Federalismo e políticas públicas na área da saúde: descentralização financeira e controle judicial

AutorMarcus Abraham
Páginas907-944
885
FEDERALISMO E POLÍTICAS PÚBLICAS NA
ÁREA DA SAÚDE: DESCENTRALIZAÇÃO
FINANCEIRA E CONTROLE JUDICIAL
Marcus Abraham1
SUMÁRIO: 1. Introdução – 2. Políticas públicas e a sua realização a partir da
Constituição Federal de 1988: 2.1. A descentralização das atividades e das despe-
sas com saúde no Brasil; 2.2. A judicialização dos direitos sociais; 2.3. A judicializa-
ção vista pelos Tribunais Superiores; 2.4. O papel do Poder Judiciário na judicia-
lização da Saúde; 2.5. Os recursos orçamentários e sua alocação – 3. Conclusões.
1. INTRODUÇÃO
Para que a estrutura federativa do Estado brasileiro seja
adequada a todo o país e para seus cidadãos, deve haver um
necessário equilíbrio entre as responsabilidades e funções
constitucionalmente atribuídas a cada um dos entes federati-
vos e os recursos financeiros a eles dedicados; afinal, como diz
o brocardo, “quem dá os fins, dá os meios”, ou, em outra for-
mulação, “a Constituição não dá com a mão direita para tirar
com a esquerda”. Do contrário, não se atingirá o objetivo final
1. Pós-doutor em Direito – Universidade de Lisboa. Doutor em Direito Público –
UERJ. Mestre em Direito Tributário – UCAM. Professor Associado de Direito
Financeiro e Tributário – UERJ. Desembargador Federal do TRF-2.
886
FEDERALISMO (S) EM JUÍZO
da nação: o atendimento das necessidades do povo e a reali-
zação do Bem Comum. Conferir um rol de atribuições e res-
ponsabilidades aos Estados e Municípios – um poder-dever
estatal de realizar – sem fornecer recursos suficientes para a
sua efetivação é frustrar o próprio texto constitucional.
Entre essas atribuições constitucionais deferidas aos en-
tes federados destaca-se a oferta de serviços de saúde, uma
vez que o Constituinte fez a opção por um sistema universal
e público de acesso à saúde, a ser prestado por todos os três
entes federados. A responsabilidade é hercúlea, quando se ve-
rifica que a população já ultrapassou a marca de 200 milhões
de habitantes, segundo estimativas do IBGE.2
Como resultado dessa ingente tarefa cometida pela Cons-
tituição aos membros da Federação, na última década, viven-
ciamos no Brasil o fenômeno do ativismo judicial nas políticas
públicas, em especial na área da saúde, em que se multipli-
ca, numa progressão geométrica, o número de ações judiciais
ajuizadas pelos cidadãos em face do Estado, em busca do for-
necimento de medicamentos, da realização de exames e trata-
mentos médicos, de procedimentos cirúrgicos, de internação
hospitalar, dentre outros, seja por estes não integrarem o rol
de produtos e serviços estabelecidos no Sistema Único de Saú-
de (SUS), ou, simplesmente, por não terem sido regularmente
disponibilizados devido à deficiência de recursos humanos ou
materiais em determinada instituição médica pública.
Tais medidas judiciais, comumente denominadas de “ju-
dicialização da saúde”, são baseadas no art. 196 da Constitui-
ção Federal de 1988, que prescreve ser a saúde um direito de
todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais
e econômicas que visem à redução do risco de doença e de
outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e
serviços para sua promoção, proteção e recuperação. E as de-
mandas são promovidas em face de qualquer um dos entes
2. Dados disponíveis em: https://www.ibge.gov.br/apps/populacao/projecao/. Acesso
em: 11/09/2018.
887
FEDERALISMO (S) EM JUÍZO
federativos, uma vez que o art. 23, inciso II, da Constituição
estabelece a responsabilidade solidária entre União, Estados
e Municípios para “cuidar da saúde e assistência pública”.
Segundo o relatório de demandas judiciais relacionadas
com a saúde, elaborado pelo Conselho Nacional de Justiça
(CNJ), até o ano de 2014 tramitavam mais de 330 mil ações
nos Tribunais de Justiça estaduais, e mais de 60 mil ações nos
Tribunais Regionais Federais, todas envolvendo a temática da
assistência à saúde.3 As despesas da União com aquisição de
medicamentos determinada por ordem judicial aumentaram
1.300% entre 2008 e 2015, saindo de R$ 70 milhões para cerca
de R$ 1 bilhão por ano.4 Reconhece-se que essa problemática
não é nova e muito menos simples, sendo o assunto já com-
ponente de inúmeros estudos, inclusive objeto do “Fórum da
Saúde” criado pelo Conselho Nacional de Justiça - CNJ.5
Este cenário pode ser justificado por algumas razões: pri-
meiro, porque a Constituição Federal de 1988, ao mesmo tem-
po em que foi pródiga ao arrolar e assegurar os direitos so-
ciais, inclusive o da saúde, garantiu maior acesso à justiça, em
ambas as concepções – formal e material; segundo, porque,
na visão jurídica moderna, tais direitos constitucionalmen-
te previstos passam a ter efetividade, criando para o Estado
um poder-dever de oferecê-los ao cidadão; terceiro, devido ao
amadurecimento da democracia brasileira, com a inquestio-
nável conscientização da população dos seus direitos de ci-
dadania; quarto, porque o administrador público nem sem-
pre dimensiona corretamente ou confere prioridade a certas
rubricas orçamentárias, especialmente, como infelizmente
temos visto, para a área da saúde; e, finalmente, em quinto
3. Dados disponíveis em: http://www.cnj.jus.br/images/programas/forumdasaude/
demandasnostribunais.forumSaude.pdf.Acesso em: 11/09/2018.
4. BRASIL. Tribunal de Contas da União. Aumentam os gastos públicos com judicia-
lização da saúde. Disponível em: https://portal.tcu.gov.br/imprensa/noticias/aumen-
tam-os-gastos-publicos-com-judicializacao -da-saude.htm. Acesso em: 11/09/2018.
5. A Resolução CNJ nº 107/2010 instituiu o Fórum Nacional do Judiciário para mo-
nitoramento e resolução das demandas de assistência à Saúde – Fórum da Saúde.

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT