Direito ao esquecimento

AutorJúlia Costa de Oliveira Coelho
Páginas5-57
CAPÍTULO I
DIREITO AO ESQUECIMENTO
Vereis um outro tempo estranho ao vosso.
Tempo presente, mas sempre um tempo só,
Onipresente.
- Hilda Hilst
1.1. PERPETUIDADE E TEMPORALIDADE NO ORDENAMENTO JURÍDICO
BRASILEIRO
O esquecimento como recurso jurídico não é exatamente uma novidade. Em pers-
pectiva histórica, o esquecimento forçado identif‌icava-se originalmente com a ideia
de sanção. Era o caso, por exemplo, do instituto da damnatio memoriae, tido em Roma
como uma das mais severas formas de punição dispensada aos condenados por crimes
graves. Nas palavras de Eric R. Varner:
As sanções legais associadas à damnatio memoriae estabeleciam os mecanismos pelos quais um indiví-
duo era simultaneamente anulado e condenado. [...] Como resultado, o nome e título dos condenados
eram removidos de todas as listas ociais (fasti); as imagens (imagines) representando os falecidos eram
banidas da exibição em funerais aristocráticos; os livros escritos pelos condenados eram conscados
e queimados; [...] sendo possível, ainda, a proibição do uso contínuo do prenome (praenomen).1
A polêmica sanção romana encontra paralelo em obras de f‌icção mais recentes,
como no célebre livro de George Orwell,2 em que a penalidade a que se sujeitavam os
supostos traidores do Partido era justamente a eliminação de todos os rastros e a altera-
ção dos registros históricos, como se nunca tivessem existido. Ser esquecido, pois, era
entendido como uma forma de castigo.
Apesar disso, esquecer nunca foi um comportamento excepcional na vida humana.
Na realidade, lembrar costumava ser muito mais difícil do que simplesmente esquecer
algo. Mesmo sendo por vezes indesejado ou inconveniente, o esquecimento não deixa
(ou deixou) de exercer um papel importante, assim como a memória perfeita não con-
duz à uma vida livre de problemas, na verdade, acaba por gerar diversos deles, como se
buscará demonstrar ao longo deste trabalho.
1. Tradução livre. No original: “[t]he legal sanctions which could be associated with damnatio memoriae provided
the mechanisms by which an individual was simultaneously canceled and condemned. […] As a result, the con-
demned individual’s name and titles were excised from all off‌icial lists (fasti); wax masks (imagines) representing
the deceased were banned from display at aristocratic funerals; books written by the condemns were conf‌iscated
and burned […] and prohibitions could be enacted against the continued use of the condemned’s praenomen”.
(VARNER, Eric R. Mutilation and transformation: damnatio memoriae and Roman imperial portraiture. Brill Leiden:
Boston, 2004, p. 1)
2. 1984. 29ª ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2005.
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Com as funcionalidades decorrentes das novas tecnologias, contudo, aquilo que era
exceção tornou-se regra:3 atualmente, o esquecimento é um hábito em extinção. Corrói-se,
por assim dizer, o vínculo associativo do cancelamento da memória com um viés punitivo.
Atualmente, a verdadeira condenação é representada pela conservação, e não pela destrui-
ção da memória; no passado, a damnatio memoriae, atualmente, a obrigação de recordar.4
As implicações dessa mudança de paradigma são signif‌icativas, tanto no universo
do Direito quanto nas relações humanas em geral. Quanto ao primeiro campo, há que
se reconhecer que o esquecimento também desempenha funções jurídicas positivas (ou
seja, não possui conotação meramente punitiva), servindo no ordenamento jurídico
brasileiro, por exemplo, como mecanismo de reabilitação penal.5
O recurso à remoção de informações desfavoráveis ou indesejáveis também é pre-
visto no Código de Defesa do Consumidor – o qual determina, nos termos do §1º do seu
artigo 43, que os cadastros e dados de consumidores não poderão conter informações
negativas referentes a período superior a cinco anos – e, em certa medida, no próprio
direito autoral, que reconhece como um dos direitos morais do autor a retirada de cir-
culação de obra, ou suspensão de qualquer forma de utilização já autorizada, quando
a circulação ou utilização implicarem afronta à sua reputação e imagem.6 Ainda que
tratem de temas distintos, essas previsões legais parecem se utilizar do esquecimento
com a mesma f‌inalidade, qual seja, de reconhecer a possibilidade de mudança das con-
dições e informações pessoais, assim como dos seus próprios titulares, permitindo suas
respectivas atualizações perante a sociedade.
Em sentido amplo, o Direito parece não se identif‌icar com a ideia de perpetuidade,
seja pela vedação à pena perpétua, seja em razão do viés renovador de institutos jurídicos
clássicos como a prescrição e decadência, que atuam como uma espécie de “esquecimento
programado”,7 assim como a irretroatividade da lei, a anistia, o ato jurídico perfeito e o
direito adquirido.8 Nessa ótica, o esquecimento funciona como uma medida temporal
do Direito, estabilizando o passado e conferindo previsibilidade ao futuro.9
3. MAYER-SCHÖNBERGER, Viktor. Delete – the virtue of forgetting in the digital age. New Jersey: Princeton Uni-
versity Press, 2009, p. 13.
4. RODOTÀ, Stefano. Dai ricordi ai dati l”oblio è um diritto? Disponível em:
archivio/repubblica/2012/01/30/dai-ricordi-ai-dati-oblio-un.html>. Acesso em 12.05.2017.
5. Art. 93 do Código Penal: A reabilitação alcança quaisquer penas aplicadas em sentença def‌initiva, assegurando
ao condenado o sigilo dos registros sobre o seu processo e condenação.
Art. 748 do Código de Processo Penal: A condenação ou condenações anteriores não serão mencionadas na folha de
antecedentes do reabilitado, nem em certidão extraída dos livros do juízo, salvo quando requisitadas por juiz criminal.
Art. 202 da Lei nº 7.210/84. Cumprida ou extinta a pena, não constarão da folha corrida, atestados ou certidões
fornecidas por autoridade policial ou por auxiliares da Justiça, qualquer notícia ou referência à condenação, salvo
para instruir processo pela prática de nova infração penal ou outros casos expressos em lei.
6. Lei nº 9.610, de 19 de fevereiro de 1998: Art. 24. São direitos morais do autor: (...) VI – o de retirar de circulação
a obra ou de suspender qualquer forma de utilização já autorizada, quando a circulação ou utilização implicarem
afronta à sua reputação e imagem.
7. Ideia desenvolvida por François OST. O tempo do Direito. Tradução Élcio Fernandes. Bauru, SP: Edusc, 2005, pp.
160-161.
8. Observação do Ministro Luis Felipe Salomão no contexto do REsp. 1.334.097/RJ, 4ª T., Rel. Min. Luis Felipe
Salomão, j. 28.05.2013.
9. V. posição defendida pelo Ministro Luis Felipe Salomão no REsp. 1.334.097/RJ, cit.
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Recorrendo novamente à literatura, há que se recordar (com o perdão do trocadi-
lho) do personagem borgiano Irineu Funes, cuja memória prodigiosa leva à sua para-
lisia diante dos acontecimentos cotidianos. Embora dotado de enorme quantidade de
conhecimentos, o narrador questiona se Funes era capaz de pensar, já que identif‌ica
esse ato com a capacidade de esquecer diferenças, generalizar e abstrair.10
Fato é que a memória limitada não é a única imperfeição humana: o ser humano
é falho por essência, mas possui em si a capacidade de evoluir. Conforme observa Vi-
ktor Mayer-Schönberger, o esquecimento é um comportamento individual e também
coletivo. A própria sociedade aceita que seus membros evoluem e que podem aprender
com as experiências passadas.11 Na interessante observação de Rubem Alves, há que
se falar, além da “boa memória”, do “bom esquecimento”, por ele entendido como o
alisamento do passado.12
Como se sabe, novas tentativas são permitidas e até mesmo encorajadas na socie-
dade atual: pessoas divorciadas podem se casar novamente, ex-detentos absolvidos ou
cuja pena foi cumprida voltam a conviver socialmente e tem até a condenação removida
de sua folha de antecedentes criminais. Essa regenerabilidade exige, como o nome pode
sugerir, uma renovação, que é incompatível com um apego excessivo ao passado. Faz-se
necessário, portanto, ref‌letir sobre o justo equilíbrio entre memória e esquecimento, tanto
para preservar a história como para permitir a constante evolução da sociedade, sendo o
histórico e o a-histórico igualmente essenciais para a saúde individual, coletiva e cultural.13
1.2. NOÇÃO DE DIREITO AO ESQUECIMENTO
Por envolver valores muito caros à sociedade e pelos desaf‌ios impostos pelas novas
tecnologias, o direito ao esquecimento tornou-se objeto de debates candentes ao redor
do mundo. A pluralidade de discussões acaba levando à multiplicação de def‌inições,
conceitos e correntes sobre o tema. Para Anderson Schreiber, trata-se essencialmente de
um direito contra uma recordação opressiva de fatos que podem minar a capacidade do
ser humano de evoluir e se modif‌icar.14 No outro extremo, situa-se a visão (controversa15)
de Giorgio Pino, que descreve o direito ao esquecimento como o direito de silenciar
eventos passados da vida que não estão mais ocorrendo.16
10. BORGES, Jorge Luis. Funes, o memorioso. In. Ficções. São Paulo: Globo, 1999.
11. MAYER-SCHÖNBERGER, Viktor. Delete, cit., p. 13.
12. ALVES, Rubem. O amor que acende a lua. São Paulo: Papirus, 1999, p. 99.
13. NIETZSCHE, Frédéric. On the advantage and disadvantage of history for life. Trad. Peter Preuss. Indianapolis,
Indiana: Hackett Publishing Company Inc., 1980, p. 10.
14. SCHREIBER, Anderson. Nossa ordem jurídica não admite proprietários de passado. Disponível em: .
conjur.com.br/2017-jun-12/anderson-schreiber-nossas-leis-nao-admitem-proprietarios-passado>. Acesso em
20.03.2018.
15. Conforme observado por Meg Leta JONES, trata-se de conceito criticável por ser demasiadamente amplo, que
se identif‌ica com a noção de “reescrever a história” ou “revisionismo da história pessoal”. (Crtl+Z: the right to be
forgotten. Nova Iorque: New York University Press, 2016, p. 10)
16. PINO, Giorgio. The right to personal identity in Italian private law: Constitutional interpretation and judge-made
rights. In. VAN HOECKE, Mark; OST, François. (Ed.) The harmonization of private law in Europe. Oxford: Hart
Publishing, 2000, p. 237.
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Viviane Nóbrega Maldonado, por sua vez, o def‌ine como a possibilidade de alijar-se
do conhecimento de terceiros uma específ‌ica informação que, muito embora seja ver-
dadeira e que, preteritamente, fosse considerada relevante, não mais ostenta interesse
público em razão de anacronismo.17 Ao pensar sobre o termo esquecimento associado à
privacidade e identidade digital, Meg Leta Jones o identif‌ica com a pretensão de libertar
os indivíduos do peso de sua bagagem virtual.18
Segundo François Ost, os indivíduos, independentemente de eventual projeção
pública, têm o direito de, transcorrido determinado tempo, serem deixados em paz e
recair no esquecimento e no anonimato, do qual jamais gostariam de ter saído.19 Seguindo
essa linha voluntarista, o STJ já def‌iniu o direito ao esquecimento como “um direito de
não ser lembrado contra a sua vontade”.20
Há autores que refutam, por sua vez, a qualif‌icação do direito ao esquecimento como
tal e questionam a sua ef‌icácia prática. Nesse sentido, vale mencionar o entendimento
de Carlos Affonso Pereira de Souza, segundo o qual “ele não é um direito nem gera o
pretendido efeito de esquecimento”.21
Apesar da controvérsia sobre o tema e de os autores possuírem acepção própria do
termo – e embora tal def‌inição possa variar, ainda, de acordo com a jurisdição em que
a concepção se insere – pode-se identif‌icar alguns elementos comuns nas diferentes
noções do direito ao esquecimento (ao menos em parte delas).
Ao se falar em direito ao esquecimento, faz-se referência a fatos passados verídicos
da vida de uma determinada pessoa, obtidos de forma lícita, cuja divulgação, republicação
ou manutenção em um meio publicamente acessível impacta a livre (re)construção da
identidade pessoal do indivíduo e a representação de tal identidade perante terceiros.
Em síntese apertada, nota-se que o direito ao esquecimento se identif‌ica com a pre-
tensão de ter sua imagem atual desvinculada de um fato passado desatualizado22 ou fora
de contexto, não necessariamente por força de arrependimento ou por querer renega-lo,
mas de modo a não ser def‌inido ou limitado por ele. Conforme observa Sérgio Branco:
Não se discute, portanto, se existe arrependimento pela conduta então praticada. [...] Mesmo que
não se possa admitir, em cada situação, que seus protagonistas fariam tudo outra vez se tivessem a
oportunidade, não se infere tampouco que haja repúdio, ódio, vergonha ou qualquer outro sentimento
negativo relacionado aos eventos de tempos pretéritos.23
Essa observação revela-se especialmente relevante para afastar o direito ao esque-
cimento de visões abstratas, predominantemente f‌ilosóf‌icas, e auxiliar na elaboração
de uma noção jurídica equilibrada. Ao vincular o conceito ou a aplicação do direito ao
17. MALDONADO, Viviane Nóbrega. Direito ao esquecimento. São Paulo: Novo Século, 2017, p. 97.
18. JONES, Meg Leta. Ctrl+Z, cit., p. 11
19. OST, François. O tempo do Direito, cit., p. 160.
20. REsp. 1.334.097/RJ, 4ª T., Rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. 28.05.2013.
21. SOUZA, Carlos Affonso Pereira de. Dez dilemas sobre o chamado direito ao esquecimento. Disponível em:
itsrio.org/wp-content/uploads/2017/06/ITS-Rio-Audiencia-Publica-STF-Direito-ao-Esquecimento-Versao-Pu-
blica-1.pdf>. Acesso em 29.10.2018.
22. BRANCO, Sérgio. Memória e esquecimento na Internet. Porto Alegre: Arquipélago Editorial, 2017, p. 129.
23. BRANCO, Sérgio. Memória e esquecimento na Internet, cit., p. 130.
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esquecimento a determinados sentimentos decorrentes da disponibilização de dada
informação, ele acaba aprisionado em uma concepção extremamente subjetivista.
Permita-se, aqui, uma rápida comparação com a evolução da tutela do dano moral.
Em sua acepção tradicional, o dano extrapatrimonial era enxergado meramente sob a
vertente subjetiva, ou seja, por muito tempo, ele foi concebido apenas do ponto de vista
das sensações provocadas pelo ato lesivo, na clássica máxima de que se caracteriza pela
“dor, humilhação, constrangimento e vexame”.
Muito embora essa concepção subjetivista ainda seja facilmente encontrada na
fundamentação de inúmeros julgados recentes,24 nota-se uma tendência de “objetivar”
o dano moral, afastando-o, por assim dizer, do campo dos sentimentos.25 A realidade
é que faltam ao Direito elementos suf‌icientes para verif‌icar se houve ou não abalo
psicológico fruto de determinada violação: eventual sentimento ruim, se experimen-
tado, deve ser considerado um efeito possível, e não causa ou característica essencial
do dano moral.
Esse paralelo tem o propósito de demonstrar que a objetivação do direito ao es-
quecimento é, de modo similar, crucial para a sua utilidade prática. Para que ele seja
reconhecido, o julgador não deve se concentrar nos efeitos emocionais provocados pela
divulgação no titular do direito, e sim na repercussão da divulgação no âmbito existen-
cial do sujeito da informação. Caso contrário, o debate girará em torno de questões que
fogem à esfera jurídica e cuja verif‌icação é inviável.
No esforço de distanciar a noção jurídica do direito ao esquecimento do campo
estritamente subjetivo, há que se admitir, ainda, que ele não é compatível com a visão
voluntarista, sob pena de se conferir, com isso, um poder extremamente amplo a cada
indivíduo e, por via de consequência, um direito inexequível.
Como observa Anderson Schreiber, o direito ao esquecimento não pode ser en-
xergado como um direito de propriedade sobre acontecimentos pretéritos,26 inclusive
porque as informações que nos dizem respeito não são ativos detidos por cada um,
mas elementos constitutivos da nossa identidade, não se submetendo, assim, à lógica
proprietária tradicional. Nesse sentido, é interessante a observação de Luciano Floridi,
segundo o qual:
[...] um agente é a sua informação. ‘Sua” em ‘sua informação’ não é o mesmo que ‘seu’ em ‘seu carro’,
mas o mesmo que ‘sua’ em […] ‘suas memórias’, ‘suas ideias’, ‘suas escolhas’, e assim por diante. Isso
expressa um sentido de pertencimento constitutivo, não de propriedade externa, uma noção de que o
24. Dentre as diversas decisões proferidas pelo STJ que identif‌icam o dano moral com a concepção subjetiva: Ag.Int.
no Ag.Int. no AREsp. 869.188/RS, 3ª T., Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, j. 9.3.2017; REsp. 1.653.865/RS, 3ª T.,
Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 23.5.2017. No TJRJ: Ap. Civ. 0112862-47.2016.8.19.0001, 26ª Câmara Cível, Rel.
Des. Arthur Narciso de Oliveira Neto, j. 29.6.2017; Ap. Civ. 1020065-89.2016.8.26.0405, 12ª Câmara de Direito
Privado, Rel. Des. Sandra Galhardo Esteves, j. 22.9.2017.
25. Nesse sentido, vale mencionar que o enunciado nº 75 da Súmula de Jurisprudência Predominante do TJRJ, po-
pularmente conhecida como súmula do “mero aborrecimento”, foi cancelado em dezembro de 2018. (Processo
Administrativo nº 0056716-18.2018.8.19.0000, TJRJ, Rel. Des. Mauro Pereira Martins, j. 17.12.2018)
26. SCHREIBER, Anderson. Nossa ordem jurídica não admite proprietários de passado, cit.
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seu corpo, seus sentimentos e as suas informações são parte de você, mas não são suas propriedades
(legais).27
Além disso, é importante impulsionar a compreensão do direito ao esquecimento
para além da semântica. Quem busca exercer o direito ao esquecimento não parece
querer ser ou ter determinado fato sobre si esquecido, na acepção literal da palavra.
Oportunamente, as críticas ao termo “direito ao esquecimento” serão abordadas no
item 1.4.4 deste trabalho.
Considerando o exposto, entende-se que o direito ao esquecimento, em sua acep-
ção jurídica, se identif‌ica com a proteção da dignidade humana, conf‌igurando-se como
um direito que garante o livre desenvolvimento da personalidade individual e a sua
representação autêntica e atual perante a sociedade.
Sua aplicação, portanto, não está atrelada ao sentimento despertado pela divulgação
do fato ou fundada na vontade28 pura e simples de o indivíduo moldar a realidade às
suas próprias concepções subjetivas de si, mas vinculada à ameaça ou violação que ela
representa ao direito fundamental à existência digna com base em parâmetros objetivos,
sujeitando-se, na hipótese de colisão com outros interesses protegidos pelo ordenamento
jurídico, à ponderação.
Vale destacar que, para isso, não é preciso reinventar a roda.29 A técnica da ponde-
ração, embora complexa, é um tema bastante debatido em sede doutrinária e jurispru-
dencial, sendo possível transpor a técnica e utilizar, ao menos como ponto de partida, os
parâmetros costumeiramente aplicados para sopesamento de direitos como privacidade
ou imagem e liberdade de expressão aos conf‌litos envolvendo o direito ao esquecimen-
to e outros interesses igualmente protegidos. Para tanto, pode-se considerar, a título
exemplif‌icativo, o grau de utilidade da informação para o público,30 a repercussão do
fato para o sujeito retratado vis-à-vis a sua relevância para a sociedade e a importância
das informações e detalhes para informar o fato.
1.3. EXPERIÊNCIAS ESTRANGEIRAS
Embora o presente trabalho não se proponha a fazer um estudo de direito compa-
rado – o que exigiria uma pesquisa extensa e análise aprofundada do assunto em outras
experiências jurídicas – não se pode deixar de traçar, ainda que brevemente, um panorama
27. Tradução livre. No original: “[A]n agent is her or his information. ‘Your’ in ‘your information’ is not the same
‘yours’ as in ‘your car’ but rather the same ‘your’ as in […] ‘your memories’, ‘your ideas’, ‘your choices’, and so
forth. It expresses a sense of constitutive belonging, not of external ownership, a sense in which your body, your
feelings, and your information are part of you but are not your (legal) possessions”. (The 4th revolution. Reino
Unido: Oxford University Press, 2014, p. 121)
28. Conforme observa Anderson SCHREIBER, “A vontade individual, por si só, não é um valor. Trata-se de um
vetor vazio. Ao jurista compete verif‌icar a que interesses a vontade atende em cada situação concreta. A ordem
jurídica não é contra ou a favor da vontade. É simplesmente a favor da realização da pessoa, o que pode ou não
corresponder à realização da sua vontade em cada caso concreto”. (Direitos da personalidade, cit., p. 27)
29. Nesse sentido, v. ANDRADE, Norberto Nuno Gomes de. Oblivion: the right to be different… from oneself. Repro-
posing the right to be forgotten. Revista de los Estudios de Derecho y Ciencia Política de la UOC, n. 13, fev. 2012, p.
133.
30. SCHREIBER, Anderson. Direitos da personalidade, cit., p. 116.
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geral do direito ao esquecimento na realidade europeia e norte-americana. Ao analisar
a maneira como ele vem sendo tratado fora do Brasil, é possível alcançar uma melhor
compreensão do tema na realidade pátria e, inclusive, pensar em soluções inspiradas nas
experiências estrangeiras, assim como ref‌letir criticamente sobre a incompatibilidade
de certas concepções por elas adotadas e o sistema brasileiro.
1.3.1. EUA
No âmbito judiciário norte-americano, um dos exemplos mais citados para ilustrar
o debate entre privacidade e liberdade de expressão é o caso Melvin v. Reid. No precedente
em questão, decidiu-se que uma antiga prostituta que havia sido processada e absolvida
por homicídio deveria ser indenizada em razão da exibição de um f‌ilme que revelava
aspectos passados da sua vida. Talvez o caso seja tão emblemático exatamente por pri-
vilegiar o direito à privacidade em detrimento da tão protegida liberdade de expressão
no direito norte-americano.
Fato é que, na tradição jurisprudencial dos EUA – especialmente a partir dos anos
70 – são mais recorrentes os precedentes favoráveis à liberdade de expressão, como o caso
Sidis v. F-R Publishing Corp. Tratava-se de um jovem superdotado que, na vida adulta,
passou a adotar uma postura recolhida. Ao deparar-se com uma matéria que narrava
eventos passados de sua vida, o autor ingressou com pleito indenizatório alegando viola-
ção de sua privacidade. Apesar da vida reclusa que ele passou a levar, decidiu-se manter
a informação disponível, na medida em que os fatos do seu passado remoto bastavam
para tornar o assunto noticiável ou newsworthy. É importante destacar que a def‌inição
do que é newsworthy, tanto nos EUA31 quanto no Brasil, é extremamente difícil.
A mesma dif‌iculdade é enfrentada, ainda, para identif‌icação do que se considera
interesse público. Quais matérias ou conteúdo são noticiáveis e/ou de interesse público
e, portanto, devem ser divulgados? Como diferenciar o que é de interesse público e de
interesse do público? A quem cabe essa determinação? À sociedade, à imprensa, ao Di-
reito? Embora a doutrina se dedique a estudar e conceituar o tema,32 não há respostas
def‌initivas para questões como essas, tampouco def‌inições abstratas e universais para
uma matéria de tamanha complexidade.
A despeito da tradição extremamente liberal do país, também podem ser encon-
tradas iniciativas legislativas que implementam, de certa forma, o direito ao esqueci-
mento nos EUA. Essa possível contradição talvez se explique por outro valor também
31. Em sua obra, Meg Leta JONES ref‌lete sobre a dif‌iculdade de def‌inir o que é newsworthy, observando que “a de-
ferência ao jornalismo para determinar o que é noticiável e a certeza de que o longo rastro da Internet cria uma
audiência para tudo proporciona uma noção bastante complicada do que deve ser considerado digno de notícia
enquanto padrão para a disseminação adequada e contínua de informações privadas”. (Crtl+Z, cit., p. 63)
32. Segundo Gustavo BINENBOJM, “o interesse público comporta uma imbricação entre interesses difusos da coleti-
vidade e interesses individuais e particulares, não se podendo estabelecer a prevalência teórica e antecipada de uns
sobre outros”. (BINENBOJM, Gustavo. Uma teoria do Direito Administrativo – Direitos Fundamentais, Democracia
e Constitucionalização. Rio de Janeiro. Renovar, 2014. p. 107). O tema do interesse público também é objeto
de estudo de Daniel SARMENTO (Supremacia do interesse público? As colisões entre direitos fundamentais e
interesses da coletividade. In. ARAGÃO, Alexandre Santos de; NETO, Floriano de Azevedo Marques. (Coord.)
Direito Administrativo e seus novos paradigmas. Belo Horizonte: Forum, 2008, pp. 97-143)
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enaltecido pela cultura norte-americana, qual seja, o do self-made man. Usualmente
traduzido como “empreendedor”, o termo, que na literalidade signif‌ica “homem que se
fez sozinho”, representa o apreço que a sociedade norte-americana possui pela capaci-
dade de um indivíduo se transformar e progredir através do próprio esforço. Conforme
observa Gary T. Marx:
Os americanos se orgulham por olhar para o que uma pessoa é hoje, ao invés do que ela pode ter sido
no passado. Mecanismos, como arquivos considerados condenciais ou destruídos, a proibição de
certos tipos de manutenção de registro e os requisitos de consentimento para liberação de informação
reetem essa preocupação. No entanto, com a massicação de facilidade de acesso a arquivos, o pas-
sado de alguém está sempre presente [...]. Isso pode causar uma classe de pessoas permanentemente
estigmatizadas.33
Há que se considerar, portanto, que outros valores culturais e interesses sociais,
assim como a liberdade de expressão, são extremamente importantes na tradição dos
EUA e exercem inf‌luência sobre o tratamento conferido a temas como o do direito ao
esquecimento.
A título de exemplo das iniciativas legislativas acima mencionadas, pode-se citar a
lei promulgada na Califórnia, conhecida como Online Eraser Law34 ou Lei de Remoção
Digital. O diploma legal, que é aplicável a menores de 18 anos residentes na Califórnia,
permite a esses menores, enquanto usuários registrados de um determinado serviço on-
line, solicitar a remoção de conteúdo ou informação por eles disponibilizada no servidor
do operador. Ele estabelece, contudo, que o direito à remoção não será aplicável caso o
conteúdo tenha sido disponibilizado por terceiro, se houver necessidade de mantê-lo
em razão de lei estadual ou federal ou se o operador o tornar anônimo.
Como se pode perceber, a lei em questão não prevê expressamente um direito ao
esquecimento, mas trata de dois dos seus possíveis mecanismos de tutela, quais sejam, a
remoção e a anonimização de informação. Cumpre destacar, ainda, que a possibilidade
de retirada se restringe ao conteúdo disponibilizado pelo usuário menor de idade, e que
não confere a ele um direito absoluto, haja vista as excludentes textualmente indicadas
pela norma acima mencionada.
Traçando um paralelo com o ordenamento jurídico brasileiro, nota-se que, atu-
almente, somente se reconhece expressamente a possibilidade de remoção de dados
pessoais fornecidos pelo seu titular em caso de término da relação com o provedor de
aplicação, vide inciso X do artigo 7º do Marco Civil da Internet.35
33. Tradução livre. No original: “Americans pride themselves on looking at what a person is today rather than what
he may have been in the past. Devices, such as sealed or destroyed records, prohibitions on certain kinds of re-
cord keeping, and consent requirements for the release of information, ref‌lect these concerns. However, with the
mass of easily accessible f‌iles, one’s past is always present […]. This can create a class of permanently stigmatized
people”. (Undercover: police surveillance in America. Berkeley: University of California Press, 1988, p. 223)
34. Disponível em: https://leginfo.legislature.ca.gov/faces/billNavClient.xhtml?bill_id=201320140SB568. Acesso
em 02.10.2018.
35. Art. 7. O acesso à Internet é essencial ao exercício da cidadania, e ao usuário são assegurados os seguintes direitos:
[...] X – exclusão def‌initiva dos dados pessoais que tiver fornecido a determinada aplicação de Internet, a seu
requerimento, ao término da relação entre as partes, ressalvadas as hipóteses de guarda obrigatória de registros
previstas nesta Lei.
DIREITO AO ESQUECIMENTO.indb 12DIREITO AO ESQUECIMENTO.indb 12 22/04/2020 16:55:5522/04/2020 16:55:55
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CAPítulo I • dIREIto Ao ESquECImENto
Voltando para os EUA, encontra-se em discussão, no Estado de Nova Iorque, um
projeto de lei que visa alterar a Civil Rights Law (Lei de Direitos Civis, em tradução livre)
e Civil Practice Law (Lei de Prática Civil, em tradução livre) e criar propriamente um
right to be forgotten act” (ato de direito ao esquecimento, em tradução livre).36 De acordo
com o texto atual do projeto, todos os sites de busca, indexadores e demais pessoas ou
entidades que disponibilizem informações na Internet devem, a pedido de um indiví-
duo, remover informações, artigos, informações identif‌icativas e demais conteúdos a
respeito de tal indivíduo que sejam “incorretos”, “irrelevantes” ou “excessivos”, devendo
a remoção ocorrer em até 30 dias contados do pedido.
Como era de se esperar, o projeto foi duramente criticado pelos órgãos de imprensa
dos EUA, que o interpretaram como f‌lagrante censura ao freedom of speech tão caro à
sociedade norte-americana,37 mas, ainda assim, está sob análise do Poder Legislativo
estadual.
1.3.2. União Europeia
No âmbito europeu, a discussão se encontra em estágio mais avançado, tanto na
esfera legislativa quanto jurisprudencial, muito embora, como se verá adiante, ainda
não se tenha alcançado um entendimento uniforme e consolidado sobre o tema. Com
relação à legislação, o art. 17 da Regulação de Proteção Geral de Dados da UE – EU
General Data Protection Regulation ou GDPR, que entrou em vigor em maio de 2018,38
identif‌ica um Right to Erasure (direito de apagamento, em tradução livre) ou Right to be
Forgotten (direito ao esquecimento, em tradução livre).
De acordo com o dispositivo acima mencionado, é possível requerer a remoção de
informações (referida como “erasure”) em casos específ‌icos, como, por exemplo, se os
dados pessoais não forem mais necessários para os f‌ins que foram obtidos ou processados;
se o sujeito que forneceu os dados (referido como “data subject”) retira o consentimento
sob o qual o processamento se baseava e inexista outra base legal para tanto; se o data
subject se opõe ao processamento e não haja fundamentos legítimos predominantes para
isso e se os dados pessoais foram processados de forma ilícita.
É importante notar que, nos termos do § 3º do art. 17, o erasure não será aplicável
na medida em que o processamento seja necessário para, dentre outros, o exercício do
direito à liberdade de expressão e liberdade de informação, para observância às obri-
gações legais que demandem o processamento; por motivos de interesse público na
área de saúde pública; para f‌ins de arquivamento de interesse público, bem como para
pesquisas científ‌icas ou históricas ou para f‌ins estatísticos.
36. New York Assembly Bill No. 5323. Disponível em https://nyassembly.gov/leg/?default_f‌ld=&leg_video=&b-
n=A05323&term=2017&Summary=Y&Actions=Y&Committee%26nbspVotes=Y&Floor%26nbspVotes=Y&-
Memo=Y&Text=Y&LFIN=Y&Chamber%26nbspVideo%2FTranscript=Y. Acesso em 02.10.2019.
37. Sobre o tema, v. crítica do Washington Post, disponível em https://www.washingtonpost.com/news/volokh-cons-
piracy/wp/2017/03/15/n-y-bill-would-require-people-to-remove-inaccurate-irrelevant-inadequate-or-excessive-
-statements-about-others/?utm_term=.344fc69f82ca. Acesso em 02.10.2017.
38. Nessa ocasião, a GDPR substituiu a Diretiva de Proteção de Dados – Data Protection Directive 95/46/EC.
DIREITO AO ESQUECIMENTO.indb 13DIREITO AO ESQUECIMENTO.indb 13 22/04/2020 16:55:5522/04/2020 16:55:55
DIREITO AO ESQUECIMENTO E SEUS MECANISMOS DE TUTELA NA INTERNET • JÚLIA COSTA DE OLIVEIRA COELHO
14
Porém, a partir de uma ref‌lexão mais detida sobre a norma acima, parece questio-
nável af‌irmar que a GDPR trata propriamente do direito ao esquecimento. Isso porque
o dispositivo acima regula, essencialmente, o direito de erasure, ou seja, de apagamento
dos dados pessoais. Na realidade, a remoção de informações é um dos possíveis instru-
mentos para implementar, na prática, o direito ao esquecimento, o qual, como se verá
mais adiante, também pode ser efetivado de outras formas. Não se deve confundi-lo,
portanto, com os seus mecanismos de tutela.
Em sede jurisprudencial, os tribunais europeus também já se manifestaram sobre
o tema em algumas ocasiões. No passado, merecem destaque as decisões emblemáticas
proferidas pelo Tribunal de Grande Instância do Sena, e posteriormente ratif‌icada pela
Corte de Apelação de Paris, no “Caso Landru”39 e pelo Tribunal Constitucional Federal
da Alemanha no chamado “Caso Lebach”.40
No primeiro, a autora da ação insurgiu-se contra menção feita a ela em f‌ilme
que tratava de um famoso assassino em série francês. Ainda que a decisão não tenha
sido favorável ao pedido da autora e que não trate, especif‌icamente, do direito ao
esquecimento, vale destacar que, naquela ocasião, o juízo competente reconheceu
uma prescrição do silêncio, ou prescription du silence, em francês, que é considera-
da por alguns como a porta de entrada, por assim dizer, para a noção de direito ao
esquecimento.41
Já no segundo caso, a ação foi movida por um dos indivíduos condenado e preso
por participação no homicídio de quatro soldados próximo à cidade de Lebach e que
estava prestes a ser liberado, com o objetivo de impedir a veiculação de um documentário
que narrava o crime e citava, inclusive, o nome do autor da ação. O tribunal determinou
que o programa não fosse exibido sob a alegação de que, no caso concreto, a tutela dos
direitos da personalidade sobrepujava a liberdade de comunicação. Entendeu-se que,
de um lado, a veiculação do documentário poderia comprometer a ressocialização do
autor e que, por outro, não haveria um interesse público expressivo no fato vis-à-vis o
tempo transcorrido desde a data do crime.
Anos mais tarde, porém, ao analisar o chamado “Caso Lebach II”,42 o tribunal se
manifestou favoravelmente à exibição de um novo documentário sobre o mesmo evento
histórico. A decisão argumentou que, nessa hipótese, a ressocialização dos autores do
crime não seria comprometida em razão do lapso temporal entre a liberação dos mes-
mos e a transmissão do programa, tendo considerado, ainda, que o novo programa não
utilizou os verdadeiros nomes e não divulgou a imagem dos envolvidos.43
39. TGI Seine, 14 de outubro de 1965, Mme S. c. Soc. Rome Paris Film, JCP 1966 I 14482, n. Lyon-Caen, conf‌irmada
em apelação, CA Paris 15 de março de 1967.
40. 35 BVerfGE 202 (1973).
41. Nesse sentido, v. Charlotte HEYLLIARD. Le droit à l’oubli sur Internet: Mémoire de Master 2 recherche, Mention DNP.
Universite Paris-Sud, Faculté Jean Monnet – Droit, Économie, Gestion. Apresentado em 6.04.2012. Disponível
em: . Acesso em 27.11.2018.
42. 1 BVerfGE 349 (1999).
43. SARLET, Ingo Wolfgang; FERREIRA NETO, Arthur M. O direito ao “esquecimento” na sociedade da informação.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2019, p. 110.
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CAPítulo I • dIREIto Ao ESquECImENto
Em 2014, a decisão do Tribunal de Justiça da União Europeia (“ECJ”), no caso
M.C.G. v. Google Spain SL e Google Inc.,44 criou um notório precedente sobre pri-
vacidade nas redes. Na ocasião, determinou-se a exclusão de resultados de busca do
Google referentes à venda de um imóvel em hasta pública, realizada há alguns anos em
decorrência de execução f‌iscal sofrida pelo autor da ação. Segundo o entendimento do
tribunal, o Google atua como um controlador de dados ou “data controller”, e não como
um intermediário neutro, tendo seus usuários, assim, o direito de solicitar a remoção
de certos resultados de pesquisa que envolvam seus respectivos nomes.
Sobre a atuação do Google e sua capacidade criativa, é interessante observar a decisão
proferida pelo Tribunal Federal alemão (Bundesgerichtshof ou BGH) em caso envolvendo
a função “autocompletar”45 (ou, em inglês, autocomplete)46. De acordo com o BGH, os
termos sugeridos pelo preenchimento automático do Google são de conteúdo próprio,
já que se trata de resultados criados por seu algoritmo. Embora tenha entendido que o
Google não tem o dever de controle prévio dos termos sugeridos pelo preenchimento
automático, o Tribunal alemão determinou que a função “autocompletar” pode violar
direitos da personalidade, ensejando a responsabilização do buscador quando ele tomar
ciência de tal violação.47
Com base nas posições assumidas pelo ECJ e pelo BGH, os buscadores não podem
ser enxergados como meras pontes entre o usuário e o objeto de sua pesquisa. Se eles
criam conteúdo e interferem ativamente nas buscas através de previsões feitas por eles
próprios, decerto não há que se falar em uma atuação isenta e neutra.
De modo a implementar a decisão do ECJ no caso M.C.G., o Google criou uma
ferramenta que permite aos membros da UE requerer ao próprio buscador a exclusão de
determinado resultado. Apesar de ter sido concebido como uma solução, esse mecanis-
mo enseja, por sua vez, uma série de problemas e desaf‌ios, a exemplo das controvérsias
sobre a atribuição do poder decisório justamente aos provedores de busca e o alcance
territorial da decisão de desindexar, que serão objeto de discussão no Capítulo 2.
Recentemente, o poder judiciário da Inglaterra e do País de Gales enfrentou, pela
primeira vez, dois casos envolvendo direito ao esquecimento.48 Referidos como NT1 e
NT2,49 eles foram julgados conjuntamente em razão de suas similaridades,50 mas aca-
44. Caso C-131/12, Grande Seção do Tribunal de Justiça da União Europeia.
45. BGH, Autocomplete: VI ZR 269/12, j. 14.05.2013.
46. A título de esclarecimento, a função “autocompletar” consiste, em síntese, no preenchimento automático dos
critérios de busca com previsões de pesquisa sugeridas pelo próprio buscador. Maiores detalhes sobre o funcio-
namento do autocomplete podem ser encontradas em: ch/answer/106230?-
co=GENIE.Platform%3DAndroid&hl=pt-BR>. Acesso em 30.11.2018.
47. Para mais informações sobre o caso e a posição assumida pelo BGH, vide SOLOVE, Daniel J.; SCHWARTZ, Paul
M. Information privacy law. Nova Iorque: Wolters Kluwer, 2018, p. 1.158.
48. NT1 & NT2 vs. Google LLC [2018] EWHC799 (QB) Mr. Justice Warby.
49. É interessante notar que, conforme constante do sumário da decisão judicial, os autores foram anonimizados
no julgamento público para evitar a autodestruição dos pedidos e uma maior publicização das informações em
questão. Sumário disponível em: .uk/wp-content/uploads/2018/04/nt1-nt2-v-google-pres-
s-summary-180413.pdf>. Acesso em 24.08.2018.
50. Ambos os casos envolviam homens de negócio (businessmen) que sofreram, no passado, condenações criminais
e que buscavam, em seus respectivos pedidos, a remoção de resultados do Google sobre o ocorrido.
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DIREITO AO ESQUECIMENTO E SEUS MECANISMOS DE TUTELA NA INTERNET • JÚLIA COSTA DE OLIVEIRA COELHO
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baram sendo decididos de forma distinta: enquanto o juízo concedeu a desindexação
solicitada por NT2, negou as remoções pleiteadas por NT1.
É interessante observar que a referida decisão se baseou, dentre outros, no fato de
que houve, no passado, admissão de culpa por parte de NT2, o qual mostrou remorso
pelo crime cometido. Além disso, de acordo com o juízo competente, inexiste risco
evidente de reincidência, já que, atualmente, NT2 atua em uma área prof‌issional bas-
tante diferente.
O mesmo não foi verif‌icado com relação a NT1 que, de acordo com a decisão, não
admitiu culpa e não demonstrou arrependimento, o que contribuiu para que a desin-
dexação fosse negada, junto com o fato de se tratar de pessoa “pública” que continua a
atuar no mesmo campo prof‌issional, sendo a informação considerada, portanto, relevante
para o público em geral.
Traçando novamente um paralelo com o Brasil, é importante destacar que os
critérios acima, embora possam ser relevantes para o Poder Judiciário britânico, não
seriam transponíveis à realidade jurídica pátria. Isso porque a legislação brasileira trata a
conf‌issão de culpa como algo espontâneo, que, se existir, pode servir como atenuante da
pena.51 Aliás, de acordo com o STJ, sequer é exigível que o réu demonstre arrependimento
pelo cometimento do delito para a incidência da atenuante da conf‌issão espontânea.52
Além disso, de acordo com a Constituição Federal de 1988, o preso possui o di-
reito ao silêncio,53 o que, no entendimento do STF, inclui a prerrogativa processual de
o acusado negar, ainda que falsamente, a prática da infração penal.54 Além disso, tanto
o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos55 quanto a Convenção Interame-
ricana de Direitos Humanos56 reconhecem aos acusados de um delito o direito de não
ser obrigado a depor contra si mesmo e de não se declarar culpado.
Considerando o exposto, não parece possível que a conf‌issão de culpa e o arrepen-
dimento sejam considerados parâmetros para o reconhecimento e aplicação do direito ao
esquecimento no Brasil. Isso, inclusive, ensejaria um tratamento ainda mais subjetivo do
tema, o que, como se buscou demonstrar no item 1.2 acima, é indesejável e improdutivo.
Retomando a discussão no âmbito da UE e tratando, mais uma vez, de precedentes
recentes, destaca-se que, em junho de 2018, a Corte Europeia de Direitos Humanos
(“CEDH”) rejeitou o reconhecimento do direito ao esquecimento de M.L. e W.W.,57 dois
irmãos condenados pelo assassinato de um ator na década de 90 e que foram colocados
em liberdade condicional em meados dos anos 2000.
51. De acordo com o art. 65, inciso III, alínea d, do Código Penal, são circunstâncias que sempre atenuam a pena ter
o agente confessado espontaneamente, perante a autoridade, a autoria do crime.
52. H.C. 22.927/MS, 6ª T., Rel. Min. Paulo Gallotti, j. 06.05.2003.
53. Nos termos do art. 5º, inciso LXIII, o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado.
54. H.C. 68.929, 1ª T., Rel. Min. Celso de Mello, j. 22.10.1991.
55. Art. 14.3, item g.
56. Art. 8.2, item g.
57. M.L. e W.W. vs. Germany (CE: ECHR: 2018: 0628JUD006079810, ECLI: CE: ECHR: 2018: 0628JUD006079810,
[2018] ECHR 554).
DIREITO AO ESQUECIMENTO.indb 16DIREITO AO ESQUECIMENTO.indb 16 22/04/2020 16:55:5522/04/2020 16:55:55
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CAPítulo I • dIREIto Ao ESquECImENto
Em síntese apertada, a ação foi originalmente ajuizada perante o Tribunal de
Hamburgo contra uma emissora de rádio alemã que exibiu programa sobre o crime às
vésperas da liberação dos autores e manteve transcrição do relato online, com o objetivo
de anonimizar os dados pessoais dos autores que se encontravam disponíveis no sítio
eletrônico da referida rádio. Embora o Tribunal de Hamburgo tenha dado procedência ao
pedido dos autores, a decisão acabou sendo revertida pelos Tribunais superiores, o que
motivou o recurso de M.L. e W.W. à CEDH para proteção de seu direito à privacidade,
com fulcro no artigo 8 da Convenção Europeia de Direitos Humanos.58
Para analisar o caso, a CEDH ponderou os artigos 8 e 10 da referida Convenção,
que tratam, respectivamente, do direito à privacidade e liberdade de expressão, tendo se
baseado, durante este exercício, nos seguintes critérios: (i) contribuição para um debate
de interesse geral; (ii) notoriedade dos interessados e do objeto da notícia; (iii) conduta
assumida anteriormente pelos interessados com relação à mídia; (iv) conteúdo, forma e
impacto da publicação; e (v) circunstâncias da obtenção de imagens. Após considerar tais
parâmetros, a CEDH concluiu que a disponibilização do relato impugnado continuava
a contribuir para um debate de interesse público, o qual não havia diminuído com a
passagem do tempo. Entendeu, assim, que não houve violação do direito à privacidade
de M.L. e W.W.
Como se pode notar, embora os tribunais europeus já tenham enfrentado diversos
casos envolvendo o direito ao esquecimento, ainda não parece haver um entendimen-
to uniforme e consolidado sobre o tema, tampouco soluções para todas as questões e
desaf‌ios por ele impostos.
A temática do alcance territorial da desindexação é um dos exemplos de controvérsia
que, embora tenha sido enfrentada recentemente pela ECJ, ainda deve impor desaf‌ios
complexos no futuro próximo. No caso, o Google francês e a CNIL, autoridade francesa
de proteção de dados, discutiam a determinação da última de exclusão de informações
do sistema mundial de buscas do Google, avançando, assim, para além das fronteiras da
UE. A questão da extraterritorialidade, que é bastante espinhosa, será melhor trabalhada
no Capítulo 2 deste trabalho.
1.4. DIREITO AO ESQUECIMENTO NO BRASIL
1.4.1. Ausência de base legal especíca
Conforme demonstrado no item 1.1 acima, o recurso ao esquecimento encontra-se
presente em diferentes instrumentos utilizados pelo ordenamento jurídico brasileiro,
os quais são utilizados para promover uma maior estabilidade e previsibilidade das re-
lações sociais. Ainda que essa noção não seja estranha ao Direito, nosso ordenamento
jurídico não estabelece um direito ao esquecimento propriamente dito – pelo menos
por enquanto.
58. Convenção disponível, na íntegra, em: https://www.echr.coe.int/Documents/Convention_ENG.pdf. Acesso em
27.11.2018.
DIREITO AO ESQUECIMENTO.indb 17DIREITO AO ESQUECIMENTO.indb 17 22/04/2020 16:55:5522/04/2020 16:55:55
DIREITO AO ESQUECIMENTO E SEUS MECANISMOS DE TUTELA NA INTERNET • JÚLIA COSTA DE OLIVEIRA COELHO
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Na verdade, há quem considere que essa af‌irmativa não é de todo verdadeira. Isso
porque, para alguns, o inciso X do artigo 7º do Marco Civil da Internet, já mencionado
no item 1.3 acima, seria uma forma de positivação do direito ao esquecimento no sistema
pátrio. Não obstante trate da possibilidade de remoção de dados pessoais, acredita-se que,
pela própria redação do dispositivo, concebe-lo como uma manifestação legislativa sobre
o direito ao esquecimento seria uma interpretação excessivamente extensiva,59 por um
lado, e de sobremaneira restritiva, por outro. Isso porque, se entendida como a norma que
regula o direito ao esquecimento, as suas hipóteses de incidência seriam bastante limitadas.
Além disso, como se verá a seguir, a exclusão de dados corresponde a um dos remé-
dios disponíveis para implementação do direito ao esquecimento, não se confundindo
com ele. Ainda sobre o tema de dados pessoais, é importante mencionar a promulgação
de lei que regula a matéria no Brasil, a saber, Lei n. 13.709/2018. Conhecido como Lei
Geral de Proteção de Dados Pessoais ou LGPD, o diploma, assim como o Marco Civil
da Internet, não contém dispositivos específ‌icos ou se refere expressamente ao direito
ao esquecimento.
De acordo com as def‌inições trazidas pela LGPD,60 considera-se como dado pessoal
a informação relacionada a pessoa natural identif‌icada ou identif‌icável, cuja disciplina
tem por fundamentos o respeito à privacidade, a autodeterminação informativa, a li-
berdade de expressão, de informação, de comunicação e de opinião, a inviolabilidade
da intimidade, da honra e da imagem, o livre desenvolvimento da personalidade e a
dignidade, dentre outros.61
Além de prever os requisitos para que os diferentes tipos de dados pessoais sejam
tratados, a lei determina, através de seu artigo 16, que eles sejam eliminados após o tér-
mino de tal tratamento, no âmbito e nos limites técnicos das atividades, ressalvando-se
a possibilidade de sua conservação para determinadas f‌inalidades previstas pela própria
lei.62 Afora a eliminação decorrente da conclusão do tratamento, o artigo 18 garante o
direito de, a qualquer momento e mediante requisição, obter do respectivo controlador
a anonimização, bloqueio ou eliminação de dados desnecessários, excessivos ou trata-
dos em desconformidade com a lei;63 a eliminação dos dados pessoais tratados com o
consentimento do titular, exceto nas hipóteses previstas no art. 16 da lei;64 a correção
de dados que sejam incompletos, inexatos ou desatualizados,65 dentre outros.
É importante esclarecer que a LGPD não se aplica a todo e qualquer tratamento de
dados, ressalvando-se do seu âmbito de atuação, por exemplo, o tratamento realizado
59. SOUZA, Carlos Affonso Pereira de. Dez dilemas sobre o chamado direito ao esquecimento, cit., p. 8.
60. Art. 5, inciso I.
61. Art. 1, incisos I, II, III, IV e VII.
62. Nos termos dos incisos do art. 16, autoriza-se a conservação de dados pessoais para as seguintes f‌inalidades: I –
cumprimento de obrigação legal ou regulatória pelo controlador; II – estudo por órgão de pesquisa, garantida,
sempre que possível, a anonimização dos dados pessoais; III – transferência a terceiro, desde que respeitados os
requisitos de tratamento de dados dispostos nesta Lei; ou IV – uso exclusivo do controlador, vedado seu acesso
por terceiro, e desde que anonimizados os dados.
63. Art. 18, inciso IV.
64. Art. 18, inciso VI.
65. Art. 18, inciso III.
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CAPítulo I • dIREIto Ao ESquECImENto
para f‌ins exclusivamente jornalísticos ou artísticos,66 de segurança pública67 e defesa
nacional.68 Assim, ao menos à primeira vista, parece que os direitos à anonimização,
atualização e eliminação de dados pessoais acima mencionados não seriam oponíveis,
nos termos dessa lei, aos meios de comunicação.
Tendo em vista o exposto, embora seja necessário aguardar o transcurso do tempo
para observar, na prática, os desdobramentos e as formas pelas quais a LGPD será apli-
cada, parece impróprio considera-la como um diploma legal que reconhece ou regula
o direito ao esquecimento.
Existem, contudo, iniciativas que visam o reconhecimento e a regulação, de maneira
expressa, do direito ao esquecimento, tais com a do Projeto de Lei n. 1.676/2015.69 De
acordo com o artigo 3º da versão atual do projeto,70 o direito ao esquecimento é a ex-
pressão da dignidade da pessoa humana, representando a garantia de desvinculação do
nome, da imagem e demais aspectos da personalidade relativamente a fatos que, ainda
que verídicos, não possuem, ou não possuem mais, interesse público.
Nos termos do parágrafo único do preceito acima, os titulares do direito ao esque-
cimento podem exigir dos meios de comunicação social, dos provedores de conteúdo
e dos sítios de busca da rede mundial de computadores, Internet, independentemente
de ordem judicial, que deixem de veicular ou excluam material ou referências que os
vinculem a fatos ilícitos ou comprometedores de sua honra, cabendo à tais meios de
comunicação, provedores e buscadores o dever de criar departamentos específ‌icos para
tratar do direito ao esquecimento, vide artigo 4º.
Embora represente um esforço rumo à regulamentação do tema, o projeto apre-
sentado não aprofunda pontos de suma importância prática, como, por exemplo, os
critérios a serem observados para o reconhecimento do direito ao esquecimento em
concreto. Além disso, o projeto confere aos provedores de serviço de Internet o poder
decisório de exclusão do conteúdo indicado, questão bastante controversa e que será
objeto de discussão no Capítulo 2.
Outro aspecto de extrema relevância é a ausência de diferenciação dos mecanis-
mos de tutela do direito ao esquecimento: como visto acima, o projeto de lei se limita
a estabelecer a abstenção de veiculação ou remoção do conteúdo, deixando de abordar
alternativas menos drásticas que, a depender do caso, podem ser suf‌icientes para im-
plementar o direito ao esquecimento em concreto.
Apesar de ainda não contar com previsão legal expressa, o tema vem sendo ampla-
mente discutido pela doutrina, que se divide entre os que não conseguem concebê-lo
– normalmente motivados pelo temor dos impactos às liberdades comunicativas – e
66. Art. 4, inciso II, alínea “a”.
67. Art. 4, inciso III, alínea “a”.
68. Art. 4, inciso III, alínea “b”.
69. O Projeto de Lei nº 1.676/2015 foi apresentado em 26.05.15 e trata da tipif‌icação do ato de fotografar, f‌ilmar ou
captar a voz de pessoa, sem autorização ou sem f‌ins lícitos, prevendo qualif‌icadoras para as diversas formas de
sua divulgação e dispõe sobre a garantia de desvinculação do nome, imagem e demais aspectos da personalidade,
publicados na rede mundial de computadores, Internet, relativos a fatos que não possuem, ou não possuem mais,
interesse público. Inteiro teor disponível em .camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?-
codteor=1339457&f‌ilename=PL+1676/2015>. Acesso em 02.10.2019.
70. Faz-se referência à versão do Projeto de Lei disponível em 02.10.2019.
DIREITO AO ESQUECIMENTO.indb 19DIREITO AO ESQUECIMENTO.indb 19 22/04/2020 16:55:5522/04/2020 16:55:55
DIREITO AO ESQUECIMENTO E SEUS MECANISMOS DE TUTELA NA INTERNET • JÚLIA COSTA DE OLIVEIRA COELHO
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aqueles que defendem sua pertinência (normalmente fundados na proteção do direito à
privacidade).71 Independentemente do posicionamento adotado, vários são os autores que
procuram conceituar o direito ao esquecimento, conforme observado no item 1.2 acima.
Vale mencionar que o direito ao esquecimento também foi objeto de dois Enuncia-
dos, a saber, os nºs 53172 e 576, 73 das VI e VII Jornadas de Direito Civil, respectivamente,
estando a discussão presente, ainda, no próprio Poder Judiciário, como se verá no item
a seguir. Fica claro que, apesar da ausência de dispositivo legal expresso, o direito ao
esquecimento está presente na realidade jurídica brasileira e, a julgar pela sua repercussão
no mundo, continuará sendo um tema relevante no futuro próximo.
Inobstante a falta de previsão legal, é possível encontrar, através de uma interpre-
tação constitucional sistemática, alguns fundamentos que legitimam o direito ao esque-
cimento, como o direito à privacidade, um dos direitos fundamentais consagrados pela
Constituição, e a dignidade humana, valor maior da Carta Magna, os quais serão melhor
detalhados no item 1.5 abaixo. Além disso, segundo a metodologia civil-constitucio-
nal, é imprescindível considerar a historicidade e relatividade dos institutos jurídicos.
Conforme ensina Pietro Perlingieri, tudo assume uma dimensão histórico-relativa.74
Nesse sentido, o jurista italiano constata que:
Não existem instrumentos válidos em todos os tempos e em todos os lugares [...]. É grave erro pensar
que, para todas as épocas e para todos os tempos haverá sempre os mesmos instrumentos jurídicos. É
justamente o oposto: cada lugar, em cada época terá os seus próprios mecanismos.75
A lição de Perlingieri é extremamente pertinente para a discussão sobre o direito
ao esquecimento. Com as diversas e profundas transformações sociais e as novas tec-
nologias, há que se pensar em instrumentos atuais e ef‌icazes que de fato promovam
e protejam os direitos fundamentais dos indivíduos, como o direito à privacidade e à
identidade pessoal, derivado da cláusula geral de tutela da dignidade humana.76 O direi-
to ao esquecimento se mostra, assim, af‌inado com a metodologia civil-constitucional,
inclusive na medida em que, ao analisa-lo sob o aspecto funcional (ou seja, para que ele
serve), verif‌ica-se a sua compatibilidade com os valores constitucionais.77
Malgrado não esteja expressamente previsto no ordenamento vigente, o direito ao
esquecimento, assim como tantos outros, se volta para a instrumentalização do valor
71. Sobre as diferentes posições acerca do direito ao esquecimento, v. SCHREIBER, Anderson. Manual de direito civil
contemporâneo. São Paulo: Saraiva Educação, 2018, pp. 141-142.
72. Enunciado 531: A tutela da dignidade da pessoa humana na sociedade da informação inclui o direito ao esque-
cimento.
73. Enunciado 576: O direito ao esquecimento pode ser assegurado por tutela judicial inibitória.
74. PERLINGIERI, Pietro. Perf‌is do direito civil: introdução ao direito civil constitucional. Rio de Janeiro: Renovar,
2007, p. 58.
75. PERLINGIERI, Pietro. Normas constitucionais nas relações privadas. Revista da Faculdade de direito da UERJ, n.
6 e 7, 1998/1999, pp. 63-64
76. SCHREIBER, Anderson. Direito ao esquecimento: críticas e respostas. Disponível em: http://www.cartaforense.
com.br/conteudo/colunas/direito-ao-esquecimento-criticas-e-respostas/17830 Acesso em 30.04.2018.
77. Sobre a análise funcional dos institutos na metodologia civil-constitucional, v. SCHREIBER, Anderson; KON-
DER, Carlos Nelson. Uma agenda para o direito civil-constitucional. Revista brasileira de direito civil, vol. 10,
out.-dez./2016, pp. 13-14.
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CAPítulo I • dIREIto Ao ESquECImENto
da pessoa. Na lição de Perlingieri, deve-se pensar na personalidade como um valor, e
não um direito, que está na base de uma série aberta de situações existenciais, nas quais
se traduz a sua incessantemente mutável exigência de tutela.78 Seguindo esse entendi-
mento, não há que se restringir as hipóteses tuteladas, e sim buscar, por meio de uma
tutela elástica, a efetiva proteção irrestrita do valor da pessoa, que é o valor fundamental
do ordenamento.79
A pessoa humana deve contar, portanto, com ferramentas adequadas e que
possibilitem a efetiva promoção dos valores e princípios a ela garantidos pela Cons-
tituição Federal de 1988. O direito ao esquecimento pode ser um desses recursos,
entendido aqui como o exercício da liberdade para o desenvolvimento e realização
pessoal, direitos fundamentais da pessoa,80 bem como uma ferramenta para a efetiva
instrumentalização do direito à autodeterminação informativa, noção mais atualizada
do direito à privacidade.81
Os críticos mais ferrenhos, afeitos à lógica positivista, podem insistir que a falta
de previsão legal é um obstáculo ao reconhecimento do direito ao esquecimento. Para
eles, na ausência de lei correspondente, o direito ao esquecimento se revelaria dema-
siadamente abstrato, o que conduziria, por sua vez, à uma extrema discricionariedade
do poder judiciário no momento de aplicação do mesmo.
Os defensores desse ponto de vista parecem desconsiderar que outros direitos,
como a própria liberdade de expressão e privacidade, também são extremamente f‌luidos,
sendo isso uma das características dos direitos fundamentais e o motivo pelo qual, não
raro, eles entram em conf‌lito.82 Além disso, outros institutos que também não possuem
previsão legal correspondente (e de noção igualmente f‌luida) são amplamente reco-
nhecidos e aplicados, a exemplo do princípio da segurança jurídica. É curioso pensar,
inclusive, que muitos evocam a ameaça que o direito ao esquecimento representa ao
referido princípio como um dos seus aspectos negativos.
Embora se discorde do argumento meramente formalista, entende-se que, se usado,
ele não pode funcionar em via de mão única: ou bem se exige que tudo deve constar em
lei, ou se reconhece, como na lógica perlingieriana, a possibilidade de institutos que
surgem, de tempos em tempos, para promover e garantir os valores do ordenamento
jurídico.
Negar a existência do direito ao esquecimento em caráter absoluto somente pela
falta de previsão legal expressa parece, portanto, pouco útil ou mesmo factível, sendo
78. PERLINGIERI, Pietro. Perf‌is de direito civil, cit., pp. 155-156.
79. PERLINGIERI, Pietro. Perf‌is de direito civil, cit., p. 156.
80. Nas palavras de Stefano RODOTÀ: “Libertar-se da opressão dos registros, de um passado que continua a onerar
fortemente o presente, torna-se um objetivo de liberdade. O direito ao esquecimento se apresenta como o direito
de governar a própria memória, para restituir a qualquer um a possibilidade de reinventar-se, de construir sua
personalidade e identidade [...]”. (Tradução livre. No original: “Liberarsi dall’ oppressione dei ricordi, da un
passato che continua ad ipotecare pesantemente il presente, diviene un traguardo di libertà. Il diritto all’ oblio si
presenta come diritto a governare la propria memoria, per restituire a ciascuno la possibilità di reinventarsi, di
costruire personalità e identità [...]”. (Dai ricordi ai dati l”oblio è um diritto?, cit.)).
81. RODOTÀ, Stefano. A vida na sociedade de vigilância: a privacidade hoje. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 109.
82. SCHREIBER, Anderson. Direito ao esquecimento: críticas e respostas, cit.
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DIREITO AO ESQUECIMENTO E SEUS MECANISMOS DE TUTELA NA INTERNET • JÚLIA COSTA DE OLIVEIRA COELHO
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mais produtivo ref‌letir criticamente sobre a sua def‌inição, as hipóteses de aplicação e os
critérios para tanto – até mesmo porque, com isso, elimina-se a incompatibilidade do
direito ao esquecimento e a segurança jurídica, tornando o primeiro um instrumento
para garantir a última. Sem prejuízo do exposto até aqui, há que se perguntar se isso
deve ser feito pela via legislativa.
Por um lado, a legislação poderia ajudar a def‌inir melhor no que consiste o direito ao
esquecimento, afastando, assim, interpretações puramente voluntaristas ou extremamente
restritivas, além de trazer parâmetros para a seleção e aplicação dos diferentes remédios
disponíveis, os quais serão melhor explorados nos capítulos seguintes deste trabalho.
Por outro lado, justamente pela natureza e pelo bem que o direito ao esquecimento
visa proteger, parece difícil conf‌ina-lo em um conceito matematicamente delimitado83
ou determinar, de forma exaustiva, quando e como ele deve ser aplicado. Isso se mostra
ainda mais complexo sob o aspecto prático, quando se pensa, por exemplo, na aplicação
do direito ao esquecimento na Internet.
Com os constantes avanços tecnológicos, o locus digital cria novos e constantes
desaf‌ios ao Direito, sendo virtualmente impossível prever taxativamente e de antemão as
hipóteses e forma de aplicação do direito ao esquecimento na Internet. Isso não signif‌ica,
por óbvio, que essa aplicação deve ser meramente casuística, apenas que a pretensão de
regula-lo em caráter absoluto pela via legislativa seria inócua.
Nada impede que a lei venha a oferecer um norte ao intérprete, mas deve-se man-
ter certo grau de f‌luidez, permitindo, pois, a consideração das circunstâncias do caso
concreto para a tomada de decisões adequadas e aptas a produzir os efeitos pretendidos.
Para tanto, é oportuno que eventual reconhecimento legislativo da matéria seja feito
através do uso de cláusulas gerais, e não mediante o recurso à técnica regulamentar.
No entendimento de Rodotà, as cláusulas gerais são os instrumentos mais ade-
quados para regular uma realidade de dinamismo crescente, e, portanto, irredutível à
tipif‌icação de hipóteses pré-def‌inidas, motivo pelo qual as considera a única resposta
razoável às exigências de um tempo como o nosso.84
Como já mencionado, o direito ao esquecimento é um tema relativamente novo e
ainda em desenvolvimento, que envolve aspectos diversos e complexos, muitos deles,
inclusive, não-jurídicos. Assim sendo, parece impossível que a legislação consiga apre-
ende-lo em sua totalidade, bem como anteveja todas as suas hipóteses de incidência e
as soluções para os variados desaf‌ios que ele impõe.
Além disso, no que diz respeito à Internet, há que se considerar a instabilidade e
mutabilidade que lhe são características. As constantes transformações do meio digital
e o contínuo surgimento de novas tecnologias (ou mesmo de novos desdobramentos
daquelas já existentes) rapidamente tornariam qualquer dispositivo regulamentar de-
satualizado e insuf‌iciente.
83. Expressão de Anderson SCHREIBER (Direito ao esquecimento: críticas e respostas, cit.)
84. RODOTÀ, Stefano. Ideologie e techniche della riforma del diritto civile. Rivista del Diritto Commerciale, anno
LXV, n. I, 1967, p. 96.
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CAPítulo I • dIREIto Ao ESquECImENto
É importante reconhecer, ainda, que a própria sociedade se encontra em permanen-
te evolução, devendo as mudanças sociais serem igualmente ref‌letidas e consideradas
para uma aplicação adequada do direito ao esquecimento ao longo do tempo. Cumpre
esclarecer que, nas palavras de Rodotà, a opção por cláusulas gerais não representa um
atentado à certeza ou o abandono ao arbítrio das razões do cidadão, pois, mesmo em
um sistema baseado em tais cláusulas, a fundamentação da decisão não será resultado
da escolha livre do juiz ou extraída de um sentir social genérico.85
Portanto, não se deve rejeitar de plano o recurso à cláusula geral sob o argumento de que
isso conferiria ao juiz um poder excessivo ou tornaria o direito ao esquecimento demasiada-
mente f‌luido. Como se demonstrará à exaustão ao longo desse trabalho, essas preocupações
podem ser mitigadas através de um controle efetivo da fundamentação das decisões judiciais.
2015 (“CPC/15”),87 a fundamentação é, no entendimento de Calamandrei, uma garantia
de justiça, a qual deve permitir a verif‌icação do itinerário lógico percorrido pelo juiz
para chegar à determinada conclusão.88 Mais do que assegurar uma decisão justa, parece
razoável af‌irmar que a fundamentação é o que conferirá a ela legitimidade na medida
em que promover a concretização dos princípios da segurança jurídica, da proteção da
conf‌iança e da isonomia. De acordo com a síntese de Nelson e Rosa Nery:
A motivação da sentença tem por escopo imediato demonstrar ao próprio juiz, antes mesmo que às
partes, a ratio scripta que legitima o decisório [...]; mostra à parte sucumbente que a decisão não é fruto
da sorte ou do acaso, mas de atuação da lei; permite o controle crítico da sentença, possibilitando o
dimensionamento da vontade do juiz e a vericação dos limites objetivos do julgado.89
Considerando a inadequação de previsões legais regulamentares para regular devida
e completamente um tema como o do direito ao esquecimento e, ainda, a exigência legal
de fundamentação adequada das decisões, acredita-se que a regulação mais apropriada
da matéria, se feita pela via legislativa, seria alcançada por meio de cláusulas gerais, as
quais tem se revelado um instrumento apto a reger um futuro imprevisível e a regular a
dinâmica de uma sociedade em constante transformação.90
1.4.2. Fundamentos do direito ao esquecimento no direito brasileiro
1.4.2.1. Direito à privacidade
1.4.2.1.1. Evolução conceitual
Antes de tratar da proteção conferida pelo ordenamento jurídico brasileiro ao direito
à privacidade, é importante compreender, ainda que em linhas gerais, o signif‌icativo
85. RODOTÀ, Stefano. Ideologie e techniche della riforma del diritto civile, cit., p. 96.
86. Art. 93, inciso IX.
87. Art. 489, inciso II.
88. CALAMANDREI, Piero. Eles, os juízes, vistos por nós, os advogados. São Paulo: Pillares, 2013, p. 207.
89. NERY JUNIOR; Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de processo civil comentado. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2016, p. 1153.
90. RODOTÀ, Stefano. Ideologie e techniche della riforma del diritto civile, cit., pp. 94-95.
DIREITO AO ESQUECIMENTO.indb 23DIREITO AO ESQUECIMENTO.indb 23 22/04/2020 16:55:5522/04/2020 16:55:55
DIREITO AO ESQUECIMENTO E SEUS MECANISMOS DE TUTELA NA INTERNET • JÚLIA COSTA DE OLIVEIRA COELHO
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processo evolutivo pelo qual a noção de privacidade passou em decorrência das diversas
e severas transformações sociais.
De acordo com Lewis Mumford, inexistia, na moradia medieval, qualquer dife-
renciação funcional do espaço.91 Segundo o historiador, com o decorrer do tempo, a
estrutura habitacional altera-se signif‌icativamente: os espaços até então comuns – usa-
dos tanto para moradia quanto para trabalho – passam por um processo de separação,
sendo os ambientes organizados, conforme suas f‌inalidades, em diferentes cômodos.92
Para Mumford, o modelo medieval é abandonado justamente por conta do de-
senvolvimento da noção de privacidade, inicialmente entendida como um retirar-se
voluntariamente da vida e do interesse comum. Observa-se uma tendência de valoriza-
ção da proteção da esfera íntima, seja para realização de refeições, de rituais religiosos
e sociais, ou mesmo para o próprio pensamento.93 O historiador norte-americano
nota, ainda, que o desejo pela vida privada marca o início de um novo alinhamento
de classes, que conduziu, posteriormente, à competição impiedosa de classes e au-
toaf‌irmação individual.94 Fato é que, nas palavras de Mumford, a privacidade era o
novo luxo dos abastados.
Na era medieval, gozam de privacidade os aprisionados em estruturas carcerárias
denominadas “solitárias” – identif‌icando-se, nesse caso, com a ideia de isolamento para
punição – ou indivíduos devotados à vida religiosa, que buscavam refúgio dos pecados
e distrações do mundo externo. Além desses, apenas a nobreza poderia sonhar com a
possibilidade de uma vida privada. No século XVII, contudo, a noção de privacidade
passa a se identif‌icar com a satisfação do ego individual.95
Em meados do século XIX, a privacidade correspondia a um privilégio burguês. Os
seus contornos são expressamente delineados, pela primeira vez, por Samuel Warren e
Louis Brandeis, em artigo por eles publicado na Harvard Law Review, denominado The
Right to Privacy. Nele, consagra-se a interpretação, hoje clássica, de privacidade como o
“direito de ser deixado só”. Stefano Rodotà observa que o estudo de Warren e Brandeis
se baseava na lógica proprietária tradicional, ou seja, da propriedade como o direito de
excluir o outro (ius excludendi alios).96
Nesse sentido, o jurista italiano destaca que o burguês moderno se apropria de seu
espaço interior pela mesma técnica que permitiu sua apropriação do espaço físico.97
Rodotà é novamente feliz ao concluir, inspirado em uma declaração de Greta Garbo,
que a ideia de “ser deixado só” não se confunde com a vontade de estar só: é possível
escolher viver em paz sem que, para isso, se pretenda viver de forma isolada.98
91. MUMFORD, Lewis. A cidade na história: sua origem, transformações e perspectivas. São Paulo: Martins Fontes,
1998, p. 313.
92. MUMFORD, Lewis. The Culture of Cities. Florida: Harcourt Brace Jovanovich, 1970, p. 114.
93. MUMFORD, Lewis. The Culture of Cities, cit., p. 40.
94. MUMFORD, Lewis. The Culture of Cities, cit., p. 40.
95. MUMFORD, Lewis. The Culture of Cities, cit., p. 118.
96. RODOTÀ, Stefano. Intervista su Privacy e Libertà. A cura di Paolo Conti. Editori Laterza, 2005, p. 8.
97. RODOTÀ, Stefano. Intervista su Privacy e Libertà, cit., p. 8.
98. RODOTÀ, Stefano. Intervista su Privacy e Libertà, cit., p. 10.
DIREITO AO ESQUECIMENTO.indb 24DIREITO AO ESQUECIMENTO.indb 24 22/04/2020 16:55:5622/04/2020 16:55:56
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CAPítulo I • dIREIto Ao ESquECImENto
Entretanto, em um contexto de profundos e constantes avanços tecnológicos,
marcado pela coleta e tratamento de informações, faz-se necessário (re)pensar o tema
da privacidade e a suf‌iciência de sua concepção anterior. Tais avanços impõem altera-
ções signif‌icativas à realidade social e trazem diversos novos desaf‌ios, especialmente
complexos considerando a transposição de barreiras físicas e a velocidade das trocas
de informação.
A verdade é que, na era digital, dif‌icilmente alguém está a sós, seja voluntariamente
ou não. Com as facilidades tecnológicas, os indivíduos recorrem cada vez mais aos seus
dispositivos e à rede para os mais diversos f‌ins. Usa-se o aplicativo do banco para paga-
mento de contas, o site do supermercado para as compras da casa, os recursos do aparelho
celular ou do computador para se comunicar com clientes, amigos e (des)conhecidos.
Para dispor de cada uma dessas, e das inf‌initas outras funcionalidades dos meios
digitais, os usuários disponibilizam as mais diversas informações pessoais. Em certa
medida, isso é necessário para viabilizar o uso pretendido: não é possível, por exemplo,
fazer uma compra eletrônica sem informar o endereço de entrega do produto adquirido.
Há dados que, no entanto, são absolutamente desnecessários; pior, que o usuário sequer
tem consciência de que está compartilhando.99
Independentemente da essencialidade das informações prestadas, todas elas deve-
riam ser obtidas de forma transparente e utilizadas, com o conhecimento e consentimento
do usuário, para a f‌inalidade que foram coletadas. Porém, o que se observa na prática é o
extremo oposto, a começar pelos termos de privacidade que os usuários devem aceitar
para acessar um conteúdo online.
Na prática, nota-se que esses termos pouco contribuem para a efetiva informação do
usuário ou traduzem seu real consentimento, seja pela falta de clareza, seja pela redação
truncada e consequente dif‌iculdade prática de um cidadão médio compreender o verda-
deiro signif‌icado das especif‌icidades ali previstas, ou mesmo pelo teor excessivamente
longo dos instrumentos. Em pesquisa conduzida sobre o tema, Lorrie Faith Cranor e
Aleecia McDonald concluíram que um usuário levaria, em média, duzentas e uma horas
para ler as políticas de privacidade com que se depara em um ano, assumindo que tal
leitura somente se f‌izesse necessária anualmente (e não, por exemplo, a cada vez que o
usuário acesse certa plataforma online).100
Além disso, via de regra, o usuário não é capaz de dimensionar o real alcance das
informações por ele disponibilizadas na Internet: não importa o quanto o indivíduo
sabe – ou acha que sabe – ele dif‌icilmente poderá prever o impacto causado pelo com-
partilhamento de seus dados. Haja vista a dif‌iculdade em calcular os potenciais danos,
os quais, no momento do acesso à certa funcionalidade, são considerados abstratos e
99. É o caso, por exemplo, dos cookies. Conforme def‌inição da Microsoft, cookie é um pequeno arquivo baseado em
texto fornecido por um site visitado que ajuda a identif‌icar o usuário para aquele site, sendo usado para manter
as informações de estado conforme o usuário navega por diferentes páginas em um site ou retorna ao site poste-
riormente. (Def‌inição disponível em .
Acesso em 20.08.2018)
100. CRANOR, Lorrie Faith; MCDONALD, Aleecia. The cost of reading privacy policies. Disponível em: < http://lorrie.
cranor.org/pubs/readingPolicyCost-authorDraft.pdf >. Acesso em 12.10.2018. p. 19.
DIREITO AO ESQUECIMENTO.indb 25DIREITO AO ESQUECIMENTO.indb 25 22/04/2020 16:55:5622/04/2020 16:55:56
DIREITO AO ESQUECIMENTO E SEUS MECANISMOS DE TUTELA NA INTERNET • JÚLIA COSTA DE OLIVEIRA COELHO
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diferidos no tempo, os usuários costumam optar por fornecer informações pessoais em
troca de um serviço que, diferentemente desses possíveis danos, lhes oferece conveni-
ências concretas, imediatas e facilmente calculáveis.101
Os dados – sabidamente compartilhados ou não – são coletados, tratados, utilizados
para criação de perf‌is de consumo e, em muitas hipóteses, até mesmo comercializados.
De certa forma, as pessoas – que, na perspectiva kantiana, deveriam ser f‌ins em si mes-
mas – tornam-se meios para outras f‌inalidades, basicamente patrimoniais.102 O objetivo
é conhecer e classif‌icar,103 e por meio do conhecimento e da classif‌icação, permite-se a
vigilância e o controle dos usuários, também exercidos por recursos tecnológicos di-
versos, como, por exemplo, a função localizadora dos aparelhos celulares. Cria-se, por
assim dizer, um panopticon digital,104 onde todos são constantemente observados, cada
comportamento registrado e gravado: é o presente concretizando, em certa medida, o
futuro imaginado por George Orwell.105
Um olhar totalmente objetivo e afastado poderia sugerir que essa realidade beira o
insuportável e que o preço que se paga pelas funcionalidades oferecidas é alto demais.
Contudo, por motivos diversos e das mais variadas ordens, boa parte das pessoas parece
não se importar tanto, exatamente por não ter um grande apego à ideia de privacidade
(pelo menos não em sua noção tradicional).
O compartilhamento de momentos íntimos nas redes é amplamente aceito pela
sociedade,106 especialmente pelas novas gerações, que já nascem posando e “postando”.
Elas fazem uso das mais diferentes ferramentas, como redes sociais, para verem e serem
vistas, numa verdadeira espetacularização da vida humana. É uma espécie de “Show de
Truman”, só que, na trama da vida real, até o personagem principal sabe e, muitas vezes,
se propõe a desempenhar esse papel.107 A verdade é que as pessoas, ou, pelo menos, boa
parte delas, não quer fazer nenhuma das duas escolhas vislumbradas por Rodotà: não
querem mais ser deixadas sós, tampouco estarem sós (muito embora se possa questio-
nar até que ponto o comportamento atual não leva a uma profunda solidão coletiva).108
101. JONES, Meg Leta. Ctrl + Z, cit., pp. 84-87.
102. RODOTÀ, Stefano. A vida na sociedade de vigilância, cit., p. 128.
103. Sobre as chamadas sociedades da classif‌icação e de vigilância, v. Stefano Rodotà. A vida na sociedade de vigilância,
cit., p. 111 e ss.
104. Expressão de Viktor MAYER-SCHÖNBERGER (Delete, cit. p. 27). Ela faz alusão ao panopticon na forma original-
mente abordada por Jeremy BENTHAM (O Panóptico ou a Casa de Inspeção. In. SILVA, Tomaz Tadeu da (Org.).
O Panóptico. Belo Horizonte: Autêntica, 2000), ideia posteriormente explorada por Michel FOUCAULT (Vigiar
e Punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 2009).
105. Faz-se referência novamente à obra de George ORWELL, 1984, cit.
106. Nas palavras de Umberto ECO, “[...] talvez por causa da chamada sociedade líquida, na qual todos estão em
crise de identidade e de valores e não sabem onde buscar os pontos de referência para def‌ine-se, o único modo
de adquirir reconhecimento social é “mostrar-se” – a qualquer custo”. (ECO, Umberto. A perda da privacidade.
In. Pape Satàn Aleppe, cit., p. 38)
107. Ainda na feliz síntese de Umberto ECO, “[...] pela primeira vez na história da humanidade, os espionados cola-
boram com os espiões, facilitando o trabalho destes últimos, e esta rendição é para eles um motivo de satisfação
porque af‌inal são vistos por alguém enquanto levam a vida”. (ECO, Umberto. A perda da privacidade. In. Pape
Satàn Aleppe, cit., p. 38)
108. Na visão extremista de Umberto ECO, “[a]s pessoas não querem privacidade, embora e invoquem”. (Nos recôn-
ditos do DNA. In. Pape Satàn Aleppe, cit., p. 39)
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Nesse panorama, f‌ica cada vez mais difícil traçar uma linha entre as esferas pública
e privada dos indivíduos,109 membros de uma verdadeira sociedade confessional. Recor-
rendo novamente às instigantes provocações de Rodotà, a privacidade, atualmente,
parece existir somente – e se muito – em nossas mentes.110
Grande parte do tempo, as pessoas vivem e enxergam umas às outras através das
telas de seus dispositivos eletrônicos, incorporando, assim, o temerário ideal do “homem
de vidro”. Diz-se temerário porque cria um padrão de transparência absoluta que é, por
sua vez, extremamente oneroso e invasivo. Em um ambiente de constante exibição da
vida íntima, reivindicar um mínimo de privacidade chega a causar estranheza, como
se houvesse a intenção de esconder algo, o que coloca em dúvida o “bom cidadão”.111
Nesse contexto, a privacidade volta a ser um item de luxo, tal qual na sua origem
burguesa, com a diferença de que, nos dias de hoje, não é o poder aquisitivo que pro-
porciona uma vida privada. Quem tem mais dinheiro não possui, necessariamente, mais
privacidade: na verdade, a maioria dispõe dela a título gratuito e sequer sabe como, ou
possui meios para recupera-la.
Na era digital, o próprio conceito de liberdade é, por vezes, distorcido. As pessoas
são livres para compartilhar pensamentos e imagens, mas não gozam da mesma liberdade
caso decidam removê-los. Mesmo que consigam retirar o conteúdo temporariamente,
outros podem compartilhá-lo e, assim, a informação que se pretendia excluir tende a
ser propagada livremente. É como se a vedação ao comportamento contraditório (venire
contra factum proprium), cuja aplicação é justif‌icável em âmbitos como o contratual,
pudesse ser transposta aos direitos da personalidade. Nessa lógica, a exposição é um
caminho sem volta; não há espaço para um direito de arrependimento.
Para além disso, é possível pensar se a escolha do usuário nas redes é, de fato, uma
escolha livre.112 Para realizar a maioria das atividades online, o usuário precisa aceitar
termos e condições sobre os quais não tem qualquer poder de barganha – por vezes, sequer
de compreensão – bem como fornecer dados pessoais, voluntária e involuntariamente.
Essa questão se torna ainda mais complexa ao se considerar que muitos usuários são
menores de idade, caso em que a verif‌icação da liberdade de escolha e de consentimento
é ainda mais espinhosa.
109. RODOTÀ, Stefano. A vida na Sociedade de Vigilância, cit., p. 128. Em linha similar, Ângela Guimarães PEREIRA,
Lucia VESNI-ALUJEVI e Alessia GHEZZI observam que “as esferas pública e privada nunca estiveram tão
borradas quanto nos tempos atuais”. (Tradução livre. No original: “[n]ever have the public and private spheres
been so blurred as in our current times”. The ethics of forgetting and remembering in the digital world through
the eye of the media. In. GHEZZI, Alessia; PEREIRA, Ângela Guimarães; VESNI-ALUJEVI, Lucia (Coord.) The
ethics of memory in a digital age. Inglaterra: Palgrave Macmillan, 2014, p. 21)
110. RODOTÀ, Stefano. Intervista su Privacy e Libertà, cit., p. 111.
111. RODOTÀ, Stefano. Intervista su Privacy e Libertà, cit., p. 12.
112. Sobre a liberdade de escolha, interessante a posição de Cass S. SUNSTEIN e Richard H. THALER, segundo os quais
“o que [as pessoas] escolhem é fortemente inf‌luenciado por detalhes do contexto no qual fazem determinada
escolha, como por exemplo, as regras padronizadas, os efeitos da contextualização (ou seja, a formulação semântica
das opções) e os pontos de partida”. (SUNSTEIN, Cass S.; THALER, Richard H. O paternalismo libertário não é uma
contradição em termos. Trad. Fernanda Cohen. Civilistica.com. Revista eletrônica de direito civil. Rio de Janeiro: a.
4, n. 2, 2015. Disponível em: . Acesso
em 04.05.2017. pp. 2-3).
DIREITO AO ESQUECIMENTO.indb 27DIREITO AO ESQUECIMENTO.indb 27 22/04/2020 16:55:5622/04/2020 16:55:56
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Há quem diga, porém, que essas são as regras do jogo, quem não está disposto a
aceita-las pode simplesmente não fazer uso das funcionalidades tecnológicas. Isso é,
contudo, impraticável na atual conjuntura. Não se trata mais, ou apenas, de ferramentas
destinadas ao lazer: o uso das redes é essencial, dentre outros, para o exercício da ativi-
dade prof‌issional e estudantil, não sendo a abstinência digital, portanto, uma solução
razoável.113
Af‌inal, até que ponto a escolha de exibir sua rotina e dividir suas informações pode
vincular os indivíduos? A imagem publicada na rede em um determinado momento da
vida de alguém pode ser reproduzida por terceiros livremente, hoje ou daqui a 10 anos,
em qualquer veículo ou formato? Os dados fornecidos em um certo contexto podem
servir para os mais variados f‌ins?
Na obra Delete, Viktor Mayer-Schönberger traz questionamentos similares, am-
parado por alguns casos concretos, como o de S.,114 uma norte-americana que publicou
em uma rede social uma foto fantasiada de pirata, segurando copos de bebida suposta-
mente alcoólica, sob a legenda “drunken pirate” (pirata bêbado, em tradução livre). Ao
tomar conhecimento do registro fotográf‌ico, a administração da universidade em que
S. estudava decidiu que a aluna não poderia se tornar professora, embora contasse com
os créditos e tivesse sido aprovada nos exames necessários para tanto, sob o argumento
de que seu comportamento havia sido antiprof‌issional. A aspirante a professora chegou
a processar a universidade, porém, sem sucesso.115
Não faltam exemplos similares na experiência brasileira, como o caso de N.O.,
cujo vídeo preparado no contexto de seu bar mitzvah tornou-se extremamente po-
pular. A despeito da manifesta vontade do protagonista do registro – que era, à época,
menor de idade – de excluir o conteúdo da plataforma de distribuição digital YouTube,
inclusive pela via legal, a ordem judicial de retirada foi proferida apenas 4 anos mais
tarde.116 Frente a casos como esse, há que se ponderar sobre a questão suscitada por
Viktor Mayer-Schönberger: é razoável que todos os que publicam informações sobre si
na Internet percam o controle sobre elas para sempre?117
Assumir que a resposta é af‌irmativa nos conduz a uma realidade preocupante.
Signif‌ica aceitar que o poder de desenvolvimento e evolução dos seres humanos está
limitado: qualquer erro ou mesmo um acerto ultrapassado, que talvez sequer corresponda
à realidade daquela pessoa, f‌icarão permanentemente gravados, como uma tatuagem,
113. Assim, SCHREIBER, Anderson. Marco Civil da Internet: avanço ou retrocesso? A responsabilidade civil por dano
derivado do conteúdo gerado por terceiro. In. DE LUCCA, Newton; SIMÃO FILHO, Adalberto; LIMA, Cintia
Rosa Pereira de (Coord.). Direito & Internet III – Tomo II: Marco Civil da Internet (Lei n. 12.965/2014). São Paulo:
Quartier Latin, 2015., p. 282.
114. Por respeito à privacidade dos envolvidos, esse trabalho se limita a usar as siglas de seus nomes sempre que tratar
de exemplos concretos.
115. MAYER-SCHÖNBERGER, Viktor. Delete, cit., pp. 2-3.
116. Como o processo corre em segredo de justiça, não foi possível apurar o andamento mais atualizado da ação. Não
obstante, em acesso ao site do YouTube na data de 02.10.2019, foi possível encontrar mais de 7.000 vídeos como
resultado ao termo de pesquisa “N.O.”.
117. MAYER-SCHÖNBERGER, Viktor. Delete, cit., p. 4.
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CAPítulo I • dIREIto Ao ESquECImENto
na sua pele digital.118 Há espaço para um direito à privacidade nesse cenário, ou ele se
torna completamente esvaziado?
Ao ref‌letir sobre o conceito de privacidade nos dias atuais, Rodotà propõe uma
releitura interessante, passando a identif‌ica-la com a capacidade de controlar as próprias
informações.119 Considerando as transformações ocasionadas pelas novas tecnologias,
inclusive ao próprio f‌luxo de informações, parece razoável reconhecer que o direito à
privacidade não pretende mais ou necessariamente restringir o acesso de terceiros a in-
formações pessoais, e sim garantir aos indivíduos o controle sobre aquelas informações
que lhes dizem respeito.120
Nessa concepção atualizada do right of privacy, faz-se necessário reconhecer um poder
negativo, ou seja, de exclusão de certas informações da esfera privada, permitindo, assim,
a efetiva autodeterminação informativa.121 Observa-se, ainda, uma profunda mudança
na função social e política da privacidade, que vai além da esfera privada do indivíduo,
tornando-se um componente da cidadania no novo milênio.122 Nas palavras de Rodotà:
Sem que haja uma forte proteção das informações que lhes digam respeito, os indivíduos correm o
risco cada vez maior de serem discriminados em razão de suas opiniões, crenças religiosas e saúde. A
privacidade deve ser, assim, considerada um elemento essencial da sociedade de igualdade. Na ausên-
cia de proteção efetiva dos dados referentes às opiniões políticas [...], os indivíduos correm o risco de
serem excluídos dos processos democráticos. Portanto, a privacidade está se tornando um pré-requisito
para a inclusão na sociedade de participação. Na falta de proteção concreta do corpo eletrônico, [...]
coloca-se em risco a liberdade individual como tal e reforça-se a tendência de construção de uma
sociedade de vigilância, classicação e seleção social: torna-se evidente, assim, que a privacidade
é um instrumento necessário para salvaguardar a sociedade de liberdade. Sem resistência [...] a um
controle contínuo, nos encontraremos despidos e impotentes perante os poderes públicos e privados:
a privacidade se identica, assim, como um componente ineliminável da sociedade de dignidade.123
Nesse sentido, nota-se que o direito à privacidade não se destina exclusivamente
à proteção da vida privada de cada um, mas também à garantia de outros direitos fun-
118. MAYER-SCHÖNBERGER, Viktor. Delete, cit., p. 14.
119. RODOTÀ, Stefano. A vida na sociedade de vigilância, cit., p. 109. Em linha similar, Anderson SCHREIBER observa
que “[o] direito à privacidade abrange, hoje, não apenas a proteção à vida íntima do indivíduo, mas também a
proteção de seus dados pessoais. Em outras palavras: o direito à privacidade hoje é mais amplo que o simples
direito à intimidade. Não se limita ao direito de cada um de ser ‘deixado só’ ou de impedir a intromissão alheia
na sua vida íntima e particular. [...] Nesse sentido, a privacidade pode ser def‌inida sinteticamente como o direito
ao controle da coleta e da utilização dos próprios dados pessoais”. (Direitos da personalidade, cit., p. 139).
120. Sobre o tema, Charles FRIED af‌irma que “a privacidade não é simplesmente uma ausência de informações sobre
o que está na mente dos outros, e sim o controle que possuímos sobre as informações que nos dizem respeito”.
(Tradução livre. No original: “privacy is not simply an absence of information about what is in the minds of others;
rather it is the control we have over information about ourselves”. (Privacy. The Yale Law Journal, vol. 77, n. 3,
jan. 1968, p. 482)).
121. Merece destaque a contribuição do Tribunal Constitucional alemão que, em decisão de 1983, tratou pela primeira
vez da noção de autodeterminação informativa. (BundesVerfassungsGericht, 1983)
122. Ainda sobre a relevância da privacidade para além da esfera individual, Priscilla M. REGAN observa que a pri-
vacidade não é importante apenas em razão da sua proteção do indivíduo enquanto tal, mas também porque os
indivíduos compartilham uma percepção comum sobre a importância e signif‌icado da privacidade, porque ela
opera como uma restrição à forma como as organizações usam seu poder e porque a privacidade – ou a falta dela
– está integrada aos nossos sistemas, práticas e procedimentos organizacionais. (Legislating privacy: technology,
social values, and public policy. EUA: The University of North Carolina Press, 1995, p. 23)
123. RODOTÀ, Stefano. Intervista su Privacy e Libertà, cit., p. 148.
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DIREITO AO ESQUECIMENTO E SEUS MECANISMOS DE TUTELA NA INTERNET • JÚLIA COSTA DE OLIVEIRA COELHO
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damentais e liberdades, sendo, ela própria, um aspecto da liberdade individual.124 O
direito à privacidade se revela, ainda, como um elemento essencial à manutenção de
um ambiente verdadeiramente democrático.
Essa percepção é particularmente relevante ao se considerar que, muitas vezes,
defende-se a prevalência das liberdades comunicativas em confronto com o direito à
privacidade justamente sob o argumento de que as primeiras instrumentalizam o exercí-
cio dos demais direitos,125 sendo um direito multifuncional126 e, ainda, um pressuposto
democrático,127 na medida em que criam um ambiente propício para a confrontação de
ideias dos diversos membros da sociedade.128
Embora a liberdade de expressão seja inegavelmente um dos elementos fundamen-
tais da democracia, obviamente não é o único. Além dela, a igualdade, solidariedade e o
direito ao livre desenvolvimento da personalidade de cada indivíduo, dentre outros, são
reconhecidos pela Constituição Federal de 1988129 e indispensáveis para a existência
de um verdadeiro ambiente democrático.
Além disso, a ideia de democracia está ligada à construção de um ambiente de de-
bate livre e racional, em que os diferentes membros da sociedade possam argumentar e
contrapor suas visões sobre temas variados. A liberdade de expressão, nesse contexto,
é um meio para um f‌im (e não um f‌im em si mesma).
Nesse sentido, é necessário pensar se a liberdade de expressão ocupa, de fato, uma
posição privilegiada no ordenamento brasileiro. Esse questionamento não pretende
desmerecer ou negar a sua importância, apenas ref‌letir criticamente se há uma pre-
ponderância da mesma. O próprio Ministro Luís Roberto Barroso, defensor da posição
124. FRIED, Charles. Privacy, cit., 483.
125. Sobre o tema, Daniel SARMENTO defende o “caráter instrumental da liberdade de expressão para a garantia
de todos os demais direitos. (...) Por isso, a Comissão Interamericana de Direito Humanos [sic] af‌irmou que a
carência de liberdade de expressão é uma causa que contribui ao desrespeito de todos os outros direitos”. (Liber-
dades Comunicativas e “Direito ao Esquecimento” na ordem constitucional brasileira. Disponível em: .
migalhas.com.br/arquivos/2015/2/art20150213-09.pdf >. Acesso em 02.05.2017. p. 25)
126. “A liberdade de expressão permite assegurar a continuidade do debate intelectual e do confronto de opiniões, num
compromisso crítico permanente. (...) A liberdade de expressão em sentido amplo é um direito multifuncional
(...)”. (CANOTILHO, J. J. Gomes; MACHADO, Jónatas E.M. Constituição e código civil brasileiro: âmbito de
proteção de biograf‌ias não autorizadas. In JÚNIOR, Antônio Pereira Gaio; SANTOS, Márcio Gil Tostes. Consti-
tuição Brasileira de 1988. Ref‌lexões em comemoração ao seu 25º aniversário. Curitiba: Juruá, 2014, p. 132.).
127. Sobre o tema, Stefano RODOTÀ sustenta que: “Na democracia, a verdade é f‌ilha da transparência; como já foi
recordado, Louis Brandeis escreveu que a luz do sol é o melhor desinfetante”. (RODOTÀ, Stefano. O direito à
verdade. Trad. Maria Celina Bodin de Moraes e Fernanda Nunes Barbosa. Civilistica.com. Rio de Janeiro, a. 2, n.
3, jul.-set./2013. Disponível em: . Acesso em 02.05.2017. p. 17). Nas
palavras de Daniel SARMENTO: “A liberdade de expressão é peça essencial em qualquer regime constitucional
que se pretenda democrático. Ela permite que a vontade coletiva seja formada através do confronto livre de ideias,
em que todos os grupos e cidadãos devem poder participar”. (SARMENTO, Daniel. A liberdade de expressão e o
problema do hate speech. Revista de Direito do Estado, Rio de Janeiro, v. 01, n. 04, p. 53-105, out./dez. 2006. p.
81.)
128. SARMENTO, Daniel. A liberdade de expressão e o problema do hate speech, cit., p. 34.
129. Sobre o tema, importante notar, inclusive, a ausência de hierarquia constitucional entre os direitos fundamentais.
Nas palavras de Celso Ribeiro BASTOS: “(...) importante ressaltar que no Brasil, assim como noutros países, a
limitação do direito de se expressar e do direito de comunicação jornalística guarda perfeita consonância com
a clássica def‌inição de que os direitos fundamentais não são absolutos” (Os limites à liberdade de expressão na
Constituição da República. Revista Forense, Vol. 349 Doutrina, p. 47).
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CAPítulo I • dIREIto Ao ESquECImENto
preferencial da liberdade de expressão, reconhece que, em não havendo hierarquia entre
os direitos fundamentais, não se pode conceber uma regra abstrata e permanente de
preferência de um sobre o outro, exigindo-se, assim, a análise do caso concreto para a
efetiva solução do conf‌lito entre dois ou mais direitos fundamentais.130
Os que defendem a primazia da liberdade de expressão baseiam-se, em larga escala,
na noção de “preferred rights” importada do direito norte-americano.131 Malgrado exista
nos EUA uma tradição consolidada de privilégio ao freedom of speech,132 transpor essa
noção para a ordem jurídica brasileira parece impróprio. Isso porque, além de se tratar
de sistemas jurídicos distintos, vivemos em outro ambiente social e cultural, cujas pe-
culiaridades inf‌luenciam diretamente nossa experiência jurídica.
Se, na realidade pátria, o legislador constituinte se absteve de f‌ixar uma regra de
preferência de um direito fundamental sobre outro, não parece razoável, ou mesmo
legítimo, que a legislação ordinária, o judiciário ou a doutrina o faça: em caso de
conf‌lito entre tais direitos, competirá ao Poder Judiciário avaliar e decidir qual deles
deve prevalecer no caso concreto.133 O trauma do passado autoritário é justif‌icável,
mas não legitima, por sua vez, a adoção de outras posturas arbitrárias, como atribuir
maior relevância às liberdades comunicativas quando a própria Constituição não se
dispôs a fazê-lo.
Tendo em vista todo o exposto, é imperioso promover uma releitura do direito à
privacidade à luz da noção mais atual da própria privacidade, o enxergando não mais
(ou apenas) como um direito a ser deixado só ou de excluir o outro, e sim como um
direito ao livre e pleno desenvolvimento dos indivíduos, que só pode ocorrer a partir
da autodeterminação informativa. Desvincula-se, por assim dizer, a concepção de
privacidade da ideia de sigilo ou ausência de informação, sendo essencial pensar na
privacidade também e justamente em hipóteses em que as informações pessoais vêm à
tona, voluntariamente ou não.
Nesse contexto, a função do direito à privacidade não deve se restringir à prevenção
de invasões da esfera privada individual, e sim voltar-se à proteção do indivíduo em
todas as situações em que ela possa ser ou seja efetivamente violada, inclusive em casos
envolvendo informações que não foram obtidas a partir da invasão de privacidade, mas
se tornam ou se revelam invasivas em determinado contexto.134
Perceber a privacidade de forma diversa de sua concepção original não signif‌ica, con-
tudo, que a vida privada passou a exigir menos proteção; ao contrário, faz-se necessário,
cada vez mais, repensar os instrumentos aptos a realizar a tutela adequada do direito à
privacidade. É nesse contexto que se insere a discussão sobre o direito ao esquecimento.
130. BARROSO, Luís Roberto. Liberdade de expressão versus direitos da personalidade: colisão de direitos fundamentais
e critérios de ponderação. In. Temas de direito constitucional. T.3. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 86.
131. Sobre o tema, v. SARMENTO, Daniel. Liberdades Comunicativas e “Direito ao Esquecimento” na ordem constitucional
brasileira, cit., p. 26.
132. Sobre a posição preferencial da liberdade de expressão no direito norte-americano, v. caso Thomas v. Collins,
disponível em https://supreme.justia.com/cases/federal/us/323/516/case.html. Acesso em 03.10.2017.
133. Nesse sentido, v. SCHREIBER, Anderson. Direito ao esquecimento: críticas e respostas, cit.
134. JONES, Meg Leta. Ctrl + Z, cit., p. 88.
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DIREITO AO ESQUECIMENTO E SEUS MECANISMOS DE TUTELA NA INTERNET • JÚLIA COSTA DE OLIVEIRA COELHO
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Nota-se que o direito ao esquecimento está intrinsicamente ligado à dimensão
substancial da privacidade, que diz respeito à utilização das informações pessoais obti-
das de cada indivíduo.135 Se todos possuem um direito à privacidade, entendido como
o direito à autodeterminação informativa, devem poder controlar qualitativamente a
projeção de seus dados pessoais perante os demais e exigir que essa representação seja
f‌idedigna e não contribua, de qualquer forma, para condutas discriminatórias contra o
indivíduo representado.136
Nas palavras de Irwin Altman, os mecanismos de privacidade servem para me aju-
dar a me def‌inir.137 Nesse sentido, o direito ao esquecimento se relaciona com o direito à
privacidade na medida em que promove a interação dos indivíduos com a representação
de si próprios, permitindo que se insurjam contra uma projeção pública que os def‌ina
a partir de uma informação verídica e obtida licitamente, porém desatualizada sob o
ponto de vista temporal ou fático.138
Isso não signif‌ica dizer que, para o exercício legítimo do direito ao esquecimento,
basta querer modif‌icar a representação exterior em razão de fatos considerados desabo-
nadores. Essa vontade é até válida e bastante usual, porém, é insuf‌iciente, por si só, para
o reconhecimento do direito ao esquecimento em concreto, e não deve ser confundida
com ele. Na realidade, o aspecto volitivo sequer é o fator principal a se considerar para
que o direito ao esquecimento seja aplicado na prática, sendo necessário, em verdade,
que a informação supostamente violadora da privacidade de um indivíduo afete a rea-
lização de sua personalidade.
Para essa verif‌icação, deve-se considerar tanto o impacto do fato sobre o livre
desenvolvimento da pessoa e de sua existência digna quanto os efeitos de sua eventual
remoção ou edição para a coletividade, em um exercício de ponderação dos direitos
fundamentais à privacidade e liberdade de expressão, direito à informação e/ou liber-
dade de imprensa, conforme o caso. Isso porque, como já mencionado, o ordenamento
jurídico brasileiro não reconhece direitos absolutos, exigindo, pois, que casos de colisão
sejam resolvidos a partir do sopesamento dos interesses em conf‌lito.
1.4.2.1.2. Base legal
Embora tudo leve a crer que, na prática, a ideia de privacidade passa por um pro-
fundo processo de erosão, o ordenamento jurídico brasileiro adota postura bastante
protetiva desse direito, ao menos do ponto de vista teórico. O tema é reconhecido cons-
titucionalmente, sendo consideradas invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e
a imagem das pessoas, bem como assegurado o direito a indenização pelo dano material
ou moral decorrente de sua violação.139
135. SCHREIBER, Anderson. Direitos da personalidade, cit., p. 141.
136. SCHREIBER, Anderson. Direitos da personalidade, cit., p. 141.
137. ALTMAN, Irwin. The environment and social behavior: privacy, personal space, territory and crowding. Califórnia:
Brooks/Cole Pub. Co., 1975, p. 50. (Tradução livre)
138. SCHREIBER, Anderson. Direito ao esquecimento: críticas e respostas, cit.
139. Art. 5º, inciso X da CF88.
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CAPítulo I • dIREIto Ao ESquECImENto
Além de considera-lo um direito fundamental, a Constituição Federal de 1988
institui o habeas data como um dos instrumentos para proteção do direito à privacidade,
o qual, nos termos do inciso LXXII do art. 5º, será concedido para assegurar o conhe-
cimento de informações relativas à pessoa do impetrante, constantes de registros ou
bancos de dados de entidades governamentais ou de caráter público, e para retif‌icação
de dados, quando não se pref‌ira fazê-lo por processo sigiloso, judicial ou administrativo.
Também é possível encontrar menção à privacidade no Código Civil, o qual de-
termina, em seu artigo 21, que o direito à privacidade, elencado como um dos direitos
da personalidade, pode ser tutelado tanto preventivamente como a posteriori. A tutela
preventiva desse direito, porém, é tema controverso, debatida, inclusive, pelo Supremo
Tribunal Federal, que, no caso da exigibilidade de autorização de pessoas retratadas em
obras biográf‌icas, conferiu interpretação conforme dos artigos 20 e 21 do CC, dispen-
sando, assim, o requisito de autorização prévia do biografado.140
Não obstante o reconheça como um direito fundamental personalíssimo e invio-
lável, o ordenamento jurídico brasileiro foi econômico quanto aos remédios aplicáveis
em caso de violação ao direito à privacidade. Era de se esperar que as formas de proteção
de um direito tão importante fossem melhor desenvolvidas, especialmente pelo Código
Civil de 2002, que, ao contrário, limitou-se a mencionar, de forma genérica, a tomada
de providências necessárias para impedir ou fazer cessar ato contrário à norma.
Considerando a complexidade dos conf‌litos envolvendo o direito à privacidade,
não basta facultar a tutela preventiva ou assegurar o recurso à tutela reparatória, ainda
mais considerando que, muitas vezes, a via indenizatória se revela insuf‌iciente para
compensar todos os danos oriundos da violação em questão. Não se pretende, por ób-
vio, defender o esgotamento dos mecanismos de tutela de tal direito pela via legislativa,
porém, há que se reconhecer a importância de uma base legal sólida para orientar a es-
colha e aplicação, pelo intérprete, dos remédios aptos a prevenir e solucionar conf‌litos
envolvendo a privacidade.
Além disso, deve-se ref‌letir sobre a qualif‌icação da privacidade como um direito
inviolável, sobretudo nos dias atuais. Isso não signif‌ica questionar o direito em si ou
sua importância, apenas reconhecer que, em algumas circunstâncias, a privacidade,
assim como os demais direitos fundamentais, pode ser pontualmente relativizada em
prol de outros valores igualmente reconhecidos pelo ordenamento jurídico brasileiro
que, naquela situação, merecem prevalecer.141
É essencial admitir, portanto, que o direito à privacidade não é, em última instância,
inviolável, sendo mais oportuno que o ordenamento jurídico brasileiro se dedique a
fornecer instrumentos que orientem a ponderação entre direitos fundamentais. Nova-
mente, não se pretende af‌irmar que a legislação deve tratar do tema de forma exaustiva,
mas fornecer ao intérprete o aparato fundamental para solucionar adequadamente os
casos envolvendo a colisão de interesses e valores merecedores de tutela.
140. ADI. 4.815, Rel. Min. Carmen Lúcia, j. 10.06.2015.
141. Sobre a crítica à inviolabilidade do direito à privacidade, v. SCHREIBER, Anderson. Direitos da personalidade, cit.,
pp. 144-145.
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34
1.4.2.2. Dignidade da pessoa humana
Além do direito à privacidade, costuma-se considerar a dignidade da pessoa hu-
mana como um dos fundamentos do direito ao esquecimento. Antes de ref‌letir sobre
a correlação entre ambos, vale notar que a dignidade humana é, acima de tudo, um
dos fundamentos da República Federativa do Brasil enquanto Estado Democrático
de Direito, tendo sido consagrada como um princípio fundamental pela Constituição
Trata-se, assim, de um dispositivo constitucional de suma importância, cujo valor
deve permear os setores da ordem jurídica brasileira como um todo.143 Apesar da indis-
cutível relevância e aplicabilidade universal da dignidade humana, o conteúdo desse
princípio é de difícil def‌inição, sendo a dignidade, de acordo com Maria Celina Bodin
de Moraes, uma daquelas palavras que parece ter mais valor do que sentido.144
Tal dif‌iculdade, porém, não pode ser considerada justif‌icativa para o intérprete se
escusar da árdua tarefa de delimitar os contornos do princípio da dignidade humana;
pelo contrário, sua multiplicidade de conotações faz com que uma melhor def‌inição
hermenêutica seja ainda mais necessária. Sem isso, o alto grau de abstração da dignidade
humana ameaçaria, inclusive, a sua aplicabilidade prática.145
Em busca de maior concretude – e partindo da concepção kantiana de dignida-
de – Maria Celina Bodin de Moraes identif‌ica quatro corolários da dignidade humana,
quais sejam, os direitos à igualdade (atualmente entendida como um verdadeiro direito
à diferença),146 à integridade psicofísica, à liberdade individual e à solidariedade.147 Isso
signif‌ica que a dignidade humana se funda na ideia de que os indivíduos não devem
ser tratados de forma discriminatória, fazendo jus à plena proteção e promoção de seu
bem-estar tanto físico quanto psíquico, à capacidade de fazer suas próprias escolhas
individuais e, ainda, à igual dignidade social.148
Uma vez compreendida a noção de dignidade humana, ainda que em linhas ge-
rais, e partindo dos substratos acima, é possível traçar paralelos entre ela e o direito ao
esquecimento, bem como perceber a importância do último para uma existência verda-
deiramente digna. Af‌inal, como questiona Rodotà, que dignidade resta a um prisioneiro
do seu próprio passado?149
143. BODIN DE MORAES, Maria Celina. Danos à pessoa humana: uma leitura civil-constitucional dos danos morais.
Rio de Janeiro: Processo, 2017, p. 84.
144. BODIN DE MORAES, Maria Celina. Liberdade individual, acrasia e proteção da saúde. In LOPEZ, Teresa Ancona
(coord.). Estudos e Pareceres sobre Livre-Arbítrio, Responsabilidade e Produto de Risco Inerente: o paradigma do
tabaco – aspectos civis e processuais. Rio de Janeiro: Renovar, 2009.
145. BODIN DE MORAES, Maria Celina. Danos à pessoa humana, cit., p. 84.
146. Posição sustentada por Maria Celina BODIN DE MORAES. Danos à Pessoa Humana, cit., p. 86.
147. BODIN DE MORAES, Maria Celina. Danos à pessoa humana, cit., p. 85.
148. BODIN DE MORAES, Maria Celina. Danos à pessoa humana, cit., p. 114.
149. Tradução livre do questionamento proposto por Stefano RODOTÀ in. Privacy, freedom and dignity, cit., p. 7. (No
original: “what dignity may be left to an individual who has become a prisoner of his past […]?”)
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CAPítulo I • dIREIto Ao ESquECImENto
a. Direito ao esquecimento e igualdade material
Como se sabe, a diversidade é um dos (poucos) traços comuns a todos os seres
humanos. Em um ambiente multicultural, permeado pela multiplicidade de ideologias
e crenças, em que se reúnem as mais diferentes realidades socioeconômicas, políticas e
familiares, parece utópico supor que os indivíduos são verdadeiramente iguais entre si.
Na ausência de uma identidade humana universal, comum a todos, revela-se insuf‌iciente
garantir um tratamento isonômico do ponto de vista formal.
Atenta à importância da diversidade para uma ordem de fato democrática, a Cons-
tituição Federal de 1988 elegeu a igualdade como um dos valores supremos de uma
sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, estabelecendo como um dos objetivos
fundamentais da República a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem,
raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.150
Ao falar em igualdade, não se pode pretender mais – ou apenas – reconhecer
direitos iguais a todos: os indivíduos que integram uma sociedade plural reivindicam
um legítimo direito à diferença,151 diferença essa que não se destina a aniquilar, mas a
promover os demais direitos.152
Para def‌inir o tratamento adequado a ser dispensado a cada um, é interessante re-
correr à lição de Boaventura de Sousa Santos, que sugere que as pessoas sejam tratadas
como iguais quando a diferença as inferiorizar e como diferentes quando a igualdade as
descaracterizar, sendo necessário que a concepção de igualdade inclua o reconhecimento
das diferenças e a de diferença não produza, alimente ou reproduza as desigualdades.153
Sob essa perspectiva, a igualdade se revela como um direito essencial ao livre de-
senvolvimento e construção da identidade individual de cada um, o qual será violado,
por sua vez, quando um ou mais indivíduos forem tratados de forma discriminatória
por questões particulares que, muitas vezes, são justamente os traços que os distinguem.
Além de serem diferente dos demais, as pessoas também possuem o direito de
serem diferentes de si próprias.154 Assim como a diversidade, a imperfeição é inerente
a todo ser humano que é, ao mesmo tempo, dotado da capacidade de se transformar.
A identidade humana não é universalmente idêntica, como já dito, tampouco estática.
A verdade é que a identidade individual está em constante construção, sendo
inf‌luenciada pelas diferentes experiências, acontecimentos, estímulos e desaf‌ios a que
cada um se submete ao longo da vida. Conforme já mencionado, tais transformações
150. Art. 3º, inciso IV.
151. Sobre a igualdade material orientada pelo reconhecimento de diferentes identidades, v. BARBOSA, Heloísa He-
lena. Proteção dos vulneráveis na constituição de 1988: Uma questão de igualdade. In. NEVES, Thiago Ferreira
Cardoso (Coord.). Direito& Justiça Social: Por uma sociedade mais justa, livre e solidária. São Paulo: Atlas, 2013,
p. 104.
152. PIOVESAN, Flávia. Ações af‌irmativas no Brasil: desaf‌ios e perspectivas. In. MATOS, Ana Carla Harmatiuk (Org.).
A construção dos novos direitos. Porto Alegre: Núria Fabris, 2008, p. 138.
153. SANTOS, Boaventura de Sousa. Reconhecer para libertar: os caminhos do cosmopolitanismo multicultural.
Introdução: para ampliar o cânone do reconhecimento, da diferença e da igualdade. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2003, p. 56.
154. ANDRADE, Norberto Nuno Gomes de. Oblivion, cit., p. 126.
DIREITO AO ESQUECIMENTO.indb 35DIREITO AO ESQUECIMENTO.indb 35 22/04/2020 16:55:5622/04/2020 16:55:56
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são socialmente aceitas, sendo os esforços rumo à evolução pessoal, via de regra, posi-
tivamente valorizados e até mesmo estimulados.
Seria paradoxal, no entanto, reconhecer a capacidade de os indivíduos progredirem e
negar a eles a respectiva atualização de sua identidade perante os demais. Isso signif‌icaria,
em última instância, a impossibilidade prática da reabilitação, af‌inal, independentemente
do que faça para progredir, o sujeito continuará sendo reconhecido e tratado da mesma
maneira. O tratamento igual, nesse caso, seria uma espécie de punição, e não uma forma
de exercício do direito à igualdade.
Considerando o exposto, o direito ao esquecimento revela-se útil à proteção e pro-
moção do direito à igualdade na medida em que permite que os indivíduos reconstruam
externamente suas próprias identidades ao longo do tempo. É importante insistir que
isso não signif‌ica que o direito ao esquecimento permite reescrever a história ou apagar
fatos pretéritos, apenas conta-la de forma adequada, atualizada e f‌iel à realidade atual
dos fatos. Também não se trata de direito absoluto e oponível em qualquer circunstância,
sendo essencial, para sua aplicação prática, o sopesamento dos interesses envolvidos
em concreto.
Entendido como um verdadeiro direito à atualização, o direito ao esquecimento
ajuda na prevenção do tratamento discriminatório na medida em que permite o reco-
nhecimento da versão mais atual de cada identidade individual. Exemplo disso é o caso
das pessoas trans,155 cuja escolha de remodelar a própria identidade de gênero f‌icaria
ameaçada caso fossem continuamente apresentadas à sociedade como alguém que
mudou de gênero.156
Nesse caso, o que se pretende é permitir efetivamente que as pessoas trans sigam
suas vidas de acordo com a identidade de gênero que adotaram para si, o que parece im-
praticável se continuarem a ser constantemente lembradas e confrontadas com eventos
que remontam à sua identidade anterior. Sem isso, além do comprometimento do efetivo
desenvolvimento e da concretização da identidade de gênero, restaria ameaçada sua
integridade psicofísica, bem como o seu tratamento isonômico, haja vista o ambiente
(infelizmente) preconceituoso e intolerante em que ainda vivemos.
b. Direito ao esquecimento e integridade psicofísica
Conforme mencionado no exemplo das pessoas trans do item a acima, a exposição de
certas informações pessoais pode, dentre outros, causar impactos à integridade psicofísica
individual. Antes de elaborar melhor essa af‌irmativa, contudo, é importante discorrer
brevemente sobre a noção de integridade psicofísica e o que ela representa atualmente.
155. De acordo com a Opinião Consultiva OC-24/17, emitida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos em
novembro de 2017, transgênero ou pessoa trans é aquela cuja identidade ou gênero difere do que está tipicamente
associado ao sexo designado ao nascer. Segundo a Opinião Consultiva, as pessoas trans constroem sua identidade
independentemente de tratamento médico ou intervenções cirúrgicas, sendo o termo trans uma expressão guar-
da-chuva, que compreende as diversas variáveis de identidade de gênero e que tem como denominador comum
a desconformidade entre o sexo designado à pessoa no momento de seu nascimento e a identidade de gênero
tradicionalmente atribuída ao primeiro.
156. SCHREIBER, Anderson. Nossa ordem jurídica não admite proprietários de passado, cit.
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CAPítulo I • dIREIto Ao ESquECImENto
Nas palavras do Ministro Luís Roberto Barroso, o direito à integridade psicofísica
(CF/1988, art. 5º, caput e III) protege os indivíduos contra interferências indevidas e
lesões aos seus corpos e mentes, relacionando-se, ainda, ao direito à saúde e à seguran-
ça.157 Trata-se, em essência, da proteção e promoção do bem-estar físico, mental e social
de cada um, indispensáveis para uma existência efetivamente digna.
Embora a preocupação subjacente ao direito à integridade psicofísica tenha sur-
gido no sentido de coibir interferências externas no corpo humano, evitando, assim,
a repetição de barbaridades cometidas em períodos autoritários,158 é possível notar a
sua evolução, que assume conteúdo mais geral e função não somente repressiva, mas
também promocional. Em sua concepção atual, o direito à integridade psicofísica não
se resume à proibição da tortura ou de punições bárbaras, atuando de forma ampla
como instrumento de garantia de direitos da personalidade, como os direitos à imagem,
privacidade e identidade pessoal.159
Sobre esse aspecto, é importante observar que o pleno desenvolvimento da pessoa
e, por via de consequência, sua existência digna, requer tanto o autorreconhecimento
como o reconhecimento social em consonância com o primeiro.160 Um descompasso
entre ambos pode gerar verdadeiras angústias, ora impedindo que os indivíduos se
desenvolvam livremente, ora marginalizando aqueles que o fazem, mas não enxergam,
na comunidade em que vivem, o ref‌lexo de quem são verdadeiramente.
Nessa perspectiva, o direito ao esquecimento é capaz de instrumentalizar a pre-
servação da integridade psicofísica na medida em que contribui para a (re)construção
da identidade individual, evitando que informações desatualizadas tenham ref‌lexos
negativos ou indesejados na percepção externa do indivíduo e, consequentemente,
impactem o seu bem-estar psicofísico e social.
O tratamento discriminatório, além de violador do direito à igualdade, fere a inte-
gridade psicofísica da vítima. No caso dos trans acima exemplif‌icado, a discriminação,
bem como a violência verbal e física, reprováveis por tantos motivos, abalam a autoes-
tima e prejudicam o livre desenvolvimento de sua identidade de gênero, podendo até,
em última instância e em certos casos, contribuir para a tomada de decisões drásticas.161
157. Vide voto do Ministro Luís Roberto Barroso no H.C. 124.306/RJ, 1ª T., Rel. Min. Marco Aurélio, j. 29.11.2016.
158. SCHREIBER, Anderson. Direitos da personalidade, cit., p. 32.
159. BODIN DE MORAES, Maria Celina. Danos à pessoa humana, cit., p. 94.
160. FACHIN, Luis Edson. O corpo do registro no registro do corpo; Mudança de nome e sexo sem cirurgia de rede-
signação. Revista Brasileira de Direito Civil. vol. 1 – jul/set 2014, p. 55.
161. Em estudo sobre suicídios, João Luís da SILVA observa que “[...] o documento mais recente da OMS sobre o
autocídio, af‌irma que os idosos e os adolescentes são os grupos mais propensos a se suicidar. De acordo com
Bertolote, neste último grupo, as taxas de suicídio têm crescido numa velocidade maior do que o observado na
população geral. Essas taxas também são elevadas em grupos que sofrem discriminação histórica e ostensiva
como refugiados e migrantes, indígenas, LGBTI (lésbicas, gays, bissexuais, transgêneros e intersexuais) e pessoas
privadas de liberdade. Nesses casos, cabe salientar que a vulnerabilidade que os torna mais inclinados ao suicídio
não reside na sua condição em si. Por exemplo, não é o fato de ser LGBTI que aumenta a vulnerabilidade desse
grupo, mas a forma como a sociedade lida e acolhe esses sujeitos [...]”. (Suicídios invisibilizados: Investigação dos
óbitos de adolescentes com intencionalidade indeterminada. 2017. Tese (Doutorado em Epidemologia). Faculdade
de Saúde Pública, Universidade de São Paulo, São Paulo, p. 23.)
DIREITO AO ESQUECIMENTO.indb 37DIREITO AO ESQUECIMENTO.indb 37 22/04/2020 16:55:5622/04/2020 16:55:56
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Não se pretende defender aqui que o direito ao esquecimento é a única solução
para esse tipo de questão. Por óbvio, o Direito, as autoridades competentes e a sociedade
como um todo devem tomar as medidas necessárias para prevenir e punir, conforme
cabível, condutas violadoras da igualdade e integridade psicofísica. O que este item busca
concluir é que o direito ao esquecimento, se bem aplicado, pode servir como ferramenta
útil para criação de um ambiente mais aberto, tolerante e receptivo à evolução humana.
Isso compreende, necessariamente, o poder de transformação e a capacidade de aceitação
da pluralidade de identidades, essenciais para assegurar, na prática, o bem-estar físico,
psíquico e social dos indivíduos.
c. Direito ao esquecimento e liberdade individual
A liberdade é, inquestionavelmente, um dos principais valores previstos e promo-
vidos pela Constituição Federal de 1988. Uma rápida busca no texto da Carta Magna
pelos termos liberdade e livre, por exemplo, releva um total de 48 resultados. Além de
expressiva do ponto de vista quantitativo, a proteção constitucional dispensada ao direito
à liberdade é qualitativamente substancial.
Com base nos dispositivos constitucionais, a liberdade é um dos direitos funda-
mentais e invioláveis,162 caracterizando-se como livres a manifestação do pensamento,163
a consciência e a crença,164 a expressão da atividade intelectual, artística, científ‌ica e de
comunicação,165 o exercício de qualquer trabalho,166 a locomoção no território nacional167
e a associação,168 dentre outros.
Apesar de ser amplamente tutelada pelo ordenamento jurídico brasileiro, a liberdade
não é um direito absoluto e ilimitado. Na realidade, assim como todos os demais direitos
subjetivos, ele se revelará efetivamente merecedor de tutela quando, além de consoante
à vontade do titular, estiver em conformidade com o interesse social.169
Essa relativização, por assim dizer, da vontade individual pode ser compreendida
a partir da evolução do conceito de autonomia privada, que perde o viés essencialmen-
te individualista e patrimonialista característico do liberalismo jurídico para assumir
conteúdo existencial.170
Sob essa perspectiva, parece impróprio af‌irmar que a liberdade é completamente
inviolável, embora a sua inviolabilidade esteja prevista na Constituição. Tal qual obser-
vado no tocante à privacidade (vide item 1.4.2.1.2 acima), certas situações exigem ou
justif‌icam o comprometimento, em certa medida, desse direito: a título exemplif‌icati-
vo, é possível restringir a liberdade de expressão para evitar a disseminação de ideias
162. Art. 5º, caput.
163. Art. 5º, inciso IV.
164. Art. 5º, inciso VI.
165. Art. 5º, inciso IX.
166. Art. 5º, inciso XIII.
167. Art. 5º, inciso XV.
168. Art. 8º; Art. 37, inciso VI.
169. PERLINGIERI, Pietro. Perf‌is de direito civil, cit., pp. 121-122.
170. BODIN DE MORAES, Maria Celina. Liberdade individual, acrasia e proteção da saúde, cit.
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CAPítulo I • dIREIto Ao ESquECImENto
preconceituosas.171 Pode-se concluir, portanto, que o direito à liberdade, assim como
os demais direitos fundamentais, pode ser pontualmente relativizado se assim neces-
sário para concreta e efetiva proteção de valores também acolhidos pelo ordenamento
jurídico brasileiro.
É preciso, porém, muita cautela na aplicação prática desse exercício ponderativo,
especialmente considerando-se que, muitas vezes, certas ameaças são criadas ou levadas
ao extremo para justif‌icar o afastamento de direitos fundamentais em favor de interes-
ses que não se orientam, de fato, à promoção da dignidade humana. Um exemplo atual
disso é a crescente e ostensiva vigilância a que os indivíduos se submetem em benefício
de um suposto aumento da sua própria segurança.
Aterrorizados por uma sensação de perigo onipresente, os indivíduos aceitam as
mais variadas formas de interferência em sua esfera de liberdade sob a promessa de que,
com isso, estarão mais protegidos. Os avanços tecnológicos tornam tais mecanismos de
controle cada vez mais ref‌inados, abrangentes e, ao mesmo tempo, invasivos e invisíveis:
seja através da digitalização de imagem, reconhecimento facial, técnicas de localização
e monitoramento de movimentação, obtenção e processamento de dados, criação de
perf‌is pessoais, familiares, territoriais ou de grupo.
Conforme observado por Rodotà, os indivíduos estão sempre conectados e podem
ser conf‌igurados de formas distintas para que, de tempos em tempos, possam transmitir
e receber sinais que permitam o rastreamento e def‌inição dos seus movimentos, hábi-
tos e contatos, o que certamente enseja a modif‌icação do signif‌icado e do conteúdo da
autonomia individual e, consequentemente, afeta a dignidade de cada um.172
Contudo, valores fundamentais como a dignidade, liberdade e privacidade não
devem ser redef‌inidos pela tecnologia, ao contrário, é a última que deve ser conformada
e utilizada de acordo e dentro dos limites permitidos pelos primeiros: o simples fato de
uma funcionalidade ser tecnicamente viável não signif‌ica que ela é admissível.173
Além disso, embora a valorização da coletividade seja louvável e o conceito de
autonomia privada não possa, de fato, corresponder ao arbítrio total e irrestrito do indi-
víduo, não se pode admitir o esvaziamento das liberdades individuais por completo em
nome de um suposto “bem comum”. Não há que se preocupar apenas com a segurança
dos cidadãos frente à ameaça do terrorismo, da violência ou do autoritarismo tal qual
costumeiramente concebidos, mas também em assegurar a proteção de todos contra o
terror, a tirania e a arbitrariedade que a vigilância ilimitada representa.
Nesse contexto, é importante buscar mecanismos de proteção e promoção da
liberdade individual, particularmente quando necessária à realização de escolhas de
caráter existencial, indispensáveis para a vida humana com dignidade. A capacidade de
decisão sobre aspectos essencialmente particulares da pessoa, que permite justamente a
171. Vide H.C. 82.424/RS, Tribunal Pleno, Rel. Min. Moreira Alves, j. 17.09.2003.
172. RODOTÀ, Stefano. Privacy, freedom and dignity, cit., p. 5.
173. RODOTÀ, Stefano. Privacy, freedom and dignity, cit., p. 8.
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livre construção da identidade pessoal, deve ser legalmente garantida como se fosse um
espaço vazio, a ser concreta e individualmente preenchido por cada um.174
O direito ao esquecimento pode ser entendido como um desses mecanismos,
através do qual permite-se que o indivíduo exerça a sua liberdade individual rumo ao
desenvolvimento de sua própria personalidade. Ele se revela ainda mais oportuno ao
se considerar a realidade acima descrita, em que a tecnologia viabiliza a obtenção e
veiculação das mais diversas informações pessoais, além de amplif‌icar o seu alcance.
No cenário atual, a gestão das informações pessoais não é somente uma questão de
privacidade, mas também de liberdade, sendo essencial que as pessoas tenham meios
ef‌icazes de exercer ativamente seus direitos, sem que se tornem reféns daqueles que
possuem informações sobre si.175 O direito ao esquecimento é, sob essa perspectiva, um
instrumento de liberdade individual, por meio do qual não se permite apenas a livre
construção da identidade de cada um, mas que também confere um efetivo poder de
gerenciamento autônomo das informações pessoais.
Sob o risco de soar repetitivo, vale insistir que não se trata de dar um “cheque em
branco” para que as pessoas controlem todas as informações sobre si, porém, é igual-
mente inaceitável que o oposto seja verdadeiro, ou seja, que não se reconheça qualquer
possibilidade ou grau de ingerência do indivíduo sobre o que lhe diz respeito. A liberdade
individual e o direito ao esquecimento não devem ser onipotentes e onipresentes, mas
também não podem ser impotentes, devendo coexistir com os demais direitos, valores
e interesses protegidos pelo ordenamento jurídico e prevalecer quando se revelarem,
em concreto, merecedores de tutela.
d. Direito ao esquecimento e solidariedade
objetivos fundamentais da República consiste na construção de uma sociedade livre,
justa e solidária. A proteção dispensada pela Carta Magna à solidariedade se explica por
ser ela, nas palavras de Perlingieri, inseparável do conceito de pessoa176 e, ainda pela sua
importância para manutenção de um ambiente democrático.
Conforme observado por Rodotà, pode-se notar uma evolução da qualif‌icação
histórica do princípio da solidariedade, que passa a se identif‌icar com uma solidariedade
democrática, e não mais social. Isso possibilita, segundo ele, a conclusão de que um sis-
tema político somente pode continuar a ser def‌inido como democrático177 se verif‌icados
os sinais efetivos da solidariedade.
De fato, uma democracia só existe e se sustenta em um ambiente de respeito e
cooperação mútua,178 em que haja uma verdadeira integração da coletividade, e não o
174. BODIN DE MORAES, Maria Celina. Liberdade individual, acrasia e proteção da saúde, cit.
175. RODOTÀ, Stefano. Intervista su Privacy e Libertà, cit., p. 116.
176. PERLINGIERI, Pietro. O direito civil na legalidade constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 461.
177. RODOTÀ, Stefano. Solidarietà: un’utopia necessaria. Bari: Laterza, 2014, p. 9.
178. Segundo Maria Celina BODIN DE MORAES: “[...] a lei maior determina – ou melhor, exige – que nos ajudemos,
mutuamente, a conservar nossa humanidade, porque a construção de uma sociedade livre, justa e solidária cabe
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CAPítulo I • dIREIto Ao ESquECImENto
primado da individualidade. O princípio da solidariedade atua, assim, como um comando
constitucional de colaboração recíproca rumo ao atingimento da igual dignidade social,
entendida por Pietro Perlingieri como o instrumento que confere a cada um o direito
de ‘respeito’ inerente à qualidade de homem, assim como a pretensão de ser colocado
em condições idôneas a exercer as próprias aptidões pessoais.179
Isso não signif‌ica, vale dizer, a imposição de um comportamento caridoso ou bene-
f‌icente, e sim de um direito-dever que simultaneamente garante e exige o respeito a cada
um.180 Nesse contexto, o que se pretende com o direito ao esquecimento, não apenas
sob o aspecto individual, mas também coletivamente, se revela condizente com a con-
cretização da sociedade solidária que a Constituição Federal de 1988 busca promover.
Para alcançarem uma posição de igual dignidade social, é essencial que os indi-
víduos possam se desenvolver livre e amplamente e agir de forma autônoma, sem que
suas escolhas pessoais sejam condicionadas pela inf‌luência pública e/ou privada181 ou
posteriormente discriminadas por elas.
Por óbvio, a construção da identidade pessoal de cada um não depende apenas de
si, tampouco ocorre de forma isolada dos demais. Como seres sociais, os indivíduos
vivem em constante diálogo com aqueles que o cercam e seu desenvolvimento, portanto,
contará com a participação de terceiros. Justamente por isso, a cooperação e o respeito
mútuo se revelam indispensáveis a uma convivência saudável e uma existência digna.
Sob essa perspectiva, o reconhecimento do direito ao esquecimento, entendido
como uma importante ferramenta para a (re)construção da identidade individual, não
é apenas compatível com o princípio da solidariedade, mas também um indício da sua
materialização. Isso porque, quando cabível, aplicar tal direito se revela um exercício
de respeito ao próximo, uma forma de admitir a transformação do outro e permitir a
atualização de sua identidade perante os demais. Trata-se, essencialmente, de assumir
uma postura menos marginalizante, mais acolhedora ou, com o perdão do trocadilho,
efetivamente solidária.
1.4.2.3. Direito à imagem
Assim como o direito à privacidade, o direito à imagem é assegurado pelo texto
constitucional nos termos dos incisos V e X do artigo 5º,182 sendo a imagem considerada
inviolável, assim como a intimidade, vida privada e a honra das pessoas. No Código
Civil, esse direito é disciplinado pelo artigo 20, que autoriza a proibição da publicação,
exposição ou utilização da imagem de uma pessoa se lhe atingirem a honra, a boa fama
ou a respeitabilidade.
a todos e a cada um de nós.” (O princípio da solidariedade. In. MATOS, Ana Carla Harmatiuk (Org.). A construção
dos novos direitos. Porto Alegre: Nuria Fabris, 2008, p. 247).
179. PERLINGIERI, Pietro. Perf‌is de direito civil, cit., p. 37.
180. BODIN DE MORAES, Maria Celina. Danos à pessoa humana, cit., p. 116.
181. RODOTÀ, Stefano. Privacy, freedom and dignity, cit., p. 4.
182. O direito à imagem também está previsto no inciso XXVIII, alínea a, do art. 5º da Constituição Federal de 1988.
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Vale registrar, ainda que de forma breve, que o dispositivo da codif‌icação civil é
criticável sob diversos aspectos. Uma das possíveis críticas se deve ao fato de que, ao
vincular a proibição da publicação, exposição ou utilização da imagem alheia às hipóteses
em que sejam atingidas a honra, boa fama ou a respeitabilidade da pessoa, o artigo em
questão deixa de tratar o direito à imagem como direito autônomo que é.183
Além de autônomo,184 o direito à imagem deve ser entendido e tutelado de forma
ampla, o que não signif‌ica, ressalta-se, que seja tratado como absoluto ou irrestrito, apenas
que, da mesma forma, não se sujeite a restrições injustif‌icadas ou excessivas. Assim, não
se pode reconhecer o direito à imagem a determinadas pessoas e em determinados locais,
como se alguns não f‌izessem jus a tal proteção ou, ainda, a merecessem em menor grau.
Nesse sentido, critérios como o do local público ou da pessoa “pública”185 se revelam
insuf‌icientes para justif‌icar, por si só, o afastamento da proteção que o ordenamento
jurídico brasileiro dispensa à imagem, enxergada não apenas sob o perf‌il estático da
imagem-retrato, mas também na função de imagem-atributo.
Em síntese, conforme observado por Carlos Affonso Pereira de Souza, o termo
imagem “passa a signif‌icar não apenas a f‌isionomia e a sua reprodução, mas também
o conjunto de características comportamentais que identif‌icam o sujeito”.186 Nota-se,
portanto, uma identif‌icação da imagem do sujeito com a sua identidade individual, que
engloba, além de atributos físicos, os mais diversos traços que constituem e expressam
a sua personalidade.
Ao se conceber a imagem como um conjunto de características comportamentais
individuais que compõem a representação de cada um no meio social, percebe-se que,
além da divulgação não autorizada, o uso da imagem de forma incompatível com a
identidade socialmente construída pelo sujeito retratado também viola o seu direito à
imagem.187
É possível perceber, ainda, uma aproximação dos direitos à privacidade e à imagem:
trata-se, em ambos os casos, de reconhecer a cada um o poder de controlar ativamente,
ainda que não de forma plena ou incondicional, o desenvolvimento da sua identidade
pessoal e a projeção que ela assume perante os demais, o que é, por sua vez, imprescin-
dível para uma existência digna.
Assim entendido, o direito à imagem se relaciona profundamente com o direito ao
esquecimento, que atua justamente como um instrumento através do qual o indivíduo
é capaz de corrigir e reprojetar sua imagem atualizada perante a sociedade. Analisado
183. Sobre os aspectos criticáveis do artigo 20 do Código Civil, vide SCHREIBER, Anderson. Direitos da personalidade,
cit., pp. 109-111.
184. Importante mencionar que a autonomia do direito à imagem já foi reconhecida pelo Superior Tribunal de Justiça
no contexto do REsp. 46.420/SP, 4ª T., Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, j. 12.9.1994.
185. Vide posicionamento crítico de Anderson SCHREIBER sobre os parâmetros do lugar público e pessoa pública,
rejeitando, inclusive, a qualif‌icação de qualquer pessoa humana como pública (Direitos da personalidade, cit., pp.
112-114).
186. SOUZA, Carlos Affonso Pereira de. Contornos atuais do direito à imagem. Revista Trimestral de Direito Civil, v.
13, jan/mar 2003, p. 33-71, p. 42.
187. BODIN DE MORAES, Maria Celina; KONDER, Carlos Nelson. Dilemas de direito civil-constitucional. Rio de
Janeiro: Renovar, 2012, p. 207.
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CAPítulo I • dIREIto Ao ESquECImENto
sob essa ótica, o direito ao esquecimento confere efetividade ao direito à imagem em
sua dimensão mais dinâmica, permitindo justamente um processo contínuo de (re)
construção da imagem individual.
Não se trata, repita-se, de conferir um poder ilimitado ou arbitrário, tampouco
ignorar ou desmerecer a importância da coletividade e a relação entre as pessoas e a
sociedade; pelo contrário, admitir a aplicação do direito ao esquecimento signif‌ica re-
conhecer que essa conexão existe e que, por isso mesmo, a representação f‌idedigna da
imagem individual é tão importante.188
Além disso, ressalta-se, mais uma vez, que o exercício do direito ao esquecimento
não pode ser arbitrário e meramente voluntarista, inclusive porque, como os direitos
à imagem e à privacidade, ele vive em permanente tensão com os demais interesses e
valores protegidos pelo ordenamento jurídico. Em caso de colisão, será necessária uma
análise concreta dos direitos em conf‌lito a f‌im de avaliar a possibilidade de protege-los
totalmente ou, se assim não for possível, pondera-los com base em critérios objetivos
que permitam, em última instância, verif‌icar qual deles deve prevalecer naquele deter-
minado contexto.
1.4.3. A posição da jurisprudência
A discussão sobre o direito ao esquecimento também está presente no âmbito
judiciário. Como se verá adiante, há decisões – inclusive do STJ – que, a despeito da
ausência de dispositivo legal sobre a matéria, admitem a sua existência, divergindo,
porém, sobre a sua aplicação no caso concreto.
Ao se falar em precedentes brasileiros emblemáticos de direito ao esquecimento,
costuma-se citar, dentre outros, os casos conhecidos como Chacina da Candelária189 e
A.C.190 Ambos têm como pano de fundo a veiculação de programa televisivo, tendo sido
o primeiro iniciado por JPJ, que, mesmo absolvido das acusações de envolvimento na
Chacina da Candelária, foi nominalmente mencionado em programa sobre o ocorrido.
Já no segundo, a família de A.C., vítima de crime notório dos anos 50, ingressou
contra a mesma emissora de televisão envolvida no caso acima por esta ter exibido um
programa que retratava o evento criminoso, reabrindo, nas palavras dos autores, antigas
feridas.
No primeiro caso, o STJ decidiu em favor de JPJ sob o argumento de que a história
seria bem contada sem a exposição da imagem e o nome do autor, reconhecendo a ele,
portanto, o direito ao esquecimento. Para o Ministro Luis Felipe Salomão, relator do
caso, nem a liberdade de imprensa seria tolhida nem a honra do autor seria maculada
se o nome e a f‌isionomia do autor tivessem sido ocultados.
Muito embora o Ministro Salomão, também relator do caso A.C., tenha seguido
a mesma lógica do caso Chacina da Candelária, conclui que o direito ao esquecimento
188. ANDRADE, Norberto Nuno Gomes de. Oblivion, cit., p. 133.
189. REsp. 1.334.097/RJ, 4ª T. Rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. 28.05.2013.
190. REsp. 1.335.153/RJ, 4ª T., Rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. 28.05.2013
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não seria aplicável à família de A.C. Isso porque, segundo ele, o cerne do programa foi
o crime em si, além de entender que seria impraticável para a atividade da imprensa re-
tratar o caso de A.C. sem fazer referência à própria vítima. Inconformados, os familiares
levaram a questão ao Supremo Tribunal Federal, que reconheceu a repercussão geral do
tema e o colocou sob discussão em audiência pública.
Embora o entendimento do STF ainda esteja indef‌inido, cumpre lembrar que, ao
tratar da exigibilidade de autorização de pessoas retratadas em obras biográf‌icas,191 o
Tribunal manifestou-se pela preponderância das liberdades comunicativas frente ao
direito à intimidade, privacidade, honra e imagem dos biografados. Isso não signif‌ica que
a mesma posição será automaticamente estendida ao caso sob discussão, que envolve
questões e aspectos diversos, porém, é um indicativo de que tal linha de pensamento
pode voltar a ser invocada pelo STF.
Independentemente da decisão que será tomada, é natural que a manifestação
do Tribunal não supra todas as lacunas sobre o tema, especialmente considerando que
o caso em discussão se refere à veiculação de programa televisivo e as questões mais
espinhosas sobre o direito ao esquecimento encontram-se, hoje, no ambiente virtual.
Justamente por esse motivo, este item não pretende fazer uma análise minuciosa de
precedentes que não se ref‌iram à Internet. Isso não signif‌ica, de modo algum, desmerecer
a importância de outros precedentes e da discussão nas demais mídias; porém, sendo
o objetivo do trabalho ref‌letir sobre o direito ao esquecimento na Internet, parece mais
produtivo concentrar as atenções nos casos que tratam do tema central deste estudo.
1.4.3.1. Precedentes brasileiros de desindexação
Traçando um paralelo com a experiência europeia, melhor detalhada no item 1.3
acima, é interessante notar que, diferentemente do entendimento do ECJ, boa parte dos
precedentes nacionais sobre a aplicação do direito ao esquecimento pela via da desin-
dexação se baseia na ideia de que o buscador é apenas o meio de acesso ao conteúdo e,
como tal, não pode ser responsabilizado.
Nesse sentido, em oportunidades diversas, o judiciário brasileiro se opôs à desinde-
xação. São exemplos desse posicionamento as decisões proferidas no contexto das ações
movidas por M.G.X.M.,192 S.M.S.,193 J.R.F.,194 M.S.J.,195 A.P.S.,196 M.A.F.C.197 e M.C.L.D.,198
todas contra o Google e pretendendo a remoção de certos resultados de busca.
191. ADI. 4.815, Rel. Min. Carmen Lúcia, j. 10.06.2015.
192. REsp. 1.316.921/RJ, 3ª T., Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 26.06.2012.
193. REsp. 1.593.873/SP, 3ª T., Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 10.11.2016.
194. Apelação cível n. 0161033-79.2009.8.19.0001, TJRJ, 1ª Câmara Cível, Rel. Des. Jose Carlos Maldonado de Car-
valho, j. 26.10.2010.
195. Apelação cível n. 0280797-93.2008.8.19.0001, TJRJ, 9ª Câmara Cível, Rel. Des. Rogerio de Oliveira Souza, j.
15.02.2011.
196. Apelação cível n. 0165842-73.2013.8.19.0001, PJERJ, 23ª Câmara Cível, Rel. Des. Sonia de Fátima Dias, j.
18.05.2016.
197. Apelação cível n. 0315365-04.2009.8.19.0001, TJRJ, 7ª Câmara Cível, Rel. Des. Ricardo Couto de Castro, j.
1.08.2012.
198. Apelação cível n. 0003983-65.2011.8.19.0212, TJRJ, 20ª Câmara Cível, Rel. Des. Letícia Sardas, j. 05.09.2012.
DIREITO AO ESQUECIMENTO.indb 44DIREITO AO ESQUECIMENTO.indb 44 22/04/2020 16:55:5722/04/2020 16:55:57
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CAPítulo I • dIREIto Ao ESquECImENto
Apesar de as decisões se basearem em argumentos e fundamentos diversos, é possível
identif‌icar como denominador comum a ideia acima mencionada, ou seja, de que não
se deve responsabilizar o buscador na medida em que ele atua como mera ferramenta
de pesquisa. De acordo com a posição da Ministra Nancy Andrighi, o provedor de busca
não é capaz de controlar os resultados das pesquisas nele realizadas, inexistindo, segun-
do ela, fundamento no ordenamento pátrio capaz de atribuir ao buscador a obrigação
de implementar o direito ao esquecimento, sob pena de exercer, com isso, função de
“censor digital”.199
Em direção diametralmente oposta a esse entendimento – até então dominante no
STJ – é imperioso destacar recente decisão da 3ª Turma que, por maioria, reconheceu
o direito à remoção de certos resultados referentes ao envolvimento da recorrente em
fraude de concurso público.200
Nos termos do acórdão, há circunstâncias excepcionalíssimas em que se faz neces-
sária a intervenção pontual do poder judiciário para fazer cessar o vínculo criado, nos
bancos de dados dos provedores de busca, entre dados pessoais e resultados de busca,
que não guardam relevância para o interesse público à informação, seja pelo conteúdo
eminentemente privado, seja pelo decurso do tempo. Ao acompanhar o voto-vencedor do
Ministro Marco Aurélio Bellizze, o Ministro Moura Ribeiro refutou, ainda, o argumento
de impossibilidade do pedido, af‌irmando que, se a desindexação se mostrou viável no
caso M.C.G., a argumentação da inviabilidade técnica do procedimento não se sustenta.
Vale mencionar que, não obstante raro, a desindexação já havia sido autorizada em
juízo anteriormente à decisão acima, a exemplo do caso C.P.,201 em que foi determinada
a retirada do resultado de busca tal qual solicitado pelo autor e reconheceu-se, ainda, o
dever indenizatório do buscador. Além disso, em decisão recente, o Tribunal de Justiça
de Pernambuco acatou o pedido de desindexação de um desembargador, determinan-
do ao Google que se abstenha de exibir notícias sobre o autor nas pesquisas realizadas
através de sua plataforma.202
De forma similar, o Tribunal de Justiça de São Paulo também decidiu, em algumas
oportunidades, pela remoção dos resultados de busca. São exemplos disso a decisão da
2ª Câmara de Direito Privado, que determinou a exclusão de diversos links que remetem
a notícias relacionadas a um advogado das pesquisas realizadas pelo buscador Yahoo!203
e, ainda, a decisão da 42ª Vara Cível Central, que deu provimento ao pedido de desin-
dexação referente à notícia que retratava a discussão de uma mulher com policiais.204
199. V. voto da Min. Nancy Andrighi no REsp. 1.593.873/SP, 3ª T., Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 10.11.2016.
200. REsp. 1.660.168/RJ, 3ª T., Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 08.05.2018.
201. Apelação Cível n. 0425157-48.2013.8.19.0001, PJERJ, 12ª Câmara Cível, Rel. Des. Jaime Dias Pinheiro Filho, j.
12.02.2015.
202. Apelação Cível n. 40589-41.2016.8.17.2001, TJPE, 5ª Câmara Cível, Rel. Des. Jovaldo Nunes Gomes, j. 10.10.2018.
203. Apelação Cível n. 1073052-18.2014.8.26.0100, TJSP, 2ª Câmara de Direito Privado, Rel. Des. José Carlos Ferreira
Alves, j. 07.03.2017.
204. O processo corre em segredo de justiça. Informações obtidas em: .migalhas.com.br/Quentes/17,-
MI272421,31047-Direito+ao+esquecimento+permite+ocultar+links+em+pesquisa+mas+nao>. Acesso em
23.11.2018.
DIREITO AO ESQUECIMENTO.indb 45DIREITO AO ESQUECIMENTO.indb 45 22/04/2020 16:55:5722/04/2020 16:55:57
DIREITO AO ESQUECIMENTO E SEUS MECANISMOS DE TUTELA NA INTERNET • JÚLIA COSTA DE OLIVEIRA COELHO
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1.4.3.2. Precedentes brasileiros de remoção de conteúdo
Com relação ao último precedente mencionado no item 1.4.3.1. acima, é inte-
ressante destacar que, embora tenha acolhido o pedido de desindexação da autora, o
magistrado negou o pedido de remoção do conteúdo da matéria do site em que ela fora
disponibilizada, sob o argumento de que isso equivaleria ao apagamento da história.
Na realidade, nota-se que o posicionamento contrário à exclusão da informação
é predominante na jurisprudência brasileira, que costuma identif‌icar tal remoção com
a prática de censura. Além de ter assumido posição similar ao decidir o já mencionado
caso das biograf‌ias, o STF se manifestou nesse sentido em outras ocasiões, inclusive ao
tratar de caso em que se pretendia a supressão de determinada notícia do sítio eletrônico
da revista Veja.205
No caso acima mencionado, a revista apresentou reclamação contra a decisão
proferida pela 7ª Vara Cível da Comarca do Rio de Janeiro, que determinou a retirada
de matéria referente à P.T.S. do sítio eletrônico da reclamante. A 1ª Turma, por unani-
midade, julgou procedente o pedido formulado na inicial da reclamação, opondo-se,
assim, à remoção da matéria.
É importante observar que, apesar da decisão unânime pela manutenção do conte-
údo, o Ministro Marco Aurélio revelou preocupação com a disponibilidade ad aeternum
de informações no ambiente digital. Na ocasião, o Ministro ressaltou a importância de
se discutir a perpetuação imposta pela Internet, a qual, como reconhecido pelo Ministro
Barroso na mesma oportunidade, ainda não foi enfrentada pelo STF.
Não obstante o entendimento do STF, há precedentes favoráveis à remoção de
conteúdo, como, por exemplo, a decisão proferida pela 2ª Câmara de Direito Privado
do Tribunal de Justiça de São Paulo, que, por maioria, determinou a retirada de matérias
sobre uma ex-participante de reality show e reconheceu à autora o direito de indenização
por danos morais.206
1.4.3.3. Posição jurisprudencial sobre outros mecanismos de tutela
Embora o judiciário já tenha decidido, tanto favorável quanto contrariamente,
sobre a desindexação e remoção de conteúdo, ou seja, sobre a aplicação de soluções mais
drásticas, restam inexploradas alternativas mais brandas. Faltam, assim, precedentes
que empreguem mecanismos como os de anonimização, atualização e alteração do
ranking de resultados de pesquisa, os quais, a depender do caso, são aptos à efetivação
do direito ao esquecimento na Internet.
Há que se ref‌letir, porém, se o julgador pode se valer dessas soluções caso o pedido
formulado pelo autor se limite ao pleito de desindexação e/ou indisponibilização da in-
formação ou se, por outro lado, isso signif‌icaria a violação do princípio da adstrição. Se,
por exemplo, uma pessoa ingressa em juízo para solicitar a remoção de certa reportagem
205. Reclamação 22.328, 1ª T., Rel. Min. Luís Roberto Barroso, j. 6.03.2018.
206. Apelação Cível n. 1024293-40.2016.8.26.0007, TJSP, 2ª Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Alcides Leopoldo
e Silva Júnior, j. 11.01.2018.
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CAPítulo I • dIREIto Ao ESquECImENto
e o magistrado entende que a anonimização é um meio ef‌icaz para atingir o objetivo por
ela perseguido, pode ele determinar que o provedor exclua as referências ao indivíduo,
mas mantenha a matéria no ar? Nesse caso, estar-se-á diante de uma sentença extra petita?
A discussão acima se assemelha, em certa medida, ao debate travado em sede de
responsabilidade civil sobre a possibilidade de o juiz reconhecer a reparação não pe-
cuniária caso o pedido do autor trate apenas da indenização em dinheiro. Em posição
favorável à combinação dos remédios pecuniário e não pecuniário, Anderson Schreiber
argumenta que, em sendo a indenização um dos meios capazes de atender o direito
material, qual seja, a reparação integral do dano, pode o juiz combinar a indenização
monetária com outros remédios.207
O ministro Luís Roberto Barroso manifestou entendimento similar no contexto
do RE n. 580.252/MS ao defender que, mesmo se o pedido corresponder à indenização
em dinheiro, o juiz não estaria limitado a tal solução. Isso porque o direito material a
ser tutelado é a efetiva reparação das lesões sofridas, e não o recebimento de dinheiro.
Acredita, assim, que as restrições impostas pelo princípio da congruência devem se
relacionar com a tutela do direito material do autor, e não com o remédio pleiteado.208
Aplicando essa lógica às decisões concernentes ao direito ao esquecimento, pode-se
ref‌letir se, da mesma forma, o direito material do autor não consiste justamente na pro-
teção de seus direitos fundamentais personalíssimos, cabendo ao julgador, pois, avaliar
e determinar, em concreto, a medida que melhor atende a essa pretensão. Seguindo essa
linha de raciocínio, a desindexação, remoção de conteúdo e outros podem ser entendi-
dos, tal qual a indenização pecuniária no caso da responsabilidade civil, como alguns
dos possíveis meios de promover os interesses subjacentes ao direito ao esquecimento.
Além disso, há que se considerar que, muitas vezes, o autor sequer tem ciência de
outros remédios aptos a concretizar a tutela pretendida, tampouco possui conhecimento
técnico (ou competência) para discernir o mecanismo mais adequado para atender a sua
demanda e possibilitar, tanto quanto possível, a coexistência dos direitos fundamentais
em conf‌lito.
Nesse sentido, e tendo em vista, ainda, o disposto no § 1º do artigo 324 do CPC/15,
é interessante ref‌letir sobre a possibilidade de formulação de pedidos genéricos, seja
pela impossibilidade de determinar, no momento do pedido, as consequências do ato
ou fato,209 seja porque a determinação do objeto da condenação, ou seja, a medida a ser
adotada, depende de ato a ser praticado pelo provedor de aplicações.210
É possível argumentar, portanto, que existem fundamentos para que o juiz avalie
e aplique, no caso concreto, o remédio que melhor realiza os interesses merecedores de
tutela, ainda que, eventualmente, ele não corresponda ao remédio sugerido pela parte
207. SCHREIBER, Anderson. Reparação não pecuniária dos danos morais. Direito Civil e Constituição. 1. ed. São Paulo:
Atlas, 2013, p. 217.
208. RE. 580.252/MS, Rel. Min. Alexandre de Moraes, j. 16.02.2017.
209. Nos termos do inciso II do § 1º do art. 324, é lícito formular pedido genérico quando não for possível determinar,
desde logo, as consequências do ato ou do fato.
210. De acordo com o inciso III do § 1º do art. 324, o pedido genérico também poderá ser formulado quando a deter-
minação do objeto ou do valor da condenação depender de ato que deva ser praticado pelo réu.
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DIREITO AO ESQUECIMENTO E SEUS MECANISMOS DE TUTELA NA INTERNET • JÚLIA COSTA DE OLIVEIRA COELHO
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autora. Assumir essa posição, porém, não elimina todos os problemas; na verdade, torna
necessário enfrentar outras dif‌iculdades.
Uma delas é a possibilidade de reconhecimento de ofício de mecanismo de tutela
diverso. Recorrendo novamente às discussões mantidas no tocante à responsabilidade
civil, parece razoável que o julgador ao menos permita às partes que se manifestem sobre
a medida distinta que, ao seu ver, melhor ampara o direito material do autor, respeitando,
assim, o princípio do contraditório.211
Outro ponto que se deve afrontar é o possível excesso de liberdade que seria con-
ferido ao juiz caso f‌ique a critério dele decidir o remédio mais adequado. Aqui, é impor-
tante esclarecer uma contradição aparente: sugerir que cabe ao magistrado selecionar o
mecanismo apropriado para tutela em concreto não signif‌ica que essa seleção será feita
livremente ou de forma arbitrária.
Na realidade, reconhecer o óbvio – qual seja, que é o julgador a f‌igura competente
para analisar e decidir o caso concreto – não equivale a conferir a ele poderes amplos e
irrestritos. Em todas as situações, o juiz deve seguir critérios claros e decidir de manei-
ra fundamentada. É essencial, portanto, deixar que o juiz desempenhe o seu papel, e
igualmente imprescindível que a doutrina cumpra a sua função crítica, criativa e ques-
tionadora, permanecendo atenta aos precedentes e cooperando com o judiciário sempre
que possível, em especial através da formulação de parâmetros capazes de orientar as
decisões judiciais.
Sem prejuízo das considerações acima, há que se destacar que essa é uma discussão
de alta complexidade e que envolve questões eminentemente processuais, as quais o
presente trabalho, por óbvio, não poderia pretender aprofundar ou esgotar, sob pena
de desviar signif‌icativamente dos f‌ins aqui perseguidos.
Esse debate, acima de tudo, tem por objetivo provocar uma ref‌lexão sobre a real
possibilidade de escolha de remédios ef‌icazes para proteção e promoção dos valores
tutelados pelo ordenamento jurídico. Ao interpretar o princípio da congruência de
forma rigorosa, pode-se estar fechando as portas para mecanismos menos severos de
implementação do direito ao esquecimento, que, em certos casos, possibilitariam in-
clusive a preservação dos diferentes interesses conf‌litantes.
Conforme mencionado anteriormente, apesar de sua popularidade, o direito ao
esquecimento é fonte de muitas dúvidas, poucas certezas e quase nenhum consenso.
Embora se observe uma crescente preocupação com o tema, os contornos e os critérios
para sua aplicação não parecem estar suf‌icientemente claros para os próprios juristas,
que tendem a oscilar entre posicionamentos muito refratários ou excessivamente com-
placentes.
Não bastasse o silêncio do legislador e os ruídos doutrinários, a concretização do
direito ao esquecimento exige o enfrentamento de dif‌iculdades práticas das mais variadas
211. SOUZA, Tayná Bastos de. A reparação não pecuniária dos danos: aplicabilidade no direito brasileiro. In. SOUZA,
Eduardo Nunes de; SILVA, Rodrigo da Guia. (Coord.) Controvérsias atuais em responsabilidade civil. São Paulo:
Almedina, 2018, pp. 537-538.
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CAPítulo I • dIREIto Ao ESquECImENto
ordens. Na Internet, por exemplo, há que se enfrentar diversas questões técnicas que se
multiplicam e representam grandes desaf‌ios à efetivação do direito ao esquecimento na
esfera online. Possivelmente em razão do exposto, embora presente no âmbito judicial,
o tema vem sendo tratado e aplicado de forma bastante irregular e desordenada.
Conforme se pôde notar ao longo do presente item, há decisões que reconhecem
o direito ao esquecimento de forma extremamente ampla, enquanto outras adotam
posições radicalmente restritivas, praticamente inviabilizando sua aplicação. Nesse
cenário jurisprudencial oscilante, resta sacrif‌icada a segurança jurídica. Embora as di-
f‌iculdades apresentadas pelo tema sejam evidentes, não se pode conceber que o direito
ao esquecimento seja def‌inido e aplicado de forma imprevisível e casuística, a depender
do entendimento particular de cada intérprete.
Para além do principal problema decorrente da falta de uniformidade jurispru-
dencial, qual seja, a insegurança jurídica, tal dissonância contribui para uma aborda-
gem confusa do tema, o que dif‌iculta ainda mais o seu tratamento equilibrado e uma
aplicação prudente.
Embora (repita-se) a presente análise não pretenda tratar detalhadamente de as-
pectos processuais, é interessante observar que há, em especial nos dias de hoje, uma
grande preocupação com a uniformização jurisprudencial. O CPC/15 traduziu a rele-
vância do tema em seu artigo 926, impondo aos tribunais um esforço unif‌icador para
que a jurisprudência se mantenha estável, íntegra e coerente.
É importante, pois, que haja um esforço de harmonização do posicionamento
jurisprudencial sobre o direito ao esquecimento, o que depende, em certo grau, do em-
penho doutrinário para def‌inição de diretrizes claras e sensatas. Com uma atuação mais
colaborativa e equilibrada, espera-se que as decisões sejam mais lineares, assegurando,
assim, previsibilidade às partes.
1.4.4. A expressão “direito ao esquecimento”: crítica
Conforme já mencionado, a temática do direito ao esquecimento ainda é permeada
de incertezas e indef‌inições, a começar pelo próprio termo, criticado por aqueles que
enxergam a pretensão de “ser esquecido” como algo inexequível ou contraproducente.212
Fato é que o ato de esquecer não é voluntário ou mesmo intencional, identif‌icando-se
mais com a ideia de um lapso do que de uma ação deliberada.
Sob essa perspectiva, embora atrativo, o uso do termo esquecimento é criticável por
sua imprecisão técnica, o que pode gerar confusões sobre os efeitos do direito ao esque-
cimento e até prejudicar a proteção dos valores que ele se propõe a tutelar.213 Pretender
a não veiculação de determinado fato sobre si não signif‌ica que o sujeito da informação
se esqueceu dele, ou que poderá fazê-lo um dia.
212. Vide posição do Procurador-Geral da República, Rodrigo Janot Monteiro de Barros, no parecer apresentado no
contexto do ARE. 833.248/RJ, referente ao caso A.C., de relatoria do ministro Dias Toffoli.
213. JONES, Meg Leta. Ctrl+Z, cit., p. 12.
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DIREITO AO ESQUECIMENTO E SEUS MECANISMOS DE TUTELA NA INTERNET • JÚLIA COSTA DE OLIVEIRA COELHO
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Apesar de a memória humana não ser perfeita, há coisas que não se esquece, ainda
que se queira e muito. Porém, o fato de a informação permanecer ou não na memória
do retratado não é suf‌iciente para justif‌icar que ela seja divulgada perante todos, o que
signif‌icaria inadmitir a própria concepção de vida íntima.
Da mesma forma, a aplicação do direito ao esquecimento não promove a elimi-
nação da lembrança porventura mantida pelos demais indivíduos a respeito de certo
fato. Recorrendo novamente à distopia de Orwell,214 nem mesmo a destruição de todos
os registros documentais de um determinado evento – o que, na realidade dos tempos
atuais, é impossível – impedia que as pessoas se recordassem de sua ocorrência.
Esse aniquilamento, aliás, não é sequer o resultado que o direito ao esquecimento
se propõe a concretizar. Novamente, não se trata de reescrever a história, de eliminar
uma parte do passado, e sim de permitir que ele efetivamente passe. O objetivo é não
trazer à tona ou manter em foco permanente uma informação desatualizada que afeta
o livre desenvolvimento e a existência digna do sujeito retratado.
Não se pretende, pois, esquecer ou ser esquecido, mas evitar que um fato pretérito
seja relembrado de uma determinada forma, ou simplesmente, nas palavras de Luciano
Floridi, “remembering without recalling”.215 Uma leitura rápida pode sugerir que se trata
essencialmente da mesma coisa, porém, é necessário ref‌letir por um instante.
O cérebro humano contém uma enormidade de informações e recordações: elas
estão ali, armazenadas, mas não pensamos sobre cada uma delas a todo tempo. Nos
lembramos dos mais variados eventos (marcantes e banais), mas essas lembranças estão,
por assim dizer, arquivadas. Não pensar com frequência em algo não signif‌ica que aquilo
foi esquecido, apenas que a memória em questão não está em destaque permanente.
Conforme observam Ingo Wolfgang Sarlet e Arthur M. Ferreira Neto, a ideia fun-
damental do direito ao esquecimento não se baseia no esquecimento em si, mas em não
sujeitar alguém a uma lembrança permanente do seu passado, identif‌icando-se, segundo
eles, como um direito de não ser forçado a lembrar.216
O objetivo do direito ao esquecimento não é, e nem poderia ser, intervir na conser-
vação das lembranças preexistentes sobre determinado fato, mas não colocar o episódio
em si em evidência, evitando, com isso, a sua constante recordação e, ainda, que os que
não tem ciência do ocorrido dele tomem conhecimento de modo descontextualizado.
Faz-se referência à contextualização porque o direito ao esquecimento também não
requer necessariamente a abstenção de divulgação ou remoção total de uma informação.
Como se verá nos Capítulos 2 e 3, há casos em que a proteção da imagem, privacidade e
dignidade do indivíduo e a preservação da informação não são de todo incompatíveis,
existindo outras formas de proteger os interesses envolvidos, como, por exemplo, através
da atualização ou anonimização.
214. ORWELL, George. 1984, cit.
215. FLORIDI, Luciano. The right to be forgotten: a philosophical view. Disponível em: https://www.academia.
edu/16491066/_The_Right_to_Be_Forgotten_a_Philosophical_View_-_forthcoming_in_Annual_Review_of_
Law_and_Ethics. Acesso em 01.03.2018. p. 16.
216. O direito ao “esquecimento” na sociedade da informação, cit., p. 65.
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CAPítulo I • dIREIto Ao ESquECImENto
Em uma tentativa de resolver o imbróglio terminológico e, com isso, afastar-se
daquilo que a leitura literal pode sugerir, alguns autores defendem que o direito ao es-
quecimento busca promover, na verdade, o perdão ou a redenção do sujeito.217 Embora
estudos indiquem que desculpar ajuda a esquecer,218 não parece razoável inferir que o
objetivo subjacente ao direito ao esquecimento seja obter o perdão, alheio ou próprio.
Primeiro porque, tal qual o esquecimento, o perdão não pode ser imposto a ninguém,
nem a si próprio. Nessa hipótese, continuar-se-ia na presença de um direito inexequível,
incapaz de promover os efeitos a que se destina.
Além disso, no campo afetivo, a redenção é normalmente associada ao arrepen-
dimento. Seguindo o esforço de objetivação, não devem entrar em questão os senti-
mentos que o sujeito possui quanto ao fato sobre o qual pretende exercer o direito ao
esquecimento. Não se deve perquirir, portanto, se o indivíduo se arrepende ou não do
ocorrido, se ele entende que precisa ser perdoado (ou se perdoar). Os fatores emocionais
e a repercussão subjetiva do fato não devem assumir relevo para a concepção jurídica
do direito ao esquecimento e para sua aplicação prática.
Embora a escolha do termo esquecimento se revele claramente inadequada para os
f‌ins pretendidos, acredita-se que os questionamentos sobre a precisão terminológica
não legitimam a sua rejeição de plano, sob pena de, com isso, jogar o bebê fora com a
água do banho. Restam, então, duas opções: cunhar um novo termo ou ressignif‌icar o
que está em uso.
A primeira opção, apesar de instigante, parece pouco oportuna. Isso porque a ex-
pressão direito ao esquecimento já se popularizou e corresponde, na verdade, à tradução
para o vernáculo da terminologia adotada em outras jurisdições e idiomas, a exemplo
do droit à l’oubli, em francês, o diritto all’oblio, em italiano, o right to be forgotten, em
inglês e o derecho al olvido, em espanhol.
Tem-se, pois, uma expressão amplamente difundida, cuja substituição exigiria,
dentre outros, um empenho de uniformização.219 Sobre os termos em língua estrangeira,
é interessante observar que, tanto na expressão em inglês quanto na alemã (recht auf
vergessen werden), faz-se referência ao direito “a ser esquecido”, e não “ao esquecimento”.
Embora isso exprima, para alguns, uma noção distinta – considerando-se, inclusive,
que o primeiro seria a opção mais apropriada – não parece existir diferença substancial
prática entre o uso do substantivo ou do verbo na voz passiva, especialmente em se enten-
dendo que o resultado concreto buscado não é nem o esquecimento, nem ser esquecido.
Considerando o exposto, assim como as tantas dif‌iculdades que o tema já enfrenta,
despender tempo e energia com a propositura de um novo termo talvez seja um esforço
217. JONES, Meg Leta. Ctrl+Z, cit., pp. 12-13.
218. De acordo com estudos realizados por psicólogos na Universidade de St. Andrew, na Escócia, os indivíduos estão
mais propensos a suprimir informações associadas a certas recordações caso as respectivas ofensas tenham sido
perdoadas. (Resumo do estudo disponível em: . Acesso
em 05.11.2018)
219. Também se mostram contrários à substituição da expressão “direito ao esquecimento”, inobstante críticos à precisão
terminológica, os autores Ingo Wolfgang SARLET e Arthur M. FERREIRA NETO (O direito ao “esquecimento” na
sociedade da informação, cit., p. 63).
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criativo de utilidade prática questionável. Isso não signif‌ica, de modo algum, desme-
recer a importância de def‌ini-lo adequadamente – o que permite, em última instância,
selecionar o tratamento mais adequado – mas apenas abrir espaço para a ref‌lexão de
que, em certas ocasiões, pode ser mais proveitoso debruçar-se sobre o conteúdo do que
sobre o título, evitando-se uma mera “guerra de etiquetas”.220
A alternativa da ressignif‌icação, portanto, se revela mais conveniente, especialmente
no contexto da metodologia civil-constitucional,221 que prioriza a análise funcional dos
institutos.222 Ao ref‌letir sobre a função do direito ao esquecimento, ou seja, para que ele
serve, nota-se claramente que ele não pretende fazer com que se esqueça uma informa-
ção, apenas que, em certas situações, ela não seja divulgada ou se mantenha acessível.
Com isso, a referência ao termo usual pode ser mantida, conferindo-se, contudo, uma
interpretação mais adequada aos f‌ins realmente objetivados.
1.4.5. Qualicação do direito ao esquecimento
Além da controvérsia terminológica, é comum que os críticos do direito ao esque-
cimento af‌irmem que ele não corresponde, de fato, a um direito. Seja pela ausência de
previsão legal ou por acreditar que, na realidade, ele é apenas um novo nome para lesões
a outros direitos fundamentais,223 como o direito à privacidade, há quem questione a
própria qualif‌icação do direito ao esquecimento como tal.
Conforme detalhado no item 1.4.1 acima, acredita-se que a falta de base legal
específ‌ica não impede o reconhecimento do direto ao esquecimento. Uma vez que a
personalidade é concebida como um valor e a dignidade humana como um dos funda-
mentos da República, é possível e, inclusive, desejável tutelar de forma elástica e aberta
as mais variadas manifestações da personalidade humana, ainda que o legislador tenha
sido silente com relação a elas.224
Superada essa primeira objeção, faz-se necessário ref‌letir sobre outras questões
atinentes à caracterização do direito ao esquecimento como um direito. Partindo de uma
220. Expressão usada pelo Ministro Ruy Rosado de Aguiar, em voto proferido no REsp. 65.393/RJ, Rel. Min. Ruy
Rosado de Aguiar, j. 30.10.2005.
221. A respeito da constitucionalização do direito civil, v. KONDER, Carlos Nelson. Desaf‌ios da constitucionalização
do direito civil. In. AZAR, Celso Martins; FONSECA, Maria Guadalupe Piragibe da. Constituição, Estado e Direito:
ref‌lexões contemporâneas. Rio de Janeiro: Qualitymark, 2009, pp. 214-215.
222. Nas palavras de Anderson SCHREIBER e Carlos Nelson KONDER, “[a] interpretação com f‌ins aplicativos conduz
à prioridade do perf‌il funcional dos institutos sobre o perf‌il estrutural. Superada a matriz positivista de priorizar
a análise estrutural dos institutos – a composição de seus elementos –, como forma de salvaguardar a pesquisa
teórica contra a inf‌iltração de juízos de valores e de evitar a confusão entre direito positivo, o único objeto pos-
sível de uma teoria científ‌ica do direito, e direito ideal, defendeu-se a importância de priorizar, na análise de um
instituto, seu perf‌il funcional, seus efeitos, passando do “como ele é” para o “para que ele serve”. Sob a perspectiva
civil-constitucional, isso implica que não apenas deve-se priorizar a análise da função do instituto, mas também
verif‌icar sua compatibilidade com os valores que justif‌icam a tutela jurídica do instituto por parte do ordenamento,
positivados sob a forma de preceitos constitucionais” (Uma agenda para o direito civil-constitucional. Revista
brasileira de direito civil, vol. 10, out.-dez./2016, pp. 13-14).
223. SOUZA, Carlos Affonso Pereira de. Dez dilemas sobre o chamado direito ao esquecimento, cit., p. 1.
224. SCHREIBER, Anderson. Direitos da personalidade, cit., p. 15. Em linha similar, vide BRANCO, Sérgio. Memória
e esquecimento na Internet, cit., p. 131.
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CAPítulo I • dIREIto Ao ESquECImENto
abordagem conceitual, o direito subjetivo costuma ser entendido como o poder reco-
nhecido pelo ordenamento a um sujeito para a realização de um interesse individual.225
Com relação ao reconhecimento de direitos personalíssimos pelo ordenamento,
permita-se remeter à discussão anterior sobre a proteção da personalidade como valor
fundamental do ordenamento. Nas palavras de Perlingieri, a diversidade dos interesses
fundamentais do homem não se traduz em uma pluralidade de direitos fundamentais
diversif‌icados por conteúdo e disciplina,226 reiterando, assim, a opção por uma tutela
irrestrita, fundada na elasticidade.227 Conforme sintetiza Gustavo Tepedino:
A personalidade humana mostra-se insuscetível de recondução a uma relação jurídica-tipo ou a um
novelo de direitos subjetivos típicos, sendo, ao contrário, valor jurídico a ser tutelado nas múltiplas
e renovadas situações em que o homem possa se encontrar a cada dia. Daí resulta que o modelo do
direito subjetivo tipicado será necessariamente insuciente para atender às possíveis situações em
que a personalidade humana reclame tutela jurídica.228
Na realidade, há que se destacar a insuf‌iciência da própria noção tradicional do
direito subjetivo que, embora surja para exprimir um interesse individual, só será digno
de tutela se, e enquanto for, conforme não apenas ao interesse do titular, mas também
àquele da coletividade.229 Observa-se, portanto, uma crise do direito subjetivo, cujo
reconhecimento e tutela dependerão da orientação de tal direito à efetiva concretização
dos valores tutelados pela ordem jurídica.230
Dentre as diferentes classif‌icações de direitos subjetivos, destaca-se a distinção
entre o direito subjetivo principal, qual seja, o direito que existe de modo autônomo
e independente, e o acessório, que depende, por sua vez, da existência de um direito
principal, com ele se relacionando.
Para melhor compreensão, tome-se como exemplo o direito à informação e a
liberdade de informação jornalística, constitucionalmente protegidos nos termos do
inciso XIV do art. 5231 e § 1º do art. 220,232 respectivamente. Conforme observa Perlin-
gieri, a atividade informativa não é culturalmente neutra tampouco se desenvolve em
função de si mesma, sendo garantida constitucionalmente justamente para contribuir
225. PERLINGIERI, Pietro. Perf‌is de direito civil, cit., p. 120.
226. PERLINGIERI, Pietro. Perf‌is de direito civil, cit., p. 159.
227. Nas palavras de Pietro PERLINGIERI, “a elasticidade torna-se o instrumento para realizar as formas de proteção
também atípicas, fundadas no interesse à existência e no livre exercício da vida de relações.” (Perf‌is de direito civil,
cit., p. 156.)
228. A tutela da personalidade no ordenamento civil-constitucional brasileiro. In TEPEDINO, Gustavo (Coord.).
Temas de Direito Civil, 3ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 47.
229. PERLINGIERI, Pietro. Perf‌is de direito civil, cit., p. 121.
230. SCHREIBER, Anderson. Manual de Direito Civil contemporâneo, cit., p. 89.
231. Art. 5. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos
estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à pro-
priedade, nos termos seguintes: [...] XIV – é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da
fonte, quando necessário ao exercício prof‌issional.
232. Art. 220. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou
veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.
§ 1º Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística
em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no art. 5º, IV, V, X, XIII e XIV.
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com o desenvolvimento humano e viabilizar a efetiva participação de cada um na vida
comunitária.233
Assim sendo, a liberdade de imprensa deve ser entendida como um direito destinado
a instrumentalizar a promoção e proteção de um interesse fundamental dos indivíduos,
qual seja, o acesso à informação. Nessa perspectiva, pode-se entender a liberdade de
informação jornalística como um direito acessório ao direito principal à informação,
cuja existência independente não encontraria razão de ser. Isso não signif‌ica que se
trata de um direito menos importante, inclusive porque, na hipótese em questão, a
liberdade de imprensa é essencial para viabilizar o acesso à informação, que é, por sua
vez, fundamental para a participação dos cidadãos em uma sociedade democrática.234
Além de serem ambos relevantes, tanto o direito subjetivo principal quanto o
acessório devem ser concebidos como direitos limitados, na medida em que, como já
mencionado, nenhum direito subjetivo é atribuído ao interesse exclusivo do sujeito.235
Não há que se falar, portanto, em um direito subjetivo (principal ou acessório) absoluto,
sendo os limites externos, na verdade, aspectos qualitativos intrínsecos dos próprios
direitos.236
Feitas essas considerações, é possível questionar a af‌irmativa de que o direito ao
esquecimento seria apenas uma nomenclatura diferente para lesões a outros direitos
fundamentais. Essa interpretação, inclusive, reduziria a sua aplicabilidade ao momento
patológico, ou seja, às hipóteses em que os direitos fundamentas já foram violados, o
que não condiz com a proteção constitucional a eles destinada.
Na realidade, o direito ao esquecimento parece se aproximar mais da f‌igura do direito
acessório, pois instrumentaliza a efetiva proteção e promoção de direitos fundamentais
como privacidade e imagem e, principalmente, da dignidade humana, considerada o
valor maior tutelado pelo ordenamento jurídico brasileiro.
Além disso, o direito ao esquecimento não se confunde com os remédios disponí-
veis para sua aplicação, como, por exemplo, a desindexação, a remoção de conteúdo, a
anonimização, dentre outros. O direito ao esquecimento instrumentaliza a proteção de
interesses fundamentais do indivíduo e pode ser exercido, na prática, através de mecanis-
mos de tutela diversos, tanto para prevenir quanto para reparar lesões à personalidade.
Tendo em vista todo o exposto, admitir o direito ao esquecimento como tal é condi-
zente com a busca por uma proteção abrangente da personalidade humana, irredutível
à tipif‌icação exaustiva de direitos subjetivos pré-determinados e já positivados.
Esse reconhecimento também se encaixa em um contexto jurídico voltado à real
concretização dos interesses fundamentais da pessoa humana, em que se busca justa-
mente as mais variadas ferramentas capazes de realiza-los. Como observa Norberto
Bobbio, na chamada Era dos Direitos:
233. PERLINGIERI, Pietro. Perf‌is de direito civil, cit., p. 192.
234. PERLINGIERI, Pietro. Perf‌is de direito civil, cit., p. 186.
235. PERLINGIERI, Pietro. Perf‌is de direito civil, cit., p. 121.
236. PERLINGIERI, Pietro. Perf‌is de direito civil, cit., p. 122.
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CAPítulo I • dIREIto Ao ESquECImENto
[O] importante não é fundamentar os direitos do homem, mas protegê-los. Não preciso aduzir aqui
que, para protegê-los, não basta proclamá-los. [...] O problema real que temos de enfrentar, contudo,
é o das medidas imaginadas e imagináveis para a efetiva proteção desses direitos.237
O desaf‌io da efetivação dos direitos do homem é especialmente complexo ao se
considerar a universalização e multiplicação de tais direitos. Sobre essa proliferação,
Bobbio acredita que se trata de fenômeno decorrente, dentre outros, da passagem do
homem em abstrato para o homem específ‌ico.
Ao se considerar os variados critérios de diferenciação da pessoa humana, como
sexo, idade e condições físicas, evidenciam-se diferenças específ‌icas, que não podem
ser tratadas e protegidas da mesma forma.238 Nesse cenário, é natural que se identif‌ique
uma pluralidade de interesses cuja existência não é exatamente nova, mas que tampouco
haviam sido expressamente reconhecidos ou mesmo tutelados em todas as suas possíveis
manifestações, concebendo-se, consequentemente, uma gama de direitos destinados a
proteger esses interesses.
É nesse contexto que o direito ao esquecimento surge e se insere, tornando-se es-
pecialmente relevante na sociedade da informação, que faz surgir e amplif‌ica diversos
desaf‌ios e riscos ao livre desenvolvimento dos indivíduos. Assim, para além de debates
sobre terminologia e qualif‌icação, é salutar que se discuta os mecanismos adequados
para concretização dos interesses subjacentes ao direito ao esquecimento.
1.4.6. A tutela do direito ao esquecimento no Brasil
Conforme observado ao longo deste Capítulo 1, o direito ao esquecimento é um
tema em desenvolvimento, cujo desenrolar ainda é particularmente embrionário na rea-
lidade brasileira. Sem reconhecimento legal expresso e com tratamento jurisprudencial
inconstante, a sua tutela no Brasil acaba sendo, muitas vezes, relegada ao puro casuísmo.
Na verdade, parece prematuro, rectius, impreciso af‌irmar que já existe “a” tutela do
direito ao esquecimento no Brasil, especialmente no que diz respeito a sua aplicação na
Internet. Diferentemente da experiência europeia, os tribunais brasileiros não parecem
convencidos de que a desindexação é um mecanismo adequado para implementar o
direito ao esquecimento.
Ao mesmo tempo, em linha com a clara preferência que o Marco Civil da Internet
manifestou pela liberdade de expressão, o judiciário se mostra resistente à remoção de
conteúdo, utilizando-se, inclusive, desta suposta preferência para justif‌icar o indeferi-
mento de pedidos de retirada de informações.
O fantasma da ditadura e a “história acidentada”239 da liberdade de expressão no
Brasil são o pano de fundo para o desenvolvimento da corrente de pensamento que
a considera como uma “liberdade preferencial”,240 com dimensão e peso prima facie
237. BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. 7ª reimpressão. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 22.
238. BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos, cit., pp. 33-34.
239. Expressão usada pelo Ministro Luís Roberto Barroso em voto proferido no contexto da ADI 4.815, cit.
240. Tese defendida pelo Ministro Luís Roberto Barroso no voto acima mencionado.
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maiores.241 Em que pese a excelência dessa corrente – e a indiscutível importância da
liberdade de expressão – há que se ref‌letir criticamente se esse posicionamento encontra
amparo no ordenamento jurídico brasileiro.
Sobre o tema, melhor explorado no item 1.4.2.1.1 acima, acredita-se que, na au-
sência de regra constitucional estabelecendo uma maior importância ou preferência de
um direito fundamental sobre outro, não parece razoável, ou mesmo legítimo, que a
legislação ordinária, o judiciário ou a doutrina o faça. Assim, em caso de conf‌lito entre
tais direitos, faz-se necessário investigar, em concreto, a possibilidade de coexistência
dos direitos em colisão ou, alternativamente, sopesá-los para def‌inir qual deles deve
prevalecer naquela situação.
Além do estranhamento jurisprudencial à desindexação e à remoção de conteúdo,
são tímidas as iniciativas que buscam aplicar o direito ao esquecimento através de ins-
trumentos alternativos, como, por exemplo, a exigência de atualização da informação
ou de anonimização do conteúdo.
Justiça seja feita, esse acanhamento pode ser explicado, ao menos em parte, pelo
fato de o tema envolver uma multiplicidade de aspectos que fogem à esfera jurídica, pela
questão imposta pelo princípio da adstrição, abordada no item 1.4.3 acima, e, ainda, pela
bibliograf‌ia ainda incipiente sobre os mecanismos de tutela aplicáveis, o que certamente
dif‌iculta a tarefa de efetivar o direito ao esquecimento em termos práticos. O socorro
doutrinário é, sem dúvida, desejável, mas falta aos juristas consensos mínimos sobre o
tratamento adequado do direito ao esquecimento e os parâmetros para sua aplicação.
Fato é que a doutrina brasileira sequer concorda, em linhas gerais, que um direito
ao esquecimento.
Frequentemente, os debates giram em torno de aspectos eminentemente teóricos
e de questões que, embora relevantes, não são reconduzíveis a fórmulas estáticas e
universais. Exemplo disso é a discussão sobre interesse público: costuma-se af‌irmar
que o direito ao esquecimento não pode alcançar informações revestidas de interesse
público, o que muitas vezes inspira tentativas de def‌inir, a priori e de forma genérica,
as situações e fatos que se qualif‌icam (ou não) como relevantes para a sociedade ou, ao
revés, apenas para o particular.
Não se pretende desmerecer, por óbvio, o importante papel que o interesse público
desempenha no tocante ao direito ao esquecimento, tampouco sugerir o abandono da
árdua tarefa de selecionar critérios para a sua aplicação ou propor a justiça do caso con-
creto – isso seria, inclusive, contraditório com o que se defendeu até aqui. Na realidade,
as discussões sobre o direito ao esquecimento não podem ser travadas exclusivamente
nem no campo abstrato, nem no concreto. Tentar antever e f‌ixar um rol taxativo de hi-
póteses de incidência é tão improdutivo quanto deixar a cargo exclusivo do judiciário
decidir, em cada caso, a forma e as circunstâncias em que ele se aplica.
241. Em defesa da primazia da liberdade de expressão, v. voto proferido pelo Ministro Carlos Ayres Britto no con-
texto da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 130 (ADPF. 130, Rel. Min. Carlos Britto, j.
30.04.2009).
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CAPítulo I • dIREIto Ao ESquECImENto
É oportuno, assim, que a doutrina avance para além de altercações teóricas, que,
apesar de interessantíssimas no ambiente acadêmico, pouco contribuem para a real
concretização do direito ao esquecimento. Além disso, faz-se necessária uma maior
abertura e interação entre a ciência jurídica e outras disciplinas, uma vez que, como já
mencionado, o Direito não dispõe de todo o conhecimento e dos instrumentos neces-
sários para efetiva implementação do direito ao esquecimento na Internet.
Percebe-se, portanto, que a tutela adequada do direito ao esquecimento exige
esforços conjuntos e coordenados do legislador, dos juristas e do julgador. Quanto ao
primeiro, acredita-se que a regulação pela via legislativa, embora não seja essencial para
o seu reconhecimento, ajudaria na melhor def‌inição do direito ao esquecimento e lhe
conferiria, aos olhos dos positivistas, maior legitimidade.
Não obstante, a previsão legal em nada afasta ou supre a atuação da doutrina, es-
pecialmente caso se opte pela técnica legislativa de cláusulas gerais, tal qual sugerido
no item 1.4.1. Compete aos juristas a tarefa de ref‌letir criticamente sobre o tema, de
interpretá-lo e compreende-lo nas suas mais variadas manifestações, buscando, com
isso, traçar diretrizes gerais para sua aplicação.
Tendo a lei como ponto de partida e o suporte doutrinário, o judiciário contará com
mais subsídios para a análise do caso concreto. Vale ressaltar que, mesmo na presença
de dispositivo legal expresso, a decisão judicial não deve ser fruto de um exercício me-
ramente subsuntivo, tampouco da escolha livre e subjetiva do julgador, o qual deverá
demonstrar, através da fundamentação, o que o levou àquela determinação.
Firmes nesse propósito, os próximos capítulos buscarão, ainda que de forma mo-
desta, contribuir para a evolução das discussões sobre o direito ao esquecimento e sua
aplicação na Internet. Para tanto, eles abordarão (alguns dos) mecanismos de tutela
aplicáveis, sugerindo, ao f‌inal, possíveis parâmetros para orientar a seleção e aplicação
do instrumento mais adequado.
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