Direito Desportivo Internacional

AutorMariana Rosignoli/Sérgio Santos Rodrigues
Ocupação do AutorAdvogada e sócia do Santos Rodrigues Santiago Tonello Advogados / Advogado e sócio do Santos Rodrigues Santiago Tonello Advogados
Páginas86-109

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1. Introdução

desporto tem características peculiares, entre elas, a capacidade de integração de povos e comunidades internacionais,

O transcendendo barreiras não só geográficas, mas também culturais e econômicas. Assim, o Direito Desportivo, em razão das especificidades da matéria, é naturalmente “internacional”.

Um mesmo esporte é disputado em diversos países simultaneamente e, por isso, há entidades globalizadas para tutelar uma mesma modalidade e determinar as regras gerais. Há provas de ciclismo que abrangem mais de 5 países; há provas de rali que ultrapassam até continentes; por fim, há competições que, embora realizadas em um país, abrangem o mundo todo.

Para se ter uma noção da abrangência do desporto ao redor do mundo, a FIFA, por exemplo, conta com 211 associações-membro140, a Federação Internacional de Basquete (FIBA) conta com 213 associadas141 e a Federação Internacional de Voleibol (FIVB) possui 220 associações nacionais filiadas142, números superiores até mesmo ao de associados à Organização das Nações Unidas (ONU). Por isso é necessário que se instituam além das regras da modalidade, regras quanto à filiação, responsabilidades, direitos e outros.

Nas disputas internacionais, imprescindível que se tenha um direito disciplinar abrangente, para eventuais punições a atletas, técnicos e outros profissionais de determinada modalidade.

Ademais, esses atores do desporto podem exercer sua função fora de seus países de origem, representando outras equipes, o que necessita de regramento quanto às transferências, solidariedade e outros temas.

Nesse sentido, Hernán J. Ferrari defende, citando Kelsen, que mais que um ramo autônomo do Direito, o Direito Desportivo deveria ser considerado como um “Ordenamento Jurídico Desportivo Internacional”:

A ordem jurídica internacional determina os âmbitos territorial, pessoal e temporal de validade das nacionais, restringindo o âmbito material de validade das ordens jurídicas nacionais ao submetê-las à regulação de matérias próprias, que de outra maneira seriam arbitrariamente reguladas por cada Estado.143

Assim, surge o Direito Desportivo Internacional, ramo do Direito Desportivo que trata dos princípios e regras que determinarão a legislação aplicável às relações jusdesportivas de caráter internacional.

2. Princípios

Tácitos ou expressos, os princípios do Direito Desportivo Internacional têm objetivo de subsidiar a organização legal do ordenamento desportivo internacional.

Rafael Teixeira Ramos faz uma divisão interessante dos princípios internacionais de Direito Desportivo144, com a qual concordamos, os classificando em nove: universalidade, comunhão, não discriminação desportiva, autonomia desportiva internacional, unidade (unicidade), especificidade, ética desportiva, solidariedade e inafastabilidade da justiça desportiva dos institutos desportivos internacionais privados.

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2.1. Universalidade

O Princípio da Universalidade determina que o desporto deve ser acessível a todos. A Carta Olímpica, que é a codificação dos Princípios Fundamentais do Olimpismo, das Regras e dos Textos de Aplicação adotados pelo Comitê Olímpico Internacional (COI), estabelece que “a prática do desporto é um direito do homem” e “todo e qualquer indivíduo deve ter a possibilidade de praticar desporto”.

O princípio também está presente na Carta Internacional da Educação Física e do Esporte da UNESCO de 1978 — “todo ser humano tem o direito fundamental de acesso à educação física e ao esporte”145 — e nos Estatutos das entidades internacionais do desporto como, por exemplo, a FIFA.

2.2. Comunhão

O Princípio da Comunhão prega a pacificação entre os povos por meio do esporte. O desporto seria um instrumento para que as pessoas, comunidades, nações, se identifiquem e harmonizem seus pensamentos e ações.

Exemplo claro disso é a citação de Nelson Mandela no livro que originou o filme “Invictus”, em que o líder mostra como o jogo de Rúgbi contribuiu para a união dos negros e brancos na África do Sul pós apertheid: “O esporte tem o poder de mudar o mundo. Tem o poder de inspirar, o poder de unir pessoas que têm pouco em comum. É mais poderoso que os governos para derrubar barreiras raciais”.146

2.3. Não discriminação desportiva

É o “princípio da igualdade desportiva”, se todos são iguais perante a lei, também o devem ser nas modalidades desportivas e, quanto aos desiguais, são tratados de forma diferente na medida de suas desigualdades.

Os Estatutos de algumas entidades possuem dispositivos vedando a discriminação e até mesmo prevendo a expulsão do filiado, como no caso da FIFA, que nas disposições gerais preceitua:

NÃO DISCRIMINAÇÃO E POSIÇÃO CONTRA O RACISMO

Discriminação de qualquer tipo contra um País, pessoa ou grupo privado devido à raça, cor da pele, etnia, origem nacional ou social, gênero, idioma, religião, opinião política ou qualquer outra opinião, riqueza, nascimento ou qualquer outra situação, orientação sexual ou qualquer outro motivo é estritamente proibida e passível de suspensão ou expulsão.

A Federação Internacional de Tênis (ITF), por exemplo, já puniu a Federação Tunisiana de Tênis por essa não permitir um atleta filiado a disputar uma partida em razão da diferença religiosa e étnica entre Tunísia e Israel.147

2.4. Autonomia desportiva internacional

O Princípio da autonomia desportiva internacional garante às entidades internacionais de administração do desporto o poder de auto-organização e auto-administração, por meio de seus estatutos, que implementam regras próprias. São elementos caracterizadores dessa autonomia:

Autoprimazia normativa: as normas emanadas pelas entidades desportivas criam uma espécie de Lex superior, que tem validade em si própria. São exemplos: a Carta Olímpica do COI, os Estatutos das Federações Internacionais;

Inicialidade: o regulamento desportivo internacional é criado sem interferência estatal, a iniciativa é da entidade, que representa um coletivo supraestatal;

Juridicidade: as entidades internacionais de organização/administração do desporto implementam seus órgãos judicantes com regras de organização e funcionamento próprias.

2.5. Unidade ou unicidade

Pelo Princípio da Unidade, em cada modalidade esportiva deve haver o reconhecimento de apenas uma entidade representativa em cada nível hierárquico organizacional.

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O princípio também preza pela uniformidade de regras de um determinado esporte, independentemente de qual o local de sua prática.

Essa unidade, então, se constitui para evitar a existência de associações concorrentes, estabelecer um corpo de regras único para determinado esporte e organizar competições com padrões únicos e internacionais.

2.6. Especificidade

O esporte como um todo é marcado pela singularidade e peculiaridade de suas regras, relações, aplicabilidade, entre outros. Assim, observa-se nos diversos sentidos do fenômeno desportivo características únicas, como, por exemplo, a transuniversalidade, dinamicidade, versatilidade e imprevisibilidade.

2.7. Ética desportiva

No século XIX se iniciaram as primeiras reflexões acerca da ética no meio desportivo, até se chegar a um conjunto de princípios e valores que regem o “espírito olímpico”.

Por meio da ética desportiva que se prega a conduta moral na prevenção e combate à violência, corrupção, manipulação e desrespeito à saúde entre outros aspectos incompatíveis com a dignidade humana na prática do des-porto. Tal princípio se desdobra em:

Isonomia competitiva ou igualdade de condições nas competições: refere-se diretamente aos atletas e no objetivo de que estejam em condições iguais para competir;

Equilíbrio competitivo: “empresarialização” do desporto, restrição à “livre concorrência” no esporte, garantir mais equilíbrio entre equipes favorecidas economicamente e não favorecidas;

Incerteza dos resultados (verdade desportiva, pureza dos resultados): combater manipulação de resultados e “participação cruzada” em clubes.

O Conselho da Europa, por exemplo, editou em 1992 um Código da Ética no desporto como recomendação aos Governos...

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