Debates atuais sobre a identificação do dano moral

AutorAlexandre Pereira Bonna
Páginas71-100
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DEBATES ATUAIS SOBRE A
IDENTIFICAÇÃO DO DANO MORAL
4.1 O QUE NÃO É DANO MORAL: COMO IDENTIFICAR O MERO DISSABOR/
ABORRECIMENTO E BENS EXTRAPATRIMONIAIS QUE NÃO SÃO
PROTEGIDOS?
De forma didática e clara, há duas situações em que não está presente o dano moral:
a) quando o interesse existencial não é protegido juridicamente; b) quando o interesse
existencial é protegido juridicamente, mas a violação se deu em uma intensidade mínima
e compatível com aborrecimentos do cotidiano. Quanto a primeira hipótese, sabe-se
que o conceito de dano está umbilicalmente ligado à noção de interesse juridicamente
protegido, uma vez que quando o direito reivindica para si a tutela de um bem sabe-se
que o respeito por esses interesses (agora juridicamente protegidos) se torna obrigató-
rio e coercitivo, excluindo razões pessoais para descumpri-lo. É por isso que as pessoas
podem frustrar o interesse patrimonial de uma padaria a partir da inauguração de outra
no mesmo bairro com mais qualidade e menor preço; que os amigos do bairro podem
quebrar o interesse econômico do único advogado daquela localidade de ser contratado
para as demandas judiciais; que os vizinhos de alguém que deseje receber bom dia e
boa noite todos os dias podem violar esse interesse extrapatrimonial; que a namorada
de alguém pode dizer que não irá ao cinema hoje e desapontar o parceiro quanto a esse
projeto; que os familiares podem se desobrigar de ligar uns para os outros para desejar
feliz aniversário, quebrando expectativas de lembranças.
Isto é assim porque todos os interesses patrimoniais ou extrapatrimoniais acima
identif‌icados não são juridicamente protegidos e qualquer achatamento dos mesmos
não se revela como dano injusto (contrário ao direito). De outro lado, a ninguém é
dada a escolha de violar sem justif‌icativa a integridade física ou psíquica de outrem;
de frustrar o interesse dos nubentes de que a festa ocorra como o pactuado com a
casa de recepção; de achatar a pretensão de um empregado de receber seus salários
na data aprazada e possuir condições adequadas de segurança no trabalho; de ignorar
o desejo de um consumidor de que um imóvel adquirido esteja em harmonia com
o projeto; de vilipendiar a intimidade de outrem a partir da publicação de vídeos
íntimos em rede social. Isto se explica porque acima se encontram interesses pro-
tegidos juridicamente, e, portanto, gozam de autoridade, coercibilidade e excluem
outras razões pessoais para a ação.
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DANO MORAL • ALEXANDRE PEREIRA BONNA
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Portando, em um sentido amplo, dano é a violação a um interesse, patrimonial
ou existencial, concretamente merecedor de tutela jurídica, entendido como aquele
que historicamente foi construído por uma comunidade política como digno de
proteção, de modo que não existe rol de interesses jurídicos pretensamente válido
para todos os casos (FARIAS; BRAGA NETTO; ROSENVALD, 2015, p. 232), ha-
vendo uma verdadeira cláusula geral de reconhecimento de danos a partir dos arts.
186 e 927 do Código Civil de 2002 (Lei Federal n. 10.406/2002, de agora em diante
CC/2002), que asseveram que aquele que causa dano a outrem comete ato ilícito e
f‌ica obrigado a repará-lo, quando o dano for merecedor de tutela.
A cláusula geral é uma técnica que busca combater o engessamento da norma
jurídica a partir de um caráter descritivo da norma, possuindo textura mais aberta que
as regras convencionais. Ou seja, em contraposição às regras específ‌icas, as cláusulas
gerais “son reglas com sentido amplio” (CARRIÓ, 1994, p. 225) e extremamente
úteis porque “os legisladores humanos não podem ter conhecimento de todas as
possíveis combinações de circunstâncias que o futuro pode trazer” (HART, 1994,
p. 141). Assim, são marcadas por uma lógica distante da casuística, que é “aquela
conf‌iguração da hipótese legal que circunscreve particulares grupos de casos na sua
especif‌icidade própria” (ENGISHC, 2001, p. 229).
Tal cláusula geral se agiganta quando se está diante do chamado dano moral,
na medida em que enquanto o dano material é a violação a um interesse patrimonial
digno de tutela, o dano moral é a violação a um interesse existencial merecedor de
proteção jurídica (FARIAS; BRAGA NETTO; ROSENVALD, 2015, p. 296). E, neste
cenário um sem número de valores existenciais protegidos pelo direito surgem para
embasar o chamado dano moral, como por exemplo a dignidade humana (art. 1º,
III, CF/88); vida, liberdade, igualdade, intimidade, vida privada, honra, imagem
(art. 5º, caput e incisos V e X, CF/88); fraternidade e solidariedade (preâmbulo e art.
3, I, CF/88); saúde física e mental (art. 196, CF/88); os direitos da personalidade,
como o corpo, a vida, o nome e a vida privada (arts. 11 a 21 do CC/2002) dentre
outros que são corolários dos mesmos, como o interesse ao projeto de vida – que
advém como consequência direta da liberdade porque por ato injustif‌icado de outra
pessoa, a vítima deve refazer o curso de sua vida que já estava bem delineado por
sua autodeterminação e escolhas visando a um f‌im1 – e o direito à paz, sossego e
tranquilidade – que se extrai a partir do valor da saúde mental.
1. Nesse sentido, o julgamento do Caso Cantoral Benavides vs Peru, julgado pela Corte Interamericana de
Direitos Humanos em 3 de dezembro de 2001: “os fatos deste caso ocasionaram uma grave alteração do
curso que, normalmente, teria seguido a vida de Luis Alberto Cantoral Benavides. Os transtornos que esses
fatos lhe impuseram, impediram a realização da vocação, das aspirações e potencialidades da vítima, em
particular no que diz respeito à sua formação e ao seu trabalho como prof‌issional. Tudo isso tem represen-
tado um sério prejuízo para o seu ‘projeto de vida’“. Fonte: http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/
Seriec_69_esp.pdf. Acesso em: 07.09.2012.
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