O processo eletrônico: a influência do sistema e de suas conexões no direito processual

AutorCláudio Brandão
Páginas87-99

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1. Introdução

Este não é um trabalho de filosofia, muito mais pela limitação intelectual do seu autor do que pelo desafio da matéria. Analisar os desafios de uma Sociedade Digital e como as conexões que, a partir dela, são estabelecidas, enfeixando a todos nós na multidisciplinari-dade do conhecimento e, a par disso, manter e perceber a evolução das estruturas do Direito – também ele, em si, uma tecnologia desenvolvida pelo Homem com as mais variadas facetas (jusnaturalismo, positivismo, pós-positivismo), consiste, seguramente, em terreno fértil para a análise dos filósofos de todas as áreas do saber.

Mesmo assim, apesar da confessada limitação pessoal e da declaração preambular de que o trabalho não é filosófico, penso que a filosofia pode ser um ponto inicial desta breve caminhada, para tratarmos de alguns aspectos sobre como as conexões – estabelecidas em su-porte eletrônico – podem e vão influenciar o processo judicial. Por isso, podemos começar pela secular ideia do homem como um animal político, que foi introduzida nas lições de Aristóteles. Afinal, é esta qualidade política que nos impulsiona ao relacionamento de pessoas e coisas (e o Direito é uma dessas coisas que conectam ho-mens entre si), sempre voltada ao alcance de objetivos que, ao fim, venham atender as nossas necessidades. Não há uma ordem hierárquica nas junções, apenas e tão somente os propósitos visíveis e conhecidos e outros mais ocultos, que se verificam por observação, todos eles podendo evoluir para utilidades que, a princípio, não haviam sido pensadas especificamente. Quem poderia imaginar, por exemplo, ao tempo do lançamento do telefone celular que, no futuro, as comunicações por smartphones se dariam mais pela forma textual do que pela vocalização das ligações telefônicas?

Nesta acelerada sociedade interligada por meio da tecnologia digital, até que ponto a evolução de nossos relacionamentos humanos e de objetos podem influenciar o processo como instrumento de realização do Direito? Como deve ser compreendido o fenômeno da conexão entre os dados internalizados no processo com o ambiente virtual no qual está inserido? Que limites haveria para a conexão do processo com as informações globalizadas na rede mundial de computadores? O conhecimento estabelecido em razão das conexões teria o poder de alterar o significado da jurisdição? O uso do conhecimento encontrado na internet poderia ser aproveitado por outras ferramentas tecnológicas na solução de conflitos? As garantias constitucionais do processo mantêm, ampliam ou sofrem redução na força sólida e concreta de seus fundamentos?

Este modesto estudo, por certo, não tem o propósito de encontrar respostas e, menos ainda, as definitivas. O que se quer, aqui, é apenas colaborar para evidenciar que, no ambiente da Justiça, vivemos um tempo de necessários e inadiáveis questionamentos. Algumas perguntas demandam a ampliação de nossos estudos jurídicos e, também ali, há necessidade da conexão de nossos conhecimentos com outras áreas do

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saber humano. Para outras, a concepção do Direito pode ser útil na compreensão dos limites das inovações tecnológicas.

2. Antes, as conexões humanas no mundo real

O filósofo Aristóteles afirmou que o homem é um animal político, ou seja, esta era uma condição sua, inata, que o conduzia a formação de relações sociais e, a partir dessas conexões, à construção de uma sociedade, de um Estado e de um Sistema de Governo, capaz de concentrar o poder político.

Em obra organizada por Bobbio, Matteucci e Pasquino, extrai-se:

“Derivado do adjetivo originado de polis (politikós), que significa que tudo o que se refere à cidade e, consequentemente, o que é urbano, civil, público, e até mesmo sociável e social, o termo Política se expandiu graças à influência da grande obra de Aristóteles, intitulada Política, que deve ser considerada como o primeiro Tratado sobre a natureza, funções e divisão do Estado, e sobre as várias formas de Governo, com a significação mais comum de arte ou ciência do Governo, isto é, de reflexão, não importa se com intenções meramente descritivas ou também normativas, dois aspectos dificilmente discrimináveis, sobre as coisas da cidade.1

Nesta mesma linha, o pensamento do historiador Francis Fukuyama, evidenciando o elo fundamental entre a compreensão do estado da natureza e a compreensão da democracia liberal moderna:

“Na tradição filosófica ocidental, as discussões sobre o ‘estado da natureza’ têm sido vitais para a compreensão de justiça e da ordem política que formam a base da democracia liberal moderna. A filosofia política clássica distinguia entre natureza e convenção, ou lei; Platão e Aristóteles afirmavam que uma cidade justa tinha de existir em conformidade com a natureza permanente do homem e não com aquilo que era efêmero e mutável. Thomas Hobbes, John Locke e Jean-Jacques Rousseau desenvolveram esta distinção e escreveram tratados sobre a questão do estado da natureza, buscando nela fundamentar os direitos políticos. Descrever o estado da natureza era um meio e uma metáfora para a discussão da natureza humana, um exercício que estabeleceria uma hierarquia dos bens humanos que a sociedade política pretendia promover.

Aristóteles discordava de Hobbes, Locke e Rousseau em um aspecto crítico. Afirmava que os seres humanos são políticos por natureza e que suas capacidades naturais os levam a florescer em sociedade. Os três filósofos modernos, por sua vez, afirmavam que os seres humanos não eram naturalmente sociais, mas a sociedade é uma espécie de artifício que permite que as pessoas consigam aquilo que não podem conseguir sozinhas.2

Seja pela ótica individualista humana, que o levaria a potencializar sua capacidade mediante a cooperação, dando origem ao Estado como instituição capaz de lhe assegurar a necessária proteção, especialmente à vida e aos bens que viria a possuir (ou seja, aos direitos fundamentais, mediante o qual o Homem se protege também em relação ao próprio Estado), quer sob a ótica de que o comportamento social do Homem antecede à criação do Estado e seria uma condição inata, a conclusão é uma só: o estabelecimento de conexões é uma condição essencial para a existência e desenvolvimento da humanidade e de sua civilização.

Fico, no particular, com o pensamento que vê a conexão humana como uma ferramenta própria da natureza humana:

“Aristóteles estava mais certo do que os primeiros teóricos liberais modernos quando disse que o homem era político por natureza. Assim, embora uma compreensão individualista da motivação humana possa ajudar a explicar as atividades dos comerciantes de commodities e dos ativistas libertários na América de nossos dias, essa não é a maneira mais útil para compreender a evolução inicial da política humana. Tudo que a biologia e a antropologia modernas nos dizem sobre o estado da natureza sugere o oposto: nunca houve, na evolução humana, um período em que os seres humanos existiam como indivíduos isolados; os primatas precur-

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sores da espécie humana já haviam desenvolvido extensas habilidades sociais e políticas; e o cérebro humano é dotado de faculdades que promovem muitas formas de cooperação social. O estado da natureza podia ser caracterizado como um estado de guerra, uma vez que a violência era endêmica, mas esta era perpetrada menos por indivíduos e mais por grupos fortemente unidos. O homem não entrou na sociedade e na vida política em consequência de uma decisão consciente e racional. A organização comunal veio-lhe naturalmente, embora as maneiras específicas pelas quais ele coopera sejam influenciadas pelo ambiente, pelas ideias e pela cultura”3.

Neste mesmo sentido, a lição de Nicholas Fearn:

“O filósofo inglês Bertrand Russell (1872 – 1970) escreveu: ‘Desde o início do século XVII, quase todo avanço intelectual sério teve de começar como um ataque a alguma doutrina aristotélica’. No entanto, ninguém menos que Charles Darwin reconheceu que foi Aristóteles quem deu a maior contribuição de todas à compreensão da biologia. Lamentavelmente, os métodos que o filósofo expôs não foram empregados por seus herdeiros. Admitindo, em Da geração dos animais, que não sabia como as abelhas se desenvolviam até a maturidade, Aristóteles escreveu:

Os fatos ainda não foram suficientemente estabelecidos. Se jamais vierem a ser, o crédito deverá ser dado não às teorias mas à observação, e às teorias somente na medida em que elas forem confirmadas pelos fatos observados”4.

Não obstante a sua natureza política, que o movimenta para a construção de uma rede em sociedade, Estados, instituições e regimes de governo, a face corporativa da humanidade contrasta com as características individuais do homem e é nesta simbiose que se dá o desenvolvimento da ordem política ao longo da História: guerras, golpes de Estado, democratização, globalização e terrorismo são algumas amostras do que podem produzir nossas conexões e suas rupturas no mundo real.

Mas, o quanto disso poderemos transportar para um mundo virtual, com conexões e redes eletrônicas, em um ambiente aparentemente incontrolável, como tem sido a rede mundial de computadores?

Apesar do Homem transportar para o mundo virtual, a mesma qualidade natural para as conexões e a construção de redes, com a maximização da inteligência e de aproveitamento dos recursos, o ambiente não tem sido propício à geração de um poder político similar ao que encontramos no mundo real. Não há desenvolvimento de governos ou de instituições no ambiente virtual, até porque não parecia haver, pelo menos até aqui, um risco concreto e iminente às nossas existências físicas, aí inclusas as nossas próprias identidades.

Contudo, com o avanço das redes e a demonstração da existência...

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