Delimitação da incidência do direito de herança

AutorRaquel Helena Valesi
Páginas7-81
Capítulo 1
Delimitação da incidência do
direito de herança
Para se analisar o direito sucessório, cumpre aqui ofere-
cer clareza no modo como o assunto é frequentemente ver-
sado. Em primeiro lugar, justifica-se a sucessão? Se etimo-
logicamente a palavra sucessão — do latim successio, do
verbo succedere (sub + cedere), substituir alguém —, em
sentido amplo, diz respeito ao ato pelo qual uma pessoa as-
sume o lugar de outra, substituindo-a na titularidade de de-
terminados bens, como deve ser organizado este instituto
quanto aos beneficiários e à intensidade dos respectivos di-
reitos deixados pelo de cujus? O que fundamenta e justifica
a transmissão de bens pela sucessão?
De tempos em tempos a transição legislativa surge sem-
pre renovando o debate sobre os fundamentos do direito
sucessório como forma de justificar a transmissão da titula-
ridade de direitos e obrigações que compunham o acervo
da pessoa que falece. Se observarmos o processo histórico,
verificamos que o fundamento da sucessão modificou-se ao
longo dos tempos por ter sido influenciado pelos movimen-
tos econômicos e sociais. O que não se modificou, entre-
tanto, foram os pressupostos para haver direito sucessório,
quais sejam: a morte e a vocação hereditária.
Apesar de tratarmos com maior precisão a historicida-
de no item 1.1, o fundamento mais antigo da transmissão
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hereditária é de ordem natural e também religiosa, pois o
sucessor ocupava o lugar do pater familia falecido, dele
herdando tanto o poder sobre o núcleo familiar regido pelo
acervo patrimonial quanto das obrigações religiosas, o que
o tornava responsável pelo culto aos antepassados e aos
deuses domésticos.
Se não fosse só por esse argumento haveria também
uma justificativa biológica, ou seja, a necessidade da conti-
nuidade da vida humana e de fatores biopsíquicos que leva-
vam a garantia da unidade familiar4. Todavia, parece-se
que, o que mais justifica o Direito das Sucessões é o alinha-
mento entre o direito de propriedade e o direito de família.
Sem dúvida, mesmo na história da humanidade, o funda-
mento da transmissão causa mortis está além da mera ex-
pectativa de continuidade patrimonial, não só da manuten-
ção dos bens na família como forma de acumulação de ri-
quezas, de estímulo da poupança, do trabalho e da econo-
mia, mas também pelo fator de proteção, coesão e de per-
petuidade da própria família5.
Nesse mesmo entendimento, acompanha o direito ar-
gentino. A referida legislação estrangeira alinha-se à ideia
de que o fundamento do direito sucessório deve estar na fa-
mília e no direito de propriedade como um direito natural.
A sucessão legítima deriva do domínio eminente da família
e que as “coisas” devem ter um destino quando do faleci-
mento de seu titular, pois senão haveria uma desordem so-
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4 HIRONAKA,Giselda Maria Fernandes Novaes; CAHALI, Francisco
José. Direito das sucessões. 3.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p.
20.
5 ITABAIANA DE OLIVEIRA, A.V. Tratado de direito das sucessões.
São Paulo: Max Limonad, 1952, v. I, p. 50.
cial e o direito sucessório serve para adotar a direção sobre
quem e de que modo continuarão as situações jurídicas
após a morte de uma pessoa6.
As doutrinas italiana, francesa e portuguesa também re-
cepcionam que o direito sucessório garante o acesso à pro-
priedade privada e que é determinante a relação familiar
para justificar o acesso dela aos herdeiros7, 8. O artigo 2.024
do Código Civil português, por exemplo, prescreve que a
sucessão é o “chamamento de uma pessoa ou mais pessoas
à titularidade das relações jurídicas patrimoniais de uma
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6 “El fundamento de la sucesión intestada justifica del domínio eminente
de la família y que en tanto la personalidade de los hijos constituye una ema-
nación la de sus padres. La sucesión se basa en el afecto y en el deber que los
padres tienen que cumplir com relación a los hijos [...]Éstos, para subsistir,
han de ejecer certo poderio sobre las cosas materiales y anudar um destino
al fallecimiento de su titular, pues la extición de todos seria una fuente de
desordenes sociales y obstáculo inseparable para el tráfico. De ahí la neces-
sidade de la sucessión mortis causa” (ZANNONI, Eduardo. Derecho de las
sucessiones. 3.ed. Buenos Aires: Editora Astrea de Alfredo Y Ricardo Depal-
ma, 1982, T. 1, p. 28-30).
7 HAUSER, Jean; HUET-WEILLER, Danièle. Traité de droit civil: la fa-
mille. 2.ed. Paris: Librairie générale de droit et de Jurisprudence, 1993, p.
4-5.
8 “Ma questo potere è sempre stato limitato, in maggiore o minor misura,
da disposizioni poste a tutela della famiglia. E vi sono stati ordinamenti giu-
ridici nei quali fu esclusa qualsiasi possibilità di disporre a causa di morte,
essendo stabilito che il patrimônio ereditario dovesse trasmettersi necessa-
riamente a determinante familiar” (TRIMARCHI, Pietro. Istituzioni di Di-
ritto Privato. Milano: Giuffrè Editore, 1996, p. 890). Tradução livre para o
texto acima: Com relação a este poder sempre foi limitada, em maior ou
menor grau, por disposições destinadas a proteger a família. E havia jurisdi-
ções em que foi descartada qualquer possibilidade de ter uma causa de mor-
te, sendo determinado que a propriedade deve necessariamente ser transmi-
tida na determinação familiar. Cf. CUNHA GONÇALVES. Tratado de di-
reito civil: comentários ao Código Civil português. Coimbra: Coimbra edito-
ra, 1929, v. 1, p. 15.

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