Direito, tecnologia e ideologia

AutorRodrigo Leme Freitas
Ocupação do AutorAdvogado
Páginas42-83
DIREITO, TECNOLOGIA E IDEOLOGIA
Rodrigo Leme Freitas1
Sumário: Introdução. 1. Tecnologia e ideologia. 1.1. Cibernética
ou racionalização tecnológica. 1.2. Internet e ideologia: do entusias-
mo à ressaca. 1.3. Sociedade da informação e os perigos da “sociolo-
gia quantitativa”. 2. Interfaces entre direito e tecnologia. 2.1. Direito,
poder e o determinismo tecnológico da revolução industrial 4.0. 2.2.
Direito e inteligência articial. Considerações nais. Referências.
Introdução
Este breve artigo tem por objetivo desvelar algumas nuan-
ces, nem sempre óbvias ou intuitivas, que perpassam a relação entre
Direito e tecnologia, de um ponto de vista macro (e crítico). Para
esse m, como já denotado no título do artigo, buscar-se-á relacio-
nar ambos os temas com as construções que advém da própria no-
ção de ideologia, estrutura cujo objetivo recai, justamente, na tarefa
de buscar compreender determinados fenômenos de modo mais
profundo e imbrincado, valendo-se, como lhe é característico2 , do
ato de desnudar certas contradições e paradoxos que não são expos-
tos a priori, seja intencionalmente ou em decorrência de um certo
entorpecimento que a totalização (ou o vazio) que os conceitos nos
geram, nesse caso, daqueles que integram o tema em destaque.
Parte-se do pressuposto, sendo importante esse corte já em
nível introdutório, que os temas que se relacionam com a tecnolo-
1
Advogado. Especialista em Processo Civil e Mestre em Direitos Difusos e Coleti-
vos ambos pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Doutor
em Direito Internacional da Propriedade Intelectual pela Faculdade de Direito da
Universidade de São Paulo (USP). Membro Coordenador do grupo de estudos GE-
DE-DIMEC (Direito, Economia e Direito Internacional do Mercado de Capitais) da
Universidade de São Paulo (USP). Executivo em empresa multinacional de tecnolo-
gia.
2
Leandro Konder, em referência a Marilena Chaui: A distorção ideológica não de-
corre do fato de a ideologia ser uma aparência, e sim do fato de ela estar mobilizada
para “neutralizar a história, abolir as diferenças, ocultar as contradições e desarmar
toda tentativa de interrogação”. (KONDER, Leandro. A questão da ideologia. São
Paulo: Companhia das Letras, 2002. p. 144)
RODRIGO LEME FREITAS • 43
gia, e não são poucos atualmente, usufruem de um certo prestígio
da opinião pública internacional. Em um tempo histórico no qual
legitimações estruturais são questionadas3 (sobretudo no mundo
ocidental), podendo citar as democracias liberais, os parlamentos,
os políticos, o Estado, a globalização, algumas empresas, etc, a tec-
nologia, a seu turno, ao que tudo indica, não obstante a sua imagem
arranhada decorrente das fake news (imagem essa traduzida na -
gura da internet), ainda detém uma espécie de robustez discursiva
que demonstra poder ser ela ao menos parte da solução (ao que,
efetivamente, não se sabe muito bem; mas ela sempre descobre, e em
nível global).
Isso acontece por uma innidade de razões. Aqui, e no de-
correr do trabalho, serão exploradas apenas algumas reexões que
podem levar a isso. Em primeiro lugar, o fato de o capital internacio-
nal circundar, de modo intenso, as grandes empresas multinacionais
de tecnologia não é uma mera coincidência. Poder de capital signi-
ca, em grande medida, poder de também fazer valer a sua narrati-
va, por diversos instrumentos. Esse fato se soma a uma construção
de ordem sociológica que deságua no atual estado de coisas. Temos
ainda, nesse contexto, a autoridade da ciência; as reexões sobre ra-
cionalização que ganham corpo com Weber4 , mas que depois, ainda
que indiretamente, são incorporadas pelos avanços dos estudos da
cibernética; e por último, mas não menos importante, o próprio sis-
tema capitalista que se vale da tecnologia como forma de obter eci-
ência de produção (e lucro), plataforma ínsita de sua base utilitarista
e pragmatista.
A questão central é que esse “poder de atração5 da tecno-
3
Para citar apenas alguns autores e obras: Eric Hobsbawn (Globalização, Democra-
cia e Terrorismo); Joseph Stiglitz (Globalization and its Discontents); Istvan Mesza-
ros (entre outros, Para Além do Capital); Samir Amin (A Implosão do Capitalismo
Contemporâneo); Manuel Castells (Ruptura: A Crise da Democracia Liberal); entre
inúmeros outros, ou até mesmo nos jornais (populismos; radicalismo; polarizações;
precarização do trabalho; etc).
4
WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo: Martin
Claret, 2018.
5
E talvez parte da resposta a essa conjuntura seja a suposta objetividade ou neu-
tralidade das ciências naturais: “Uma das ilusões mais resistentes em relação às ci-
ências naturais refere-se a suas pretensas “objetividade” e “neutralidade, que lhes
são atribuídas em virtude de seu caráter experimental e instrumental, em contraste
com o caráter socialmente mais envolvido e comprometido das “ciências humanas”.
44 • DIREITO, TECNOLOGIA E IDEOLOGIA: CAPÍTULO 2
logia, contudo, tem seus perigos. Por vezes, ele obscurece as reais
relações que se desenvolvem ao redor da tecnologia, que por isso
mesmo, aliado aos breves pontos explorados acima, envolve o tema
em um manto ideológico que elimina qualquer tipo de capacidade
de encaixá-la dentro de uma perspectiva mais ampla de sociedade,
considerando-a apenas como mais um elemento de formação, e não
como o elemento determinante. Cria-se, com isso, uma série de “re-
alidades” cuja vericação demanda, no caso especíco da tecnolo-
gia, uma tarefa redobrada de desvelamento com ns de real com-
preensão não somente do seu conjunto formador, mas, sobretudo,
dos seus impactos na sociedade em geral e, nesse caso, no Direito
em particular.
Em outras palavras, e buscando ser mais direto, determina-
das expressões que traduzem a tal “realidade” tecnológica de hoje,
como Sociedade da Informação, Revolução Industrial 4.0, Internet
das coisas, Big Data, Economia Compartilhada, etc, quando não se
resumem a meros conceitos vazios (potencializados por instrumen-
tos de marketing ), traduzem-se como sendo ora uma supervalori-
zação do impacto real de um aspecto técnico qualquer, ora como
um conjunto de elementos que estabelece uma espécie de “sociologia
quantitativa, baseando-se nas reexões acerca de modicações so-
ciais conjunturais sucedidas por análises que levam em considera-
ção, primordialmente, um aspecto de grandeza, ao invés de, propria-
mente, caminhar em direção à uma análise material, qualitativa e
histórica a respeito de como a questão da tecnologia, de fato, ingres-
sa no conjunto complexo dos elementos que formam o caldo social.
Essa conjuntura impacta o Direito de diferentes formas. Por
um lado, do ponto de vista de política pública e (ou) do desenvolvi-
mento do campo legislativo, as ideologias que atualmente acompa-
nham o espaço da técnica invariavelmente inuenciam a compreen-
são do senso comum, exercendo um movimento pendular que ora
busca na lei a legitimação da coerção em prol do desenvolvimento
tecnológico; ora a enxerga como um obstáculo a “uidez” caracte-
rística da tecnologia, considerando-a como um empecilho aos negó-
cios tecnológicos que, ao m e ao cabo, como dizem alguns de seus
Entretanto, um exame mais cuidadoso mostra que estas objetividade e neutralidade
não passam de lenda, pois, na realidade, o que ocorre é o oposto. (MESZAROS,
István. O poder da ideologia. Tradução Magda Lopes e Paulo Cezar Castanheira.
São Paulo: Boitempo, 2012. p. 283)

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