo
patrimonialismo e reduzida mobilidade social,
capilarizando-se sob o fenômeno da miscigenação que
caracterizou a formação do Brasil enquanto Estado-nação.
Embora as abordagens sociológicas do referido
fenômeno variem, e este estudo filie-se àquela que tece
críticas às teses da suposta “democracia racial” que
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caracterizou a Sociologia brasileira da primeira metade do
século XX, sob a pena de Sérgio Buarque de Holanda e
Gilberto Freyre (cf. SOUZA, 2018), evidencia-se que o
processo de escravização no Brasil deitou profundas raízes
em sua matriz cultural, que se sustenta ser latina, colonial,
escravista e autoritária, repercutindo inclusive no sistema
jurídico implementado no país desde sua primeira
Constituição, outorgada em 1824.
Nesse sentido, desde a publicação da Lei Imperial
Brasileira n. 3.353/1888 (Lei Áurea), não se pode afirmar
que semelhante norma tenha sido dotada de efetividade
(conceito jurídico que indica a eficácia social da norma,
conforme já mencionado ao longo desta obra), na medida
em que o imaginário social e político da elite econômica
rural desde a crise do sistema colonial no fim do século
XVIII foi permeado pela naturalização e condescendência
ao modo de produção econômica escravista adotado pelo
Brasil, nos termos já delineados ao longo deste trabalho.
Apenas a partir da promulgação da Constituição de
1988, no contexto da Sexta República Brasileira ou Nova
República, é possível afirmar que houve uma alteração de
paradigma acerca do tratamento deferido à exploração de
mão de obra escrava nas propriedades rurais do Brasil,
dissociada paulatinamente do ruralismo que configurou os
desdobramentos sócio-históricos do país desde sua
ocupação no século XVI, porém de forma mais
significativa a partir do século XIX, após a emancipação
política do Brasil que caracterizou o fim do sistema
colonial, com a alteração na estrutura do poder político da
fidalguia mercantil para a elite escravista, assim
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denominada de “homens de grossa aventura”, objeto de
obra privilegiado em estudos historiográficos
contemporâneos (cf. FRAGOSO, 1992).
A referida alteração paradigmática ensejada pela
Constituição do Brasil de 1988 derivou da implementação
do Estado Democrático de Direito, conceito da moderna
Teoria do Estado elaborada ao longo do século XX, de
matriz pós-positivista, bem como da nova divisão do pacto
federativo, descentralizando as competências materiais
(administrativas) e formais (legislativas) entre União,
Estados-membros, Distrito Federal e Municípios, o que
trouxe à Constituição de 1988 a alcunha de
“municipalista”.
O novo cenário permitiu uma maior fiscalização de
suas normas e do próprio ordenamento jurídico brasileiro,
em especial nas províncias do Direito Penal, Direito do
Trabalho e Direitos Humanos, o que se tornou
determinante para a proteção da classe vulnerável dos
trabalhadores rurais e o combate à exploração
contemporânea de mão de obra escrava, com maior
efetividade a normas como a Lei Áurea (ainda em vigor) e
ao delito de redução a condição análoga à de escravo
(Artigo 149 do Decreto-Lei Federal n. 2.848/1940
Código Penal Brasileiro).
Todavia, ao longo dos primeiros trinta anos da
Sexta República Brasileira, regida pela Constituição de
1988 e caracterizada pela ampla abertura democrática,
inédita na formação social, política e cultural do Brasil,
houve avanços e retrocessos no combate à exploração de
mão de obra escrava, derivados do recrudescimento da

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