Da Venda sobre Documentos

AutorHilário de Oliveira
Ocupação do AutorProfessor da Universidade Federal de Uberlândia
Páginas107-131

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Com inusitada surpresa, por terem sido literalmente transplantadas das normas cogentes disciplinadas pelos arts. 1.527 a 1.530 do Código Civil italiano, as vendas sobre documentos realizadas ao amparo de operações e contratos empresariais, de bens e serviços, sob prudente vigilância dos doutrinadores foram incorporadas no novo Código Civil brasileiro.

Constituídas de papéis comerciais e financeiros, as vendas sobre documentos [somente agora inseridas nos arts. 529 a 532 do novo CC]

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são usuais nos negócios internacionais [conduzidos por créditos documentários, cartas de crédito e cobranças documentárias] que tenham como figurantes: o exportador e o importador.

Tendo como manto de resguardo a regulação adotada pelo Código Civil italiano, o Código Civil brasileiro de 2002 regulamenta, em apenas quatro artigos, as vendas sobre documentos.

O art. 529 do novo Código Civil trata da tradição da coisa.

In verbis: art. 529. Na venda sobre documentos, a tradição da coisa é substituída pela entrega do seu título representativo e dos outros documentos exigidos pelo contrato ou, no silêncio deste, pelos usos.

Parágrafo único. Achando-se a documentação em ordem, não pode o comprador recusar o pagamento, a pretexto de defeito de qualidade ou do estado da coisa vendida, salvo se o defeito já houver sido comprovado.34Por este artigo e pelas regras uniformes [estampadas nas brochuras nº 500 e 520], as vendas sobre documentos de exportação [ao serem revestidas de causa única, motivada pelas partes contratantes], trazem demarcadas no seu território a autoreferência operativa, para a aplicabili-dade das práticas e ordenamentos mercantis, já universalizados pelos usos.35Em passado não distante, cinqüenta anos atrás, as vendas eram convalidadas exclusivamente pela tradição. O comprador pessoalmente

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recebia o bem ou serviços das mãos do fornecedor e, incontinenti realizava o pagamento contra entrega de documentos. Essas operações eram conhecidas como "pago al contado" ou "per pronta cassa".

A evolução da prática mercantil introduziu a prestação de serviços, hoje realizada por bancos intervenientes, que ágeis atuam como cobra-dores e exeqüentes. Domesticamente, por intermédio de saque limpo; qual seja por boleto de cobrança desacompanhado de quaisquer documentos, os usuários realizam os pagamentos dos seus haveres.

No comércio internacional essa prática [a venda sobre documentos introduzida pelos fornecedores e bancos], motivou a substituição da antiga tradição de bens e serviços pelo simples encaminhamento de papéis de crédito, que são quitados no exterior mediante apresentação ao destinatário de documentos financeiros e comerciais, constitutivos do tecido pertinente da comprovação da venda e efetiva entrega da mercadoria [tais como fatura comercial, conhecimento de embarque, certificados (de origem, qualidade) e licença de exportação etc.].36Essa vertente normativa instituída no comércio exterior, da exigibilidade do saque acompanhado de documentos, tem a sua origem de transparência implementada pela necessidade das autoridades fazendárias estabelecerem, no país de destino, controles eficazes [aduaneiro, cambiário e documentário], voltados a não evasão de divisas.

Nas operações conduzidas por cartas de crédito, se os papéis comerciais encaminhados pelo banco negociador são apresentados em ordem ao banco instituidor do crédito [negociação sem discrepância], não pode o importador escusar-se do pagamento, a pretexto de defeito de qualidade ou do estado da coisa vendida, exceto se esses incidentes reversos venham a ser comprovados no desembaraço alfandegário da mercadoria.37

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Contudo, caracterizada a excepcionalidade do defeito de quali-dade ou do estado da coisa vendida [mediante laudo técnico fundamentado, acompanhado de declaração inequívoca feita pela autoridade aduaneira do país importador], o pagamento é obstado e todos os documentos são colocados à disposição do exportador. Caso contrário, ainda que tenham sido liberadas as divisas pelo banco reembolsador, estas serão estornadas em benefício do comprador, com conseqüente crédito ao banco tomador da carta de crédito [vejam as regras e usos uniformes das brochuras nos 500 e 525].38Nada obstante a inexistência de discrepância documentária, reconhecida a excepcionalidade stand-by, por vício ou defeito de qualidade do produto, o exportador diante dessa nova realidade, de conflito de incidências, perde o poder de fogo negocial e passa a dispor de apenas três opções, não honrosas, para o saneamento definitivo da pendência comercial:

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a) Conceder um desconto para que o importador seja estimulado pela manutenção da mercadoria, na forma como se encontra. Nessa renegociação de preços são compensadas as despesas de armazenagem, portuárias e outras porventura existentes. É desconfortável este desconto, pois evidencia a seqüela e o descontentamento do comprador.

b) Renegociar a mercadoria com outro importador, ainda que de país diverso. Nessa alternativa, todas as despesas do entrevero correm às expensas do fornecedor.

c) Autorizar o retorno da mercadoria, para que esta seja comercializada no país de origem. Por essa medida postrema de descrédito, conseqüente de crise de confiança ou insucesso negocial entre as partes, o prejuízo será reconhecido inteiramente em desfavor do exportador [art. 422 do C.C.].

E, finalmente, por precariedade do estado da coisa vendida [declarada a sua impropriedade para uso ou consumo], resta o comando irreverente da destruição do bem, pelas autoridades sanitárias do país de destino, com a reversão de todas as despesas portuárias direcionadas ao exportador.

De seguida, o art. 530 do atual Código Civil condiciona o lugar e o pagamento do preço.

In verbis: art. 530. Não havendo estipulação em contrário, o pagamento deve ser efetuado na data e no lugar da entrega dos documentos.39Na cobrança documentária, após o desembaraço e embarque da mercadoria, o exportador entrega ao banco os documentos comerciais representativos da negociação, acompanhados do respectivo saque, para que estes papéis sejam encaminhados ao banco cobrador, que se encarrega de obter no exterior o pagamento do importador.

Nas cobranças à vista, com o conhecimento de embarque consignado à ordem do banco cobrador, "bill of lading consignee to order", o risco de inadimplência e a impontualidade estão limitados às despesas

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de transporte e possível armazenagem no país de destino, pois a fatura comercial e demais papéis exigidos no desembaraço somente são liberados ao comprador após o pagamento das divisas ao banco consignatário.

Nada em contrário a esse momento autorizativo. De fato, nas cobranças a prazo, esses riscos passam a ser apreciáveis quando a documentação vem a ser disponibilizada contra simples aceite da cambial, pelo seu destinatário. Todavia, com mais justeza, se o aceite da letra for acompanhado de lastro quirografário ou pignoratício, em regra esta nova opção acautelatória proporciona a pontualidade e o pagamento do saque, no seu vencimento [na apresentação do título está a nascente da responsabilidade].

Sem outra escolha, quando o conhecimento de embarque for consignado a um banco [ou à ordem com endosso em branco], sendo entregue o jogo completo dos papéis comerciais, a possibilidade de prejuízo do exportador fica reduzida praticamente ao valor do frete. O importador nesta hipótese não desembaraça a mercadoria sem o original da documentação encaminhada e, por sua vez, o banco somente libera a fatura comercial e os demais papéis depois de cumpridas as obrigações sinalizadas pelo exportador [o pagamento para as operações à vista, ou o aceite acompanhado de garantia para as operações a prazo].

No entanto, em ambas as hipóteses, havendo ordenamento na carta-remessa para ser notificado o destinatário do produto aportado, é possível o protesto do saque pela falta de pagamento.

O banco cobrador ao liberar os documentos comerciais, recebidos do exterior para o desembaraço aduaneiro, simplesmente observa com redobrada atenção a existência e a exatidão da quantidade dos papéis afixados no borderô de encaminhamento.

Desse modo, nas operações amparadas por cobrança documentária e, do mesmo modo, nas negociações conduzidas por cartas de crédito, os bancos apenas recepcionam documentos e cumprem as instruções anunciadas pelo seu correspondente no exterior. Estes bancos intervenientes somente dão operacionalidade aos papéis, jamais dispõem do poder de verificação das mercadorias ou serviços negociados pelos contratantes.

Não havendo estipulação em contrário no exame das cartas-remessas e borderôs recebidos do exterior [dentro do contexto interpretativo declinado em benefício do importador], achando-se a documentação em

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ordem, pela norma cogente: a contratação de câmbio e o pagamento pertinente devem ser conduzidos na data e no lugar designados para a entrega dos documentos [leia-se o art. 530 do novo CC].40Na prática, apenas o critério fixado para a data do pagamento é visto com inteiro rigor pelas partes contratantes, sob pena de obstar o desembaraço alfandegário da mercadoria importada. Entretanto, independente de acordo prévio, o lugar da entrega dos documentos (recebidos do exterior) jamais corresponde ao da praça de pagamento da moeda estrangeira, aqui negociada. Os euros constantes da carta-remessa sempre são contabilizados na Europa, a libra esterlina na Inglaterra, enquanto em território brasileiro é feita a entrega dos papéis comerciais, pelo câmbio contratado.

E mais, poucas capitais brasileiras [com a interveniência de empresas corretoras de valores mobiliários] e outras três cidades paulistas: Campinas, Santos e Franca [com a isenção de taxas de corretagem] são praças operadoras de câmbio. Todas as demais cidades litorâneas e do interior do Brasil não estão credenciadas à contratação do câmbio e, independentemente de ajustes...

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