A evolução dos modelos contratuais

AutorJosé Luiz de Moura Faleiros Júnior
Páginas1-35
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A EVOLUÇÃO
DOS MODELOS CONTRATUAIS
O estudo do direito dos contratos, importante temática do direito privado,
tem origens que remontam às próprias bases e formulações essenciais do sistema
jurídico, com inf‌luxos extraídos dos gregos e dos romanos, indo de Aristóteles a São
Tomás de Aquino, sob diferentes facetas1, mas sempre acompanhando a evolução
da civilização, até mesmo em períodos autoritários.2
O contrato pode ser visualizado sob uma faceta objetiva, materializada a
partir de uma operação de troca, ou sob ângulo subjetivo, no qual impera o con-
senso que conduz ao acordo de vontades, embora seja certo que cada época tenha
mecanismos próprios para a sua tutela.3 Fato é que, à luz da primeira concepção,
a ideia de justiça comutativa4 – apontada pelos já mencionados Aristóteles5 e
São Tomás de Aquino – ganha especial relevância no tocante à interdependência
prestacional, que “liga indissoluvelmente as prestações contratuais de modo que
cada uma é causa da outra”.6
Ganha contornos especiais a preocupação com a inserção de novos valores
às inter-relações emanadas dos contratos de base grega, a partir de formulações
1. GORDLEY, James. The philosophical origins of modern contract doctrine. Oxford: Clarendon Press, 1991,
p. 10. Comenta: “Aristotle had discussed virtue. The late scholastics built their contract doctrines around
three of the virtues he described: promisekeeping, commutative justice, and liberality. In doing so, they
drew on Thomas, who had taken the f‌irst steps towards synthesis by showing how Aristotle’s principles
could be used to consider not only virtue, but moral law. Thomas discussed the requirements for a promise
to be binding. He observed that, by promising, a party could perform either an act of liberality or an act
of commutative justice. He explained how a contract could violate the equality that commutative justice
requires. He showed how particular contracts, such as sale and lease, could be def‌ined by classifying them
as acts of commutative justice or liberality, and by identifying an end that each contract serves. He suggested
a method for inferring from this def‌inition the various obligations of the contracting parties”.
2. CARBONIER, Jean. Droit et passion du droit. Paris: Flammarion, 1996, p. 173.
3. Nesse sentido, conf‌ira-se: HESPANHA, António Manuel. Panorama histórico da cultura jurídica européia.
2. ed. Lisboa: Publicações Europa-América, 1998, p. 43.
4. DRESCH, Rafael de Freitas Valle. Fundamentos do direito privado: uma teoria da justiça e da dignidade
humana. São Paulo: Atlas, 2013, p. 20.
5. Diz o autor: “Os termos de perda e ganho nesses casos são emprestados das operações de permuta vo-
luntária. Nesse contexto, ter mais do que lhe cabe é chamado de ganho e ter menos do que aquilo que se
tinha no início é chamado de perda, como, por exemplo, no comprar e vender e todas as demais transações
que recebem a imunidade da lei”. (ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradução de Edson Bini. São Paulo:
Edipro, 2002, L. V, c. 4.)
6. MORAES, Maria Celina Bodin de. A causa dos contratos. Revista Trimestral de Direito Civil, Rio de Janeiro:
Padma, n. 21, jan./mar. 2005, p. 112.
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VESTING EMPRESARIAL • José Luiz de Moura FaLeiros Júnior
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conceituais romanas que visavam à delimitação de um conceito de justiça – como
a dicotomia de ius e lex, dos romanos, ou a delimitação semântica do directum, no
período medieval.7
A evolução do pensamento jurídico, no período, impõe releituras do agir hu-
mano, no afã de se apontar soluções sistematizadas para a formatação de ancoragens
jurídicas imiscuídas à ideia de justiça:
No âmbito da ação humana é que se estuda a lei: quais são os fatores externos ao homem que
o impelem a agir? A resposta de Tomás é de que para o bem o homem é movido por Deus.
E Deus o move de duas maneiras: ou ensinando ou ajudando. O movimento pelo ensino
é fruto da lei. Ora, a lei, tendendo a ensinar, deverá ter algo a ver com a razão, pois para
ensinar é preciso que o ensinamento – que também se chama preceito – seja compreensível,
transmissível e objetivo.8
Se o direito das obrigações sempre assumiu feições estáticas, estando menos
suscetível às alterações provocadas pelo tempo e pela própria evolução do pensa-
mento humano, a disciplina dos contratos encontrou novas nuances a cada momento
histórico do pensamento moderno, na medida em que “por detrás da continuidade
aparente na superfície das palavras está escondida uma descontinuidade radical na
profundidade de sentido”.9
Assim, superando a ideia de abundância que afastaria do homem a necessidade
de contratar10, a doutrina aponta para a importância da compreensão de conceitos
a partir da língua latina11, que propiciou a delimitação de conceitos e a existência
de verdadeiros paradigmas.12
7. VILLEY, Michel. A formação do pensamento jurídico moderno. Tradução de Stéphanes Rial. São Paulo: Martins
Fontes, 2003, p. 73.
8. LOPES, José Reinaldo de Lima. As palavras e a lei: direito, ordem e justiça na história do pensamento
jurídico moderno. São Paulo: Editora 34, 2004, p. 89.
9. HESPANHA, António Manuel. Panorama histórico da cultura jurídica européia. 2. ed. Lisboa: Publicações
Europa-América, 1998, p. 19.
10. Eis o comentário de David Hume: “Let us suppose that nature has bestowed on the human race such
profuse abundance of all external conveniences, that, without any uncertainty in the event, without
any care or industry on our part, every individual f‌inds himself fully provided with whatever his most
voracious appetites can want, or luxurious imagination wish or desire. (…) In such a happy state (…)
the cautious, jealous virtue of justice would never once have been dreamed of”. (HUME, David. An
enquiry concerning the principles of morals. Editado por Tom L. Beauchamp. Oxford: Clarendon Press,
2006, p. 3.)
11. CARLINI, Paola. Contratto e patto nel diritto medievale e moderno. Digesto delle Discipline Privatistiche
– Sezione Civile. Turim: Utet, v. IV, 1998, p. 78. Acrescenta a autora: “L’attrazione esercitata dall’evoluto
modello giuridico romanistico, unita al primato della lingua latina ed alla assenza di construzioni teoriche
alternative, ha infatti portato ad una generalizzazione, nel corso della storia, dell’uso speculativo delle
categorie logiche e dell’uso pratico della terminologia contrattualistica romano-giustinianea, talora senza
ripondenza con gli istituti originarii”.
12. KUHN, Thomas S. A estrutura das revoluções científ‌icas. Tradução de Beatriz Vianna Boeira e Nelson Boeira.
9. ed. São Paulo: Perspectiva, 2005, p. 13.
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1 • A EVOLuÇÃO DOS mODELOS CONTRATuAIS
Tem-se, no período romano, os conceitos de ius e lex para Gaio13, sua incor-
poração ao Corpus de Justiniano14, a evolução ao período medieval com a distinção
entre direito humano e direito divino15, de Graciano16, as distinções entre o direito
humano e o direito eclesiástico, com forte inf‌luência do pensamento de ingleses como
Glanville e Bracton – em período fortemente marcado pelo advento da Summa The-
ologica17 de São Tomás de Aquino e pelos pensamentos de Bártolo de Sassoferrato.18
A tradição anglo-saxã se desenvolve sobre a premissa de que “a principal
preocupação do direito dos contratos está, então, nas trocas” 19, o que evidencia
uma preocupação muito grande com o elemento objetivo, deixando a vontade em
segundo plano.
Chega-se à modernidade, e os pensamentos de autores como Donellus (Hugue
Doneau, 1527-1591), Cujácio (Jacques Cujas, 1522-1590), Luís de Molina (1535-
1600), Francisco Suárez (1548-1617), Grócio (Grotius, 1583-1645) e Samuel
Pufendorf (1632-1694)20 conduzem à reformulação do viés comutativo clássico,
propiciando novas leituras a partir da revalorização de institutos seculares do direito
privado, e a própria ideia de sistema jurídico se amplia, modif‌icando a disciplina dos
contratos a partir de suas funções e do próprio valor de justiça do qual se desdobra
a noção de ‘justiça contratual’21, que se torna “inconclusa, pois são várias as possi-
bilidades conceituais, lógicas e f‌ilosóf‌icas, que se propõem a explicá-lo”.22
José de Oliveira Ascensão assim se posiciona:
A dogmática tende a reduzir à unidade o sistema jurídico: ou melhor, procura apresentar o que
há de relevante no dado jurídico numa unidade, que corresponde à unidade existente na pró-
pria ordem normativa da sociedade. Para isso aproximará o que é semelhante, afastará o que é
divergente; ordenará em institutos preceitos singulares; determinará as categorias (pessoas sin-
gulares, direito subjetivo...) que travejam e iluminam o corpo do direito; formulará os conceitos
13. GORDLEY, James. The philosophical origins of modern contract doctrine. Oxford: Clarendon Press, 1991, p.
31. Diz o autor: “According to Gaius, obligations arise by contract (ex contractu), by delict (ex delictu),
or on the analogy of contract and delict (quasi ex contractu and quasi ex delictu)”.
14. TUCK, Richard. Natural rights theories: their origin and development. Cambridge: Cambridge University
Press, 1998, p. 12-13.
15. Para uma compreensão mais detalhada sobre a subdivisão entre ius naturale, ius gentium e ius civile, con-
f‌ira-se: WEINREB, Lloyd L. Natural law and justice. Cambridge: Harvard University Press, 1987, passim.
16. LOPES, José Reinaldo de Lima. As palavras e a lei: direito, ordem e justiça na história do pensamento
jurídico moderno. São Paulo: Editora 34, 2004, p. 80-81.
17. Para maiores detalhes: DRESCH, Rafael de Freitas Valle. Fundamentos do direito privado: uma teoria da
justiça e da dignidade humana. São Paulo: Atlas, 2013, p. 24-31.
18. CANNING, Joseph. A history of medieval political thought 300-1450. Londres: Routledge, 1996, p. 162.
19. FARNSWORTH, Edward Allan. Contracts. 4. ed. Nova York: Aspen Publishers, 2004, p. 4, tradução livre.
No original: “The main concern of the law of contracts, then, is with exchanges”.
20. LOPES, José Reinaldo de Lima. As palavras e a lei: direito, ordem e justiça na história do pensamento
jurídico moderno. São Paulo: Editora 34, 2004, p. 96-115.
21. REZZÓNICO, Juan Carlos. Principios fundamentales de los contratos. Buenos Aires: Astrea, 1999, p. 282.
22. NALIN, Paulo Roberto Ribeiro. Do contrato: conceito pós-moderno (em busca de sua formulação na pers-
pectiva civil-constitucional). 2. ed. Curitiba: Juruá, 2008, p. 54.
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