O dano moral coletivo como uma pena civil

AutorNelson Rosenvald
Páginas107-137
O DANO MORAL COLETIVO
COMO UMA PENA CIVIL
Nelson Rosenvald
Pós-Doutor em Direito Civil na Università Roma Tre. Pós-Doutor em Direito Societário
pela Universidade de Coimbra. Professor Visitante na Oxford University. Doutor e
Mestre em Direito Civil pela PUC/SP. Procurador de Justiça do Ministério Público de
Minas Gerais.
Sumário: 1. Introdução – 2. O dano moral coletivo – 3. A pena civil: 3.1 Noções gerais; 3.2
A sanção e a reparação; 3.3 As estremas da pena civil – 4. O dano moral coletivo como uma
pena civil – 5. Conclusão – 6. Referências.
1. INTRODUÇÃO
Devemos manter o olhar atento para as vicissitudes do direito privado. O orde-
namento jurídico não apenas protege direitos de caráter patrimonial e individual. A
tutela reparatória exorbita a bipolaridade ínsita aos dois últimos séculos e alcança
ilícitos extrapatrimoniais, mesmo de caráter grupal ou coletivo.
A temática do dano moral atravessou quatro estágios evolutivos nos últimos
26 anos. Antes da Constituição Federal de 1988 sequer era reconhecido como
modelo jurídico autônomo e portador de disciplina particular. Apenas heroicos e
difusos julgados reconheciam a incidência do dano extrapatrimonial, cada qual à
sua maneira. Em um segundo momento, com o advento da Carta Magna de 1988, o
direito à reparação pelo dano moral é integrado ao rol de direitos fundamentais da
pessoa humana, estatuindo o inciso X do art. 5º serem “invioláveis a intimidade, a
vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo
dano material ou moral decorrente de sua violação”. Na mesma toada enfatiza o inciso
V do art. 5º: “o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por
dano material, moral ou à imagem”. Não obstante o status conferido pela Constituição
Federal, a doutrina hesitante deduziu o dano extrapatrimonial de maneira negativa,
associando-o a dor, mágoa ou depressão do ofendido, amesquinhando o seu enorme
potencial e condicionando a sua conf‌iguração à subjetividade de cada vítima.
O terceiro passo consistiu no ref‌inamento do conceito do dano moral. Seja por
sua conjugação à violação de direitos da personalidade ou da própria dignidade da
pessoa humana, avulta considerar o dano extrapatrimonial como uma lesão concreta
a um interesse existencial merecedor de tutela.
No quarto estágio e naquilo que mais nos interessa, para além de um redimen-
sionamento qualitativo (já operado no terceiro passo), o dano moral adquire uma
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expansão quantitativa, albergando não apenas a ofensa à pessoa natural, mas alcan-
çando ainda o dano ref‌lexo decorrente de lesões causadas a entes queridos. Outros-
sim, passa a tutelar atributos objetivos inerentes à credibilidade de pessoas jurídicas
abaladas por danos institucionais, como a sua honra, identidade, nome e imagem.
Nessa linha, preceitua o art. 52 do Código Civil: “Aplica-se às pessoas jurídicas, no
que couber, a proteção dos direitos da personalidade”.
Ocorre que, mesmo essa quarta etapa do dano moral ainda se atém ao direito
privado individual – conferindo legitimidade ativa apenas ao sujeito singularmente
considerado, desconsiderando o novo paradigma do direito privado coletivo. Com
efeito, nos dois últimos séculos o direito privado se restringiu ao direito do indiví-
duo, mesmo que em tempos mais recentes tenha evoluído por acolher categorias de
interesses existenciais. Os grupos e classes de pessoas não eram sujeitos de direito,
quanto mais toda a coletividade.
Contudo, em uma sociedade de massa, o direito privado alcança a esfera social,
pois prevalece o princípio da solidariedade. Transitamos do sujeito isolado para o
sujeito situado”, que se coloca diante de bens públicos escassos. Isso requer uma
tutela jurídica diferenciada. Enquanto cada indivíduo titulariza a sua própria carga
de valores, a comunidade possui uma dimensão ética, independentemente de suas
partes. Ela possui valores morais e um patrimônio ideal a receber tutela. A violação
da própria cultura de certa comunidade em seu aspecto imaterial produz o dano
moral coletivo. Cuida-se de interesses afetos a uma generalidade indeterminada de
sujeitos, seja uma comunidade ou um grupo com maior ou menor grau de coesão. A
titularidade é difusa, pois, ao contrário do que se passa no direito privado individual,
não há um vínculo de domínio ou imediatismo entre a pessoa e o interesse.
Diante de uma ordem constitucional que se centra no princípio da dignidade
humana, qualquer dano injusto praticado contra interesses legítimos, mesmo que
imateriais, é intolerável. A personalidade não mais se relaciona aos aspectos internos
da pessoa, mas também a aspectos exteriores relativos às interações de grupos e da
própria coletividade com os bens imateriais, de caráter transindividual e indivisível.
Enquanto os interesses coletivos ostentam como titular um grupo de pessoas que
se reúnem em defesa de objetivos comuns, os interesses difusos correspondem a
um conjunto indeterminado e impreciso de pessoas não ligadas por qualquer base
associativa, mas que se identif‌icam em torno de expectativas comuns de uma melhor
qualidade de vida.
2. O DANO MORAL COLETIVO
Três décadas depois da Carta de 88 –, não mais se discute a existência, entre nós,
de danos morais individuais. Existem, ninguém questiona, interesses existenciais
concretamente merecedores de tutela. Ainda é polêmica, contudo, a questão do dano
moral coletivo (melhor seria denominar dano extrapatrimonial coletivo para evitar
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