Expansão do direito penal contemporâneo

AutorFillipe Azevedo Rodrigues
Ocupação do AutorMestre em Direito Constitucional pela UFRN
Páginas137-205
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EXPANSÃO DO DIREITO PENAL
CONTEMPORÂNEO
4.1 IDEIAS PENAIS, MOVIMENTOS HISTÓRICOS DO PRO-
CESSO DE CRIMINALIZAÇÃO E ESCOLAS PENAIS
A evolução histórica do Direito Penal – não vinculada ape-
nas a sua expressão dogmática, característica dos tempos recentes
– condiz com os processos de desenvolvimento social, cultural e
econômico das sociedades humanas. As alterações nesses cenários
promoveram retrações e expansões do impacto social das normas
penais, ora mais severas ora mais flexíveis.
As estruturas filosóficas que sustentaram cada fase pontual
desse processo histórico do Direito Penal servem, outrossim, de es-
tigma para a compreensão de como se davam as relações humanas
em dado contexto social.
O estudo historicista desses estágios da humanidade cul-
minou na segmentação temporal de vários Direitos Penais,1 cujas
identidades, conforme antes mencionado, residem nos específicos
reflexos de cada período histórico-cultural na construção do regime
punitivo correspondente. Trata-se, pois, da relação de causalidade
sociedade-direito.
Assim, pode-se aferir que a seleção das ideias existentes em
determinada sociedade repercute na formação do arcabouço norma-
tivo-valorativo do Direito Penal então vigente.
1 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal. V. 1, 17 ed. São
Paulo: Saraiva, 2012, p. 643.
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ANÁLISE ECONÔMICA DA EXPANSÃO DO DIREITO PENAL
Nessa linha, Edgard Magalhães Noronha discorre sobre o assun-
to, assumindo o conceito de Ideias Penais para proceder à análise da
evolução histórica do Direito Penal, utilizando-se da pena como critério
para a fixação de quatro grandes fases: (i) vingança privada; (ii) vingança
divina; (iii) vingança públi ca; (iv) período humanitário (ou humanista).2
Vingança privada era a agressão como regra. Tratava-se da rea-
ção pessoal à ação como critério punitivo, sem interferência comuni-
tária. A punição era questão privada, a ser resolvida entre agressor e
agredido. Por consequência, como é natural ainda nos dias de hoje,
o revide pessoal não guardava preocupações em ser proporcional às
agressões, o que ensejava intermináveis conflitos entre famílias, clãs
e até entre organizações sociais ainda mais complexas.
A migração do contexto de vingança privada para a vingança
divina se deu em função do avanço civilizacional da humanidade
antiga em torno da consolidação de sociedades teocêntricas. Aqui, o
poder social se apropriou da esfera penal, antes relegada exclusiva-
mente às relações privadas. O criminoso, ao delinquir, atentava con-
tra os deuses e a punição servia de resposta dada pelo corpo social à
divindade. A reação punitiva proporcional ao grau de ofensividade
do delito tem sua origem neste período, com a construção normati-
va do talião, presente no Código de Hamurábi e em diversas outras
legislações da época.
Na fase da vingança pública, permaneceram comuns as penas se-
veras e cruéis com a finalidade de máximo controle social e preservação
do poder na mão do soberano. Entretanto, houve uma gradual distan-
ciação da jurisdição penal com relação à religião. Surgem as ideias de
culpabilidade e do caráter coercitivo da pena em prol da defesa social.
Apesar das inovações trazidas no período, não se extirparam do seio da
sociedade manifestações de vingança divina e, até mesmo, de vingança
privada. A manutenção desta ocorreu principalmente devido ao fato de
que tanto os romanos como os gregos dividiam os crimes em dois gran-
des grupos: delitos públicos e privados. A repressão estatal resumia-se,
2 NORONHA. Edgard Magalhães. Direito penal. V. 1, 31 ed. São Paulo:
Editora Saraiva, 1995, p. 20-21.
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EXPANSÃO DO DIREITO PENAL CONTEMPORÂNEO
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portanto, apenas aos delitos considerados públicos, ao passo que cabia à
vingança privada a busca pela punição nos demais casos. Traços da fase
da vingança pública estiveram presentes na sociedade ocidental até os
regimes absolutistas da Idade Moderna.
Evidente que o termo vingança, comum a todos os períodos
antes mencionados, é utilizado em razão da construção do Direito
Penal com o fim exclusivo de repressão. A pena, nesses tempos, não
guardava qualquer caráter pedagógico ou de reinserção do indivíduo
na sociedade, haja vista que o delito era caminho sem volta rumo à
absoluta exclusão social.
Por esses motivos, eram comuns as penas infamantes, de mor-
te e os processos inquisitórios secretos,3 cujo principal meio de busca
da suposta verdade dos fatos era a tortura do inquirido.4
Cesar Roberto Bitencourt, a respeito do assunto, trata a época
do Direito Penal das vinganças de época dos suplícios, na qual o sofri-
mento do suspeito da prática delituosa perdurava da fase processual
à condenação e aplicação da pena. Era comum, portanto, o processo
ser a fase de tortura e a pena a neutralização do condenado.5
3 Na época da concepção política da justiça penal, segundo Michel Foucault, “O
corpo supliciado se insere em primeiro lugar no cerimonial judiciário que deve
trazer à lume a verdade do crime”. Além disso, Foucault realça que, na maior
parte dos países europeus, incluindo aí a França, apresentando como exceção a
Inglaterra, o processo, até a sentença, era secreto. (FOUCAULT, Michel. Vigia r
e punir. Trad. de Raquel Ramalhete. Petrópolis: Editora Vozes, 1999, p. 35).
4 “O corpo do homem, que era o objeto da pena, além de se manifestar como
o responsável pelos atos criminosos, transforma-se, de igual forma, no obje-
to do processo, devendo merecer provações para esclarecer o crime. (SILVA
JUNIOR, Walter Nunes da. O direito penal e a criminalidade. In: Revista do
curso de direito da ufrn, v. 1, n. 1, p. 121-139, 1996, p. 3)
5 “Recorria-se, durante esse longo período histórico, fundamentalmente, à
pena de morte, às penas corporais (mutilações e açoites) e às infamantes.
Por isso, a prisão era uma espécie de “antessala” de suplícios, pois se usava a
tortura, frequentemente, para descobrir a verdade. A prisão foi sempre uma
situação de grande perigo, um incremento ao desamparo e, na verdade, uma
antecipação da extinção física do indivíduo”. (BITENCOURT, Cezar Roberto.
Tratado de direito penal. V. 1, 17 ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 643)
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