Direito e mutação nas materialidades discursivas: da oralidade à cultura escrita; do impresso ao digital

AutorCláudio Brandão
Páginas115-128

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1. Introdução

O direito é uma experiência discursiva extremamente institucionalizada. Num plano geral, o discurso jurídico opera a partir de certos procedimentos e tem uma materialidade própria, ou seja, ele se materializa ou se realiza através de um meio material próprio (oral, manuscrito, impresso, fonográfico, digital, etc.). A introdução da escrita no direito, ocorrida nos primórdios de nossa história, como atesta o Código de Hamurabi, provocou uma significativa mudança nos modos de preservação da memória legislativa e processual, na exposição das teses pelas partes e na formação mesma da cognição judicial. A impressão e a difusão em grande escala do impresso também provocaram importantes mudanças na publicidade dos atos legislativos e jurisdicionais e na participação pública. Da mesma maneira, o meio digital introduz uma nova materialidade ao direito e já percebemos alguns reflexos em termos de interatividade e virtualização.

Para analisar a maneira como as mudanças nas formas de materialização discursiva afetam o direito, iniciaremos nossa exposição por uma breve análise da passagem da oralidade para a cultura escrita (manus-crita e impressa) e, na sequência, a revolução provocada pela cultura digital. Procuraremos ressaltar como essas mudanças envolvem o desenvolvimento de diferentes competências ou perfis cognitivos1 e provocam a emergência de novas tecnologias da inteligência.2

Daremos destaque à nova experiência introduzida pela textualidade digital e aos seus reflexos no direito.

É importante salientar que, embora a organização deste texto exponha as diferentes experiências discursivas de forma linear, como momentos que se sucedem, não devemos perder de vista que se trata de um fenômeno bem mais complexo, no qual certas práticas permanecem e outras sofrem deslizamentos e ganham novos sentidos. Como ressalta CHARTIER3, ao se referir às práticas de leitura, é preciso ter certa precaução e não atribuir afobadamente às práticas culturais uma qualificação social genérica e unívoca. Também LÉVY é enfático ao dizer que “a sucessão da oralidade, da escrita e da informática como modos fundamentais de gestão social do conhecimento não se dá por simples substituição, mas antes por complexificação e deslocamento de centros de gravidade”.4 Portanto, cultura oral, manuscrita, impressa e digital não se sucedem linearmente, uma depois da outra, e não é o caso de profetizar uma

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catástrofe cultural provocada pela revolução digital. Se a apresentação se faz na forma de certos momentos e suas passagens, isso é uma estratégia didática que não deve obscurecer a complexidade das experiências em questão, como procuraremos mostrar a seguir.

Por outro lado, não se ignora aqui que essas diversas modalidades das chamadas “tecnologias da inteligência”5– oralidade, escrita e informática –, com seus elementos técnicos e restrições materiais, ao passo de imporem muitos condicionamentos (v.g., nas formas de pensamento e temporalidades de uma sociedade), não se constituem em camisas de força monodirecionais. Há o universo complexo e algo autônomo das apropriações sociais. Ilustrativamente, sabe-se que a circunstância de Marco Polo ter trazido o espaguete da China não significou que, na Itália, fosse ele consumido com pauzinhos.6

2. Da oralidade à cultura escrita manuscrita e impressa

Nas sociedades de oralidade primária, nas quais não existe escrita, não apenas a comunicação cotidiana é oral (como ainda hoje), mas também a própria gestão da memória social é toda ela oral. A memória é assim algo vivo, encarnado na lembrança das pessoas. O desenvolvimento da capacidade de memorização tende a ser algo valorizado e é comum encontrarmos um culto a essa habilidade divina (como a deusa Mnemosina na mitologia grega, mãe das musas). Apesar da impressionante capacidade de memorização que o homem é capaz de desenvolver, a transmissão oral está longe de ser um equipamento ideal para o armazenamento e a recuperação de informações. Uma das características da memória humana é justamente a tendência a enquadrar as informações em esquemas preestabelecidos, de modo a distorcer o conteúdo das mesmas. Não se trata de mentira ou desonestidade, mas sim do funcionamento próprio da memória humana.7

Ressaltando as tecnologias intelectuais características dessas sociedades, LÉVY descreve a oralidade primária como uma dinâmica cronológica sem referencial nem vestígio, marcada pela imediatez, na qual os par-ceiros da comunicação encontram-se mergulhados nas mesmas circunstâncias, a memória está encarnada em pessoas vivas e as formas canônicas de saber manifestam-se na narrativa, no canto e no rito.8

Nesse contexto, no concernente à dinâmica social do direito, o antropólogo jurídico ASSIER-ANDRIEU sublinha que:

A princípio o direito é declamado, é cantado. “Antes dos doutores, os rapsodos”, escreveu um jurista romântico do século XIX, cansado do racionalismo exacerbado de sua época, do culto da lei e da adoração dos códigos. “O maior dos poetas é ainda o primeiro dos jurisconsultos”, acrescenta ele, sem refrear seu próprio lirismo. Antes de ser escrito, o direito é recitado. Apresenta-se sob a forma de máximas, de provérvios ou de adágios elaborados de modo que fiquem gravados nas memórias, que passem facilmente “de boca em boca, de século em século”, que expressem a medida das coisas, sendo construídos como o compasso musical de uma expressão verbal. O ritmo, a assonância, a aliteração, a harmonia imitativa, a concordância fônica proporcionam às sentenças um caráter normativo antes mesmo de se considerar o sentido das palavras que a compõem.9

Nas sociedades de oralidade primária também há modelos consolidados de comportamento que tendem a ser seguidos pelos indivíduos pertencentes ao grupamento social. Tais modelos habituais de agir é o que se considera como o justo. A adesão aos costumes da comunidade exprime a relação dos indivíduos com ela e demonstra o seu pertencimento ao grupamento social e agudiza seu senso de dever.10 Nesses sistemas ditos “arcaicos”, há, em geral, uma grande severidade na punição dos comportamentos anti-sociais, e, por outro lado, há uma acentuada tendência a procurar a conciliação para resolver os conflitos internos ao grupo; a resolução dos litígios está menos baseada na aplicação coativa de regras pré-estabelecidas do que na tentativa de obtenção de um acordo entre os envolvidos, pela

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via das concessões recíprocas; donde a importância das negociações que podem ser duradouras, e a ausência da idéia de autoridade de caso julgado.11 No entanto, o recurso a um conciliador ou a um árbitro, em suma, a um terceiro com algum prestígio e legitimação social, é já um esboço da forma hoje tida como “civilizada” de resolução dos conflitos; já se pode enxergar aqui uma proto-jurisdição.

Esse início de institucionalização atinge seu ápice, de certa forma, com o fenômeno processual. CANNATA, por exemplo, concebe que somente se pode reconhecer o surgimento de um ordenamento jurídico num grupamento social determinado com a instituição do processo, ou seja, com o estabelecimento de órgãos e procedimentos destinados a compor de modo vinculante as controvérsias, e que são necessários à manutenção da estabilidade e da própria existência da coletividade, para isso pouco importando o modo como esses órgãos operam, seja julgando por si próprios ou precisando os quesitos para outros organismos julgarem (como no modelo clássico romano), seja fundando a decisão final nos costumes, nas leis, em princípios de equidade ou em outras razões, seja investigando os fatos relevantes por meios probatórios ou por meio de oráculos ou ordálias. Segundo o autor, o que importa é que, qualquer que seja o momento histórico, é por meio do estudo do processo que se pode extrair as indicações mais precisas para o estabelecimento de quais sejam os elementos a que certa coletividade reduz o direito; quais as relações entre o coletivo e o individual, entre o público e o privado; e quais os esforços de emancipação que tiveram um sucesso autêntico, consistente na modificação da ordem jurídica, aferível na evolução processual.12

Segundo STEIN, o sistema jurídico moderno se inicia com o advento de uma qualquer forma de autoridade central, cujo surgimento faz com que as relações entre esta e os membros ordinários da comunidade tornem-se mais formais e impessoais do que eram as relações entre o povo e os chefes locais não oficiais. As cortes instituídas para tratar as controvérsias, de início seguiram os costumes transmitidos por tradição oral desde tempos imemoráveis. Na sua essência, tais usos serão conhecidos de todos, mas a sua exata transmissão não se dará com precisão. Antes da existência das cortes, como já visto, o procedimento informal tendia a reconciliar as partes na perspectiva de se alinhavar um compromisso aceitável por ambas. Em tais circunstâncias, é certo que, também como já visto, as normas tradicionais não podem necessariamente ser aplicadas com rigidez. No modelo clássico de legal process, uma corte instituída pela autoridade central, que tem em si o peso da comunidade, não tem o dever de reconciliar as partes, e, em maior ou menor medida, pode impor-lhes uma decisão e aplicá-la coativamente. Este tipo de decisão demanda uma aplicação mais rígida das normas, se comparada com os métodos informais de resolução de disputas. Em consequência, as regras tendem a ser definidas com maior precisão e, sempre que possível, anteriormente ao surgimento da disputa. As normas, ao revés de fazerem parte da geral tradição oral do povo, vêm expressas em formas verbais acuradamente escolhidas, e freqüentemente impressas ou inscritas em um meio material. A corte tende a definir a questão de modo mais preciso e limitado enquanto não o permitia os processos informais.13

A...

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