Questões pertinentes de acesso à herança numa visão civil-constitucional

AutorRaquel Helena Valesi
Páginas83-214
Capítulo 2
Questões pertinentes de acesso à herança
numa visão civil-constitucional
O Direito Civil, ao longo de sua história no mundo ro-
mano-germânico, como se viu, sempre foi identificado
como o locus normativo privilegiado do indivíduo, enquan-
to tal. Nenhum ramo do direito era mais distante do Direi-
to Constitucional do que ele. Em contraposição à constitui-
ção política, era cogitado como constituição do homem co-
mum, máxime após o processo de codificação liberal165.
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165 O Estado liberal tem fortes laços na Revolução Francesa, uma conota-
ção histórica de marcantes colorações liberais e burguesas. Constituiu-se de
regras e fundamentos inamovíveis, direitos e garantias intransponíveis, a fim
de que não houvesse “quebra de continuidade institucional” (golpes milita-
res ou constitucionais) e, assim, também poder salvaguardar o Estado de Di-
reito contra o poder estatal sem muita intervenção na ordem econômica
apenas conter excessos. Esse mecanismo de autopreservação do que há de
liberal no Estado pode ser entendido ou exemplificado pelas cláusulas pé-
treas. O Estado Liberal perdurou até a década de 1930, na virada da quebra
da bolsa de valores de Nova Iorque, EUA, ou anos 50-60, com o Welfare
State. A partir deste momento, o Estado Liberal passa a intervir de maneira
mais acirrada na economia (New Deal), que fez gerar o chamado Estado So-
cial. Em suma, o Estado liberal é um Estado absenteísta e o Estado Social
mantém-se pela via do protecionismo. Contudo, deve-se frisar que ambos
são representantes típicos do Estado Capitalista, o que se confirma pelo fato
de que o Estado Social foi gerado em função da Revolução Russa (1917),
como oposição ao socialismo. BOBBIO, Norberto. Teoria geral da política:
a filosofia política e as lições dos clássicos. Organizado por Michelangelo Bo-
vero. Trad. Daniela Beccaccia Versiani. Rio de Janeiro: Campus, 2000. Cf.
Sua lenta elaboração vem perpassando a história do direito
romano-germânico parecendo infenso às mutações sociais,
políticas e econômicas com que conviveu. Parecia que as
relações jurídicas interpessoais não seriam afetadas pelas
vicissitudes históricas, permanecendo válidos os princípios
e pouco importando que tipo de constituição política fosse
adotada.
Tradicionalmente o Direito Civil formulou-se no Códi-
go Napoleão, em virtude da sistematização nele operada e
que veio a ser adotado pelas codificações do século XIX.
O Direito Civil foi identificado, a partir daí, com o pró-
prio Código Civil, que regulava as relações entre as pessoas
privadas, seu estado, sua capacidade, sua família, a proprie-
dade, sendo estas últimas fundamentais para o direito su-
cessório, consagrando-se, afinal, como o reino da liberdade
individual166.
Concedia-se a tutela jurídica para que o indivíduo, iso-
ladamente, pudesse desenvolver com plena liberdade a sua
atividade econômica. As limitações eram as estritamente
necessárias a permitir a convivência social.
Neste universo jurídico, as relações do Direito Público
com o Direito Privado apresentavam-se bem definidas. O
Direito Privado insere-se no âmbito dos direitos naturais e
inatos dos indivíduos. O Direito Público é aquele emanado
pelo Estado para a tutela de interesses gerais. As duas esfe-
ras eram quase impermeáveis, atribuindo-se ao Estado o
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BONAVIDES, Paulo. Teoria do Estado. 4.ed. São Paulo: Malheiros Edito-
res, 2003, e LOCKE, John. Carta sobre a tolerância. Lisboa-Portugal: Edi-
ções 70, 1987.
166 BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico. São Paulo: Ícone Editora
Ltda., 1996, passim.
poder de impor limites aos direitos dos indivíduos somente
em razão de exigências dos próprios indivíduos.
Nada mais diverso da concepção moderna, ou seja, a
feição do Direito Civil, simplesmente, como uma série de
regras dirigidas a disciplinar algumas das atividades da vida
social, idôneas a satisfazer os interesses dos indivíduos e de
grupos organizados, através da utilização de determinados
instrumentos jurídicos. O campo de Direito Civil (propria-
mente dito), sua real nota sonante, era a defesa da posição
do indivíduo frente ao Estado, alcançável através da predis-
posição de um elenco de poderes jurídicos que lhe assegu-
rava absoluta liberdade para o exercício da atividade econô-
mica.
O sustentáculo fundamental do liberalismo que, pres-
suposta a separação entre o Estado e a sociedade civil, rele-
gava ao Estado a tarefa de manter a coexistência pacífica
entre as esferas individuais, para que atuassem livremente,
conforme suas próprias regras, entrou em crise desde que o
Poder Público passou a intervir quotidianamente na econo-
mia tendo em vista os relevantes movimentos sociais no pe-
ríodo.
Diante de um Estado intervencionista e regulamenta-
dor, que dita as regras do jogo, o Direito Civil verificou mo-
dificadas as suas funções e não pode mais ser estimado se-
gundo os moldes do direito individualista dos séculos ante-
riores.
Todavia, parece questionável que tamanha mutação te-
nha advindo, exclusivamente, da chamada publicização167
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167 Durante muito tempo, cogitou-se de publicização do direito civil, que,
para muitos, teria o mesmo significado de constitucionalização. Todavia, são
situações distintas. A denominada publicização compreende o processo de
crescente intervenção estatal, especialmente no âmbito legislativo, caracte-
rística do Estado Social do século XX. Tem-se a redução do espaço de auto-

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