Das leis à história: direito, política e causalidade histórica em Montesquieu

AutorIsadora Eller Freitas de Alencar Miranda, Igor Moraes Santos
Páginas193-229
CAPÍTULO 8
Das leis à história:
Direito, política e causalidade
histórica em Montesquieu
Isadora Eller Freitas de Alencar Miranda1
Igor Moraes Santos2
Introdução
O presente artigo tem por escopo desbravar caminhos introdutó-
rios ao pensamento político-jurídico de Charles-Louis de Secondat, Ba-
rão de La Brède e de Montesquieu, especialmente quanto à relação traçada
pelo autor entre as leis, as formas de governo, a liberdade e a história.
A partir de extensa pesquisa sobre as principais obras de Mon-
tesquieu3, bem como da literatura especializada, analisar-se-á o caráter
multidisciplinar e a originalidade fundante de suas reexões: dono de
incansável curiosidade, o lósofo de Bordeaux almejava compreender o
homem em sua totalidade. Para tanto, estudou pormenorizadamente as
leis e sua adequabilidade às organizações políticas de cada sociedade,
traçando ainda paralelos entre a realidade física e as manifestações do
caráter de determinado povo. Dotada do brilhantismo próprio dos gran-
des gênios, os trabalhos do Senhor de La Brède permanecem como refe-
rencial singular em discussões como a separação entre Direito, moral e
religião; os limites da intervenção estatal; os tipos de organização políti-
¹ Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Minas Gerais.
² Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Minas Gerais.
³ Sobre as três principais obras de Montesquieu, desde logo adotaremos a seguinte forma de re-
ferência: título, livro e/ou capítulo. As páginas estarão indicadas na sequência e são referentes às
edições: O espírito das leis. Trad. Cristina Murachco. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005 (inclui
Defesa do Espírito das Leis); Cartas persas. Trad. Mário Barreto. Belo Horizonte: Itatiaia, 1960; Consi-
derações sobre as causas da grandeza dos romanos e da sua decadência. Introdução, tradução e notas de
Pedro Vieira Mota. São Paulo: Saraiva, 1997.
194 • Capítulo 8 - Das leis à história: Direito, política e causalidade histórica em Montesquieu
ca; e até a formulação das leis penais. Todos esses diferentes aspectos es-
tão consubstanciados pela história, segundo uma ideia de causalidade.
A originalidade dessa articulação é justamente o que faz perma-
nente a relevância de Montesquieu e, com isso, torna pertinente o artigo
em epígrafe, não obstante as inúmeras contribuições já existentes. As-
sim, apesar da ciência da impossibilidade de esgotamento, o presente
trabalho investiga o pensamento do lósofo bordelês, iniciando-se pelas
circunstâncias que propiciaram sua construção, para, enm, vislumbrar
a magnitude de sua obra, ainda hoje, intacta.
1. Montesquieu entre razão e ciência no Século das Luzes
Da Renascença do século XV, ou ainda antes, até as profundas
transformações provocadas pela losoa cartesiana no século XVII, im-
portantes mudanças ocorreram no conjunto da vida intelectual4. No sé-
culo XVIII, o homem continua a caminhar em direção à descoberta do
mundo e de si próprio, orientando-se agora para a derrubada da antiga
ordem teológico-metafísica, dos velhos cultos e instituições, das supers-
tições e dos medos. No lugar, pretende colocar a razão, por meio da qual
ele pode se libertar dos instintos animalescos e das autoridades intelec-
tuais corroídas e vazias, para, enm, trilhar um caminho autônomo em
direção a uma suposta Verdade.
A Ilustração é a proposição humana não apenas de novas metas
para o pensamento, mas para conhecer, e mais, para assumir a condução
do curso da história. Como expansão quantitativa e qualitativa do co-
nhecimento, o faz para diferentes sentidos, ligados por uma força motor
comum em desenvolvimento e desdobramento, a razão, que, como sus-
tenta Cassirer, “é o ponto de encontro e o centro de expansão do século,
a expressão de todos os seus desejos, de todos os seus esforços, de seu
querer e de suas realizações”5 Há uma fé na unidade e na imutabilidade
da razão, considerada como a mesma para todo indivíduo pensante, em
qualquer nação e tempo, mas o que não signica uniformidade nas ma-
nifestações ilustradas.
Observa-se a relevância das obras dos intelectuais ingleses nos
séculos XVI e XVII para a fundação dos marcos das ciências modernas,
seja com Bacon e Newton, seja com Hobbes e Locke, estes últimos no
⁴ CASSIRER, Ernst. A losoa do iluminismo. Trad. Álvaro Cabral. Campinas: Editora da UNICAMP,
1992. p. 19.
Ibid., p. 21-23.
Isadora Eller de Alencar Miranda & Igor Moraes Santos • 195
plano político. O século XVIII recebe essa gigantesca carga, assinalada
por fortes traços empiristas. O Enlightenment, na Grã-Bretanha, continua
esse legado, de David Hume a Adam Smith. No entanto, no continente,
ela não é simplesmente absorvida, sendo-lhe agregados caracteres pró-
prios de uma tradição racionalista bem assentada, no mínimo, em Des-
cartes e, posteriormente, Leibniz. Assim, se por alguns autores há uma
adesão clara a uma das duas correntes, outros buscarão conciliá-las, ta-
refa assumida, e. g., por Kant. Já na França, os Lumières estão inuencia-
dos principalmente pela segunda linha. Razão, progresso e liberdade
são ideias que fervilham entre os frequentadores dos meios letrados.
Ademais, a experiência histórica francesa é fator signicativo, tendo em
vista, entre outros aspectos, o peso do absolutismo monárquico. Assim,
a losoa desenvolvida pelos franceses, em contato com o empirismo
inglês, ganha mais maleabilidade do que a permitida pelo cartesianis-
mo, “confere vivacidade tanto à ideia de verdade quanto à noção de Fi-
losoa”6. Sem retirar o brilho do Enlightenment inglês, da Aulärung ale-
mã e de outros movimentos iluministas, os Lumières reluziram mundo
afora, notadamente por seu teor propagandista7, de Rousseau e Voltaire
a Condorcet e D’Alembert. Entre os grandes nomes da primeira geração
da Ilustração francesa destacou-se Charles-Louis de Secondat, Barão de
La Brède e de Montesquieu.
Em fevereiro de 1755, num contexto de relativa tranquilidade
para o continente europeu, o seguinte obituário fora publicado pelo Lor-
de de Chestereld, no London Evening-Post8:
Morreu em Paris o S. de Secondat, Barão de Montesquieu (...)
estimado por todas as nações da Europa, nas quais sua obra
(...) estendeu-se, por meio de numerosas edições, e traduções
em diversas línguas; mas principalmente em seu próprio país,
no qual ele se esforçou, com sucesso, para libertar de muitos
preconceitos e erros, tanto na esfera civil quanto na eclesiástica
(...) ele é, e deve ser reverenciado por nós, cuja Constituição ele
julgou ser a melhor que a Razão poderia conceber, e as paixões
humanas poderiam admitir.9
⁶ SANTOS, Antônio Carlos dos. A Filosoa e o losofar francês no século XVIII. Sapere Aude, Belo
Horizonte, v. 1, n. 1, p. 84-95, 2010. p. 91.
⁷ MAYOS, Gonçal. Macrolosofía de la Modernidad. Barcelona: dLibro, 2012. p. 70.
⁸ Mais tarde, naquele mesmo ano, a Europa presenciou um dos piores abalos sísmicos de sua his-
tória moderna: trata-se do Terremoto de Lisboa, que acarretou a morte de aproximadamente trinta
mil pessoas.
⁹ GONTIER, Ursula Haskins. Montesquieu and the England:Enlightened Exchanges, 1689-1755. Lon-
dres: Pickering & Chao, 2010. (Tradução nossa).

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