Fundamentação filosófica do dano moral e do dever de compensálos

AutorAlexandre Pereira Bonna
Páginas123-159
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FUNDAMENTAÇÃO FILOSÓFICA
DO DANO MORAL E DO DEVER
DE COMPENSÁ-LOS
6.1 FUNDAMENTOS FILOSÓFICOS DA FUNÇÃO COMPENSATÓRIA
A partir da leitura jurídica, no capítulo anterior, verif‌icou-se que o dano moral
é marcado por uma busca calcada em bens extrapatrimoniais que possam ter sido
violados. Constatou-se que os bens extrapatrimoniais juridicamente protegidos
estão espalhados pelo direito positivo, contudo são abstratos e gerais. Nesse aspecto
surge um perigo de que a cláusula geral que subjaz toda a racionalidade do dano
moral seja utilizada para excluir detalhes relacionados à vítima que prejudicam a
proteção da pessoa humana em sua inteireza nas circunstâncias concretas. Deste
modo, se o valor da pessoa humana é o que orienta todo o arcabouço jurídico do
dano moral, em uma base humanista do direito, a hermenêutica do dano moral
deve estar atenta para as contingências e transformações da sociedade para o f‌im
de identif‌icar o desequilíbrio injusto em toda a sua magnitude. Outrossim, não se
pode manusear os valores abstratos da ordem jurídica perdendo de vista a ratio por
trás dos mesmos, sob pena de desviar injustamente interesses tuteláveis e aspectos
fundamentais da quantif‌icação do dano moral, e, para esse desiderato tem muito a
dizer a leitura ética a partir de agora explanada.
É como se cada ser humano fosse envolto em uma bolha que contivesse um
conjunto de bens patrimoniais e existenciais dignos de proteção jurídica e toda vez
que por ato de outrem essa bolha fosse furada e vilipendiada, surgirá para o ofensor
o dever de corrigir tal desequilíbrio injusto. O conhecimento dessa bolha que possui
os interesses protegidos pelo direito perpassa pela ordem jurídica subjacente e a
dimensão normativa válida, de modo a justif‌icar que em uma comunidade política
específ‌ica aquela intromissão na esfera jurídica de outrem não é tolerada. Aliás, acen-
tua Cláudio Michelon, “a lei positiva é uma condição necessária para que argumentos
que invocam justiça particular façam sentido” (Tradução Livre) (2014, p. 272).
Para assimilar melhor a leitura ética do dano moral é inarredável um retrospec-
to acerca da justiça corretiva, a qual explica os remédios da responsabilidade civil
diante de um dano (reparação, em se tratando de dano material, e compensação,
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DANO MORAL • ALEXANDRE PEREIRA BONNA
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para danos morais1) a partir da ideia de que ambas as partes possuem uma igualdade
de status normativo dentro dos direitos reconhecidos pela ordem jurídica. Deste
modo, o reconhecimento de um dano moral indenizável lança os olhos para a base
normativa dos bens existenciais (vida, honra, igualdade, liberdade, intimidade etc.)
e a quantif‌icação da indenização penetra na magnitude do desequilíbrio causado a
esses interesses protegidos, o que pode ser melhor compreendido pelos conceitos
de personalidade e correlatividade desenvolvidos por Ernest Weinrib (2012).
A correlatividade ref‌lete “que ofensor e vítima respectivamente f‌izeram e sofre-
ram a mesma injustiça, de modo que a responsabilidade é uma concepção de justiça
que reconhece a igualdade normativa das partes e trata suas posições uma como o
espelho da outra” (Tradução Livre) (2012, p. 10). Nesse sentido, todo o processo de
justif‌icativa da imposição de uma indenização percorrerá esse caminho, pressupondo
que entre as partes, independentemente de contrato, existe uma relação normativa
que exige a inviolabilidade de bens materiais e existenciais, e eventual violação de
direitos representa desequilíbrio injusto que merece correção.
De igual forma, a ideia de correlatividade também é importante para compre-
ender que o dano e a ofensa são duas faces da mesma moeda, na medida em que o
direito violado da vítima corresponde a um dever do ofensor de não interferir inde-
vidamente no mesmo. Assim, direito e dever estão conectados na medida em que o
direito da vítima é a base do dever do ofensor, assim como o dever de abstenção do
ofensor está relacionado com o direito de não interferência da vítima (WEINRIB,
2012, p. 11).
Contudo, a correlatividade não é o único componente jurídico da noção de
justiça corretiva, que necessita da compreensão da personalidade. A personalidade é
apresentada como o que é normativamente signif‌icante na interação das partes para
f‌ins de responsabilidade, ou seja, como o conjunto de direitos e deveres que formam
o conteúdo do direito privado. Em outras palavras, a personalidade demonstra que
o campo de liberdade do agir das partes está envolvido em um “sistema de deveres
negativos de não interferência indevida nos direitos dos outros” (Tradução Livre)
(WEINRIB, 2012, p. 15). Correlatividade e personalidade, assim, se interpenetram:
Assim como a correlatividade exibe a estrutura das justicativas que pertence ao direito privado,
então a personalidade articula o pressuposto de que informa o conteúdo dessas justicativas.
Correlatividade e personalidade fazem parte do mesmo campo teórico em diferentes dimensões
(Tradução Livre) (WEINRIB, 2012, p. 15).
Portanto, a justiça corretiva buscará restaurar tanto quanto possível o dano
injustamente causado por uma das partes, tentativa esta que se fosse perfeita resta-
beleceria a posição inicial de igualdade normativa das partes (initial positions to two
1. Ernest Weinrib deixa claro que o papel da justiça corretiva se opera tanto em relação a violação de direitos
patrimoniais como de direitos não patrimoniais, que ele chama de non-proprietary, in personam (2012,
p. 189).
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equal lines/restoration of the original equality of the two lines) (WEINRIB, 2012, p.
16). Em se tratando de danos morais o valor da indenização sempre será uma forma
de atenuar o mal causado, sem ter o condão de restaurar integralmente o equilíbrio
anteriormente existente. Contudo, mesmo a justiça corretiva tendo uma tarefa mais
árdua no campo do dano moral, ainda assim é preciso levar à sério a dimensão nor-
mativa da vítima, no sentido de investigar tudo aquilo de interesse juridicamente
protegido que lhe foi afetado. A indenização é um remédio que visa a impor uma
obrigação destinada a recompor os direitos da vítima, e, tanto quanto possível, lhe
dar o equivalente aos seus direitos e interesses violados. A justiça corretiva tem essa
ambição com enfoque sério na dimensão normativa interna violada (WEINRIB,
2012, p. 35).
Isso implica em mergulhar a fundo na identif‌icação de todos os interesses ju-
rídicos violados, e, ao mesmo tempo, na compreensão da magnitude dos danos, de
modo a possibilitar não somente a caracterização de um dano como indenizável,
mas também de proporcionar um valor monetário equivalente ou proporcional à
total extensão normativa dos danos, da forma mais aproximativa possível. Vê-se, por
exemplo, um caso envolvendo violência doméstica com agressões verbais e físicas por
anos a f‌io, quantos interesses merecedores de tutela foram violados? São interesses
que vão desde a saúde física e mental, até aspectos relacionados à honra subjetiva,
projetos de vida, perda do prazer de realizar atividades etc. É por esse motivo que
é justo em tais casos que o valor da indenização f‌ixado pelo juiz cível ou criminal
possibilite a penhora dos bens do casal em favor da vítima, em caso de divórcio a
penhora incidindo sobre a parte que caberia ao cônjuge agressor.
Dentro dessa perspectiva teórica, inicia-se um percurso pelo qual será de-
monstrada a necessidade de a justiça corretiva ser complementada pela ideia de
bens humanos básicos, especialmente para os casos envolvendo danos morais. Em
primeiro lugar, o dano moral está imbrincado com direitos personalíssimos, ou seja,
direitos inatos no sentido de que não são adquiridos. Assim, há uma diferença entre
direitos que se adquire (acquired right) e direitos que possuímos pela nossa própria
existência (innate right, in personam), estando os danos morais relacionados a este
último tipo de direito: “direitos inatos são direitos que temos em virtude de nossa
própria existência e que não precisamos fazer nada para adquiri-los, como é o caso
do nosso corpo, mente e liberdades. Os direitos adquiridos são objeto de escolhas
e possuem uma relação externa com a pessoa” (Tradução Livre) (WEINRIB, 2012,
p. 222).
Nesse sentido, os bens existenciais que se ajustam ao cabimento do dano moral
são manifestações daquilo que o ser humano possui de mais básico e que viabilizam
o f‌lorescimento do mesmo em seus f‌ins particulares. Daí é que sem paz, vida, saúde,
liberdade, honra, imagem, intimidade e privacidade, por exemplo, o ser humano
não pode perseguir sem tumultos os seus múltiplos propósitos de vida, pois aqueles
constituem pressuposto para uma a consecução de f‌ins individuais, que sempre devem
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