A (in)viabilidade jurídica do dano moral coletivo

AutorBruno Leonardo Câmara Carrá
Páginas63-81
A (IN)VIABILIDADE JURÍDICA
DO DANO MORAL COLETIVO
Bruno Leonardo Câmara Carrá
Doutor em Direito Civil pela Universidade de São Paulo, Brasil;
Pós-Doutorado na Facoltà di Giurisprudenza da Universidade de Bolonha, Itália;
Professor pesquisador visitante da Universidade René Descartes (PARIS V), França;
Juiz Federal (TRF 5).
Sumário: 1. Dos danos morais individuais aos danos coletivos – 2. Dano moral coletivo: esboço
de um conceito – 3. Dano Moral Coletivo: o que diz o Superior Tribunal de Justiça – 4. Ilícitos
contra a Administração: a última fronteira do dano moral coletivo? – 5. O risco de uma respon-
sabilidade por mera conduta – 6. Conclusão: um tercius genus (?) – 7. Referências bibliográcas.
1. DOS DANOS MORAIS INDIVIDUAIS AOS DANOS COLETIVOS
Dentre as inúmeras transformações ocorridas no âmbito da responsabilidade
civil no ocaso do Século XIX está o início da construção argumentativa que resultaria
no reconhecimento dos danos morais. Na tradição da Common Law, por exemplo, ele
veio a ser admitido sob a categoria do Intentional inf‌liction of emotional distress, ou, tort
of outrage, reconhecido em Wilkinson v. Downton, pelo 2. QB 57 no ano de 1897. Com
ele, foi aceito pela primeira vez que a agonia, a dor pura, o abalo psíquico também eram
interesses passíveis de indenização na medida em que constituíam um abalo à integri-
dade psicossomática do indivíduo. O caso decorreu de uma brincadeira de mau gosto,
daí porque ser igualmente conhecido como outrageous tort, ou seja, o delito de ultraje.
Com efeito, o caso girou em torno de uma simples “brincadeira de mal gosto”,
onde o senhor Downton disse para a senhora Wilkinson que o marido dela havia sofrido
um grave acidente, do qual teria resultado duas pernas quebradas e que ela deveria se
dirigir ao local do acidente o mais rápido possível. A brincadeira produziu um choque
emocional violento na mulher, que f‌icou semanas sem trabalhar em decorrência de
seu estado de nervos. A ação de Downton, portanto, resultou para a vítima em grave
sofrimento emocional, mas não necessariamente produziu qualquer lesão corporal.
Ao reconhecer um dano baseado apenas em aspectos puramente psicológicos, aquele
tribunal iniciaria o processo de admissão dos danos morais na Inglaterra por meio da
noção de dor e sofrimento (pain and suffering), hoje, aliás, já bastante modif‌icada, mas
que foi a base para evolução dos danos extrapatrimoniais naquela tradição jurídica.1
1. Sobre o assunto cf.: ROGERS, W. V. H. Winf‌ield and Jolowicz on Tort. 17. ed. Sweet & Maxwell: London,
2006, p. 51-81; HUNT, C. (2015). WILKINSON V DOWNTON REVISITED. The Cambridge Law Journal,
74(3), 392-395. doi:10.1017/S0008197315000793.
DANO MORAL.indb 53 20/03/2019 11:41:07
BRUNO LEONARDO CÂMARA CARRÁ
54
Na França, alguns autores costumam aludir a um aresto datado de 25 de junho
de 1833, das Câmaras Reunidas de sua Corte de Cassação, para reivindicar posição
vanguardista no processo de admissão dos danos morais. Assim, por exemplo, explica
Patrice Jourdan que os argumentos conhecidamente contrários ao seu reconheci-
mento nunca causaram demasiada impressão naquele famoso tribunal, que sempre
teve uma natural propensão para admitir, no âmbito conceitual do art. 1382 do Code
os danos extrapatrimoniais.2
Na realidade, a frase é contestada por outra parte da doutrina gaulesa, que con-
sidera que a menção feita aos préjudices moraux constantes daquele julgado resultou
mais da fala do Advogado-Geral que of‌iciou no caso que, propriamente, dos argu-
mentos deduzidos pelos juízes.3 Há absoluto consenso, entretanto, no sentido de que
pelo acórdão de sua Câmara Civil, 13 de Fevereiro de 1923, no Affaire Lejars contre
Consorts Templier, o dano moral resultou plenamente admitido na práxis judiciária
francesa. Nesse caso, o elevado tribunal expressamente reconheceu que o legislador
não havia def‌inido o que seria ou não seria dano, devendo a jurisprudência realizar
tal função.4 Assim, como também ocorreria em relação à responsabilidade objetiva
baseada no fato da coisa, a Corte concluiria que as hipóteses de dano descritas no
Código Napoleão seriam meramente exemplif‌icativas, ou seja, não exaustivas.
Do mesmo modo que Wilkinson v. Downton, em Lejars contre Consorts Templier
abre-se a perspectiva de indenização do que ainda atualmente é conhecido na sis-
temática francesa como dano moral puro, ou seja, aquele com feição estritamente
psicológica, sem ref‌lexos corporais. Ainda em relação ao caso francês é interessante
observar que a argumentação levada a efeito pela Corte de Cassação deu, depois de
cem anos, plena concretude à ideia de cláusula geral enunciada no Código de 1804.
De fato, o art. 1.382 limitou-se a enunciar que todo e qualquer fato humano que
causasse um dano a outro obrigava aquele pela culpa de quem ele foi ocasionado a
repará-lo (art. 1.382).5 Através desse singelo expediente, o Code alterou a lógica até
então prevalente de vincular um dano específ‌ico pela violação de um interesse jurí-
dico também especialmente tipif‌icado. Nesse contexto, histórico discurso de Jean
2. “La jurisprudence en tout cas ne s´est jamais montrée impressionné par les objections élevées contre la réparation
du préjudice moral et l´admet sans hésitation depuis un arrêt des chambres réunies de la Cour de cassation
du 25 juin 1833 (S. 1833, 1, 458). Elle a ainsi alloué de façon libérale des indemnités réparant toutes sortes
d´atteintes à des intérêts extrapatrimoniaux, as seule préoccupation ayant été de limiter par divers moyens.”
(JOURDAN, Patrice. Les principes de la responsabilité civile. 6. ed. Paris: Dalloz, 2003, p. 121).
3. BRUN, Philippe. Responsabilité Civile Extracontractuelle. 4. ed. Paris, Lexis Nexis, 2016. p. 147.
4. Nesse sentido: « De principe, l’indemnisation des conséquences extrapatrimoniales d’une atteinte corpo-
relle n’est depuis longtemps plus discutée, tant à l’égard des victimes directes que des victimes par ricochet
(Cass. civ., 13 février 1923: a douleur éprouvée par les enfants d’une personne, morte victime d’un accident,
suff‌it, en l’absence de tout préjudice matériel, pour permettre à ces enfants d’exercer contre l’auteur de l’ac-
cident une action en dommages-intérêts) » (PIERRE, Philippe. L’indemnisation du préjudice moral en Droit
français Synthèse. Disponível em: g/fr/wp-content/uploads/2014/01/
prejudice_moral_etude-fr.pdf.> Acesso em: 29 jun 2018).
5. No original: “Tout fait quelconque de l’homme, qui cause à autrui un dommage, oblige celui par la faute duquel
il est arrivé à le réparer.
DANO MORAL.indb 54 20/03/2019 11:41:07

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT