A desconsideração da personalidade jurídica no ordenamento jurídico brasileiro

AutorTatiana Gonçalves Moreira
Páginas21-30

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No ordenamento jurídico brasileiro, segundo o Código Civil, existem duas espécies de pessoas, as naturais e as jurídicas. Confere-se a ambas o título de sujeitos de direitos e deveres.

Originalmente as sociedades eram constituídas por um conjunto de pessoas naturais que apresentavam características comuns e compartilhavam de um mesmo objetivo fim.

Ao ser formalizada, a sociedade se torna pessoa jurídica, entidade abstrata com existência e responsabilidade jurídica distinta de seus membros constituintes. Investida de personalidade, a sociedade está apta a contratar em nome próprio, constituir patrimônio, assumir compromissos e exigir direitos, tendo legitimidade para qualquer ato em que não haja proibição legal expressa, denominadas como “consequências da personalização”. (COELHO, 2002)

Caio Mário da Silva Pereira esclarece que:

“a necessidade da conjugação de esforços de vários indivíduos para a consecução de objetivos comuns ou de interesse social, ao mesmo passo que aconselham e estimulam a sua agregação e polarização de suas atividades, sugerem ao direito equiparar à própria pessoa humana certos agrupamentos de indivíduos e certas destinações patrimoniais e lhe aconselham atribuir personalidade e capacidade aos entes abstratos assim gerados”. (PEREIRA, 2017, p. 249)

Sobre o assunto, disserta Requião:

A sociedade transforma-se em novo ser, estranho à individualidade das pessoas que participam de sua constituição, dominando um patrimônio próprio, possuidor de órgãos de deliberação e execução que ditam e fazem cumprir a sua vontade. (REQUIÃO, 1998, p. 345)

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É bem verdade que existem muitas teorias sobre a atribuição da personalidade à pessoa jurídica, contudo uma vez que este não é o foco do presente trabalho, adotaremos a conceituação de Monteiro, que explica:

A personalidade jurídica não é, pois, ficção, mas uma forma, uma investidura, um atributo, que o Estado defere a certos entes, havidos como mere-cedores dessa situação [...] a pessoa jurídica tem assim realidade, não a realidade física (peculiar às ciências naturais), mas a realidade jurídica ideal, a realidade das instituições jurídicas. (MONTEIRO, 2016, p.153)

Esse conceito garante autonomia à pessoa jurídica, que segundo Farias “é estabelecida, assim, uma espécie de blindagem patrimonial, através do qual a pessoa jurídica responde pelas suas dívidas e obrigações com o seu próprio patrimônio”. (FARIAS e ROSENVALD, 2009, p. 377)

Nesse sentido, COELHO (2002, p.113 e 114) classifica as consequências da personalização em três, “a titularidade negocial, a processual e a responsabili-dade patrimonial”. A titularidade negocial está relacionada aos atos inerentes à atividade empresarial como à efetiva realização de negócios, suas obrigações e celebração de contratos.

Já a titularidade processual se refere à legitimidade de demandar e ser demandado judicialmente e a capacidade de ser constituída como parte diferenciando-se de seus sócios ou administradores que a representam. (COELHO, 2002, p.113 e 114)

E por último , a responsabilidade patrimonial que é regida pelo princípio da auto-nomia patrimonial conferindo à sociedade autonomia quanto ao seu patrimônio, garantindo aos sócios a não responsabilização pessoal pelas dívidas e obrigações da sociedade. (COELHO, 2002, p.113 e 114)

Pelos conceitos mencionados, entende-se que a personificação foi um incentivo aos seres humanos a combinar esforços e recursos em prol de um objetivo fim comum. Segundo (JUSTEN FILHO, 1978. p.165), o ordenamento jurídico, ao afastar regras jurídicas que seriam aplicáveis pelo exercício individual da atividade, garantiu um regime especial à pessoa jurídica dissociado da pessoa do sócio. A economia tomou essa distinção como incentivo ao estabelecimento de novos negócios.

AMARO (1993, p. 69-84) precisamente leciona:

Ficção ou realidade, a pessoa jurídica representa instrumento legítimo de destaque patrimonial, para a exploração de certos fins econômicos, de modo que o patrimônio titulado pela pessoa jurídica responda pelas obrigações destas, só se chamando os sócios à responsabilidade em hipóteses restritas.

Contextualiza ainda COELHO (2002, p. 513) que o princípio da autonomia patrimonial foi fundamental para o desenvolvimento de atividades econômicas e da produção e circulação de bens e serviços, visto que limitou as perdas nos investimentos de maior risco e complexidade e motivou investidores e empreendedores a aplicar

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dinheiro nas empresas. Sem a dissociação patrimonial, os insucessos na exploração das atividades poderia significar a perda de todos os bens particulares dos sócios, o que não é atrativo do ponto de vista do empreendedor ou investidor.

É translúcido que o desenvolvimento econômico está diretamente atrelado aos investimentos realizados nas mais diversas atividades econômicas. Entretanto, em razão do caráter protetivo à figura dos sócios, quanto à responsabilização de seu patrimônio pessoal pelas atividades da empresa, pessoas inescrupulosas passaram a se valer dessa prerrogativa para desvirtuar a finalidade da personificação da pessoa jurídica no intuito de lesar terceiros.

A fraude contra terceiros passou a ser frequente e muitas pessoas, fossem elas credores ou empregados, passaram a ser lesados sob o argumento legal da auto-nomia patrimonial da sociedade.

Diante desta deturpação do princípio da autonomia patrimonial, se fez necessário a criação de exceções, como por exemplo, a desconsideração da personalidade jurídica e a responsabilização dos administradores da sociedade quando do desvio de função, abuso de poder ou ato ilícito.

TARTUCE (2017, p. 243) ensina que apesar do Código Civil de 2002 não reproduzir o art. 203 do Código Civil de 1916, em que era expressa a dissociação do patrimônio da sociedade do de seus sócios, não há que se falar em prejuízo para o direito já que se trata de “um princípio inerente à própria concepção da pessoa jurídica” .

Em contraponto a essa suposta omissão, a legislação pátria passou a contar com o art. 50 do Código Civil4 que prevê a desconsideração da personalidade jurídica em casos de abuso caracterizado pelo desvio de função ou pela confusão patrimonial.

Essa mitigação tem por objetivo proteger o próprio instituto da personificação e garantir que não haja desvio ou distorção de sua finalidade. É fundamental que a pessoa jurídica cumpra com a sua função social.

Cumpre esclarecer que a lei não confere direitos à sociedade para lesar terceiros. Por tal razão, caracterizado o uso indevido da personificação, esta poderá ser desconsiderada para garantir a segurança jurídica necessária às partes envolvidas.

O Código de Defesa do Consumidor norteado pelo princípio da vulnerabilidade e pelo princípio da proteção fez saber através do art. 28 que, nos casos de abuso de direito, excesso de poder, infração de lei ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social, o juiz poderá autorizar a desconsideração da personalidade jurídica da sociedade.

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Como um dos primeiros diplomas a regrar o instituto da desconsideração, o Código de Defesa do Consumidor (CDC) buscou proteger o consumidor de abusos e arbitrariedades das sociedades, levando em consideração a sua hipossuficiência. E mais, garantiu ainda a responsabilização dos bens pessoais...

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